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quinta-feira, abril 25, 2024

A inconsistente e discriminatória política brasileira de controle de fronteiras durante a pandemia

Sem destaque na CPI da Pandemia, a política de controle de fronteiras adotada pelo governo federal durante a crise sanitária deve ser formalmente questionada

Por Caio Serra e Diana Amorim
Do ProMigra

Formalmente instalada no Senado Federal no final de abril, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia tem como objetivo apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento à crise sanitária causada pelo novo coronavírus no Brasil.  Desde o início da fase de depoimentos, em 4 de maio, as discussões entre senadores, autoridades do governo federal e ex-membros da gestão têm se concentrado principalmente na polêmica sobre o caráter da fundamentação (se técnica ou ideológica) e no grau de envolvimento do Presidente da República na definição das diretrizes adotadas pela administração federal em relação a medidas como distanciamento social, uso de máscaras, ‘tratamento precoce’, compra de vacinas, entre outros.

Contudo, as sessões pouco têm abordado – e, portanto, esclarecido – os critérios que guiaram as escolhas sobre outro importante instrumento de contenção da pandemia no país: a política de controle das fronteiras. Desde março de 2020, o governo federal publicou 33 atos normativos que promoveram alterações excepcionais nas regras de entrada de não-nacionais no Brasil, sob a justificativa de conter os avanços da Covid-19 no país.

Considerando que as primeiras manifestações da doença ocorreram em outros continentes, e que sua transmissão em um primeiro momento se deu principalmente pelo contato interpessoal e fluxos internacionais de migração, não há dúvidas de que o contexto da pandemia exige uma regulamentação específica. Entretanto, um olhar atento às determinações sugere que, apesar do respaldo técnico alegado pelo governo, há indícios de que as ações implementadas pela administração federal na gestão das fronteiras tiveram forte componente ideológico, em detrimento de uma base científica. Essa opção feita pelo Poder Executivo é grave e administrativamente irresponsável, pois não só  prejudicou o combate à crise sanitária, mas também ocasionou na violação de direitos humanos garantidos pela lei brasileira e por diretrizes internacionais.

governo Covid-19 pandemia
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, durante entrevista coletiva após reunião do Comitê Nacional de Enfrentamento à Pandemia de Covid-19. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil – abril/2021)

Restrições à migração em meio à pandemia

Ao final de fevereiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já registrava em todo o mundo 85.377 casos de Covid-19 confirmados e 2.935 mortes em decorrência da doença. Nesse período, apesar de já registrar um caso confirmado, o Brasil ainda não havia tomado medidas sanitárias formais para prevenir a disseminação descontrolada ou mitigar os efeitos do coronavírus no país. A primeira medida formal em relação às fronteiras foi publicada apenas em 17 de março de 2020, na forma da Portaria 120/2020. A normativa determinava a restrição excepcional e temporária à entrada por vias terrestres de “estrangeiros oriundos da República Bolivariana da Venezuela” no Brasil, com a previsão de raras exceções. No caso de descumprimento dessa determinação, os imigrantes ficariam sujeitos à responsabilização civil, penal e administrativa, com destaque para a possibilidade de repatriação ou deportação imediata; além da polêmica “inabilitação de pedido de refúgio” – que viola não apenas os princípios norteadores da legislação nacional como convenções e tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário.

Muito embora o foco da pandemia, naquele momento, fossem países como China, Itália e Estados Unidos, as primeiras restrições a fluxos de mobilidade humana tiveram como foco a Venezuela – país com o qual a diplomacia brasileira não possui boas relações desde 2019, em função da orientação política da gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) e da intensificação do fluxo de imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados vindos do país vizinho com destino ao Brasil. A normativa já apontava, portanto, para uma incompatibilidade entre a decisão do governo federal e a realidade sanitária no Brasil e no mundo; ao mesmo tempo, pareceu oportuna às pretensões diplomáticas brasileiras.

As restrições de entrada no país, independentemente da nacionalidade, por via aérea, ocorreram somente ao final de abril de 2020, a partir da Portaria Interministerial 203/2020, quando já havia sido atingida a marca de 4 mil mortes pelo vírus e mais de 70 mil casos identificados no Brasil. Porém, as restrições duraram até meados de junho quando, com a Portaria 340/2020, teve início a flexibilização da entrada de imigrantes portadores de vistos emitidos para fins de estudo, trabalho e investimento; em aeroportos específicos  – localizados nas principais cidades do país, como São Paulo (SP), Campinas (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Brasília (DF).

A determinação de excepcionalidades a um perfil específico de imigrante – vinculado sobretudo a  ocupações qualificadas, com entrada por aeroportos de grandes centros econômicos  do país -, em paralelo à manutenção das restrições de acesso por via terrestre – principal  forma de ingresso no país daqueles que solicitam refúgio ou imigrantes em situação de maior vulnerabilidade – representam claramente a instrumentalização das medidas de restrição de fronteira  por parte do governo federal para impor seus interesses ideológicos, ao invés de realizar um combate efetivo da pandemia.

Ressalta-se também, neste sentido, a demora na adoção de medidas sanitárias nos atos normativos editados pelo governo federal, tais como monitoramento e triagem de pessoas vindas do exterior, ou mesmo a exigência de apresentação de testes negativos da Covid-19 ou cumprimento de quarentena por parte dos recém-chegados. Em agosto de 2020, a entrada no Brasil passou a ser condicionada à aquisição de seguro de saúde com cobertura mínima de 30 mil reais, tornando ainda mais restrito o grupo daqueles que possuíam condições financeiras e legais de ingresso no país. Este requisito, contudo, durou pouco, já que foi suprimido em menos de 40 dias depois de estabelecido. A primeira exigência estritamente sanitária ocorreu apenas em meados de dezembro de 2020, com a Portaria 630/2020, que passou a exigir daqueles que chegavam do exterior a apresentação de um teste laboratorial RT-PCR com resultado negativo para Covid-19 e uma Declaração de Saúde do Viajante emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para embarques com destino ao Brasil. À essa altura, o país já contava com mais de 190 mil mortes, estando atrás apenas dos Estados Unidos  em número de óbitos ocasionados pela doença.

Diante desse cenário de incompatibilidade entre os contornos da pandemia, as determinações de restrição ou flexibilização de entrada pelas fronteiras, e a adoção (ou ausência) de medidas sanitárias preventivas adequadas, em fevereiro deste ano, as organizações Conectas Direitos Humanos e Missão Paz protocolaram uma representação junto ao Ministério Público Federal solicitando uma investigação sobre as medidas discriminatórias presentes nas portarias que restringem o acesso ao país por fronteiras terrestres de nacionais da Venezuela.

Em dezembro de 2020, a Conectas já havia questionado a fundamentação técnica alegada pelo governo e, a partir de estudo realizado em parceria com Centro de Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Universidade de São Paulo, concluiu que as restrições impostas pelo governo federal especificamente a fluxos oriundos da Venezuela, bem como aos nacionais deste país, carecem de fundamentação jurídica e sanitária e não constam em nenhum parecer da Anvisa que pudesse subsidiar as decisões no âmbito nacional.

À época, documentos produzidos pela própria Anvisa relataram que a Agência nunca emitiu orientações para a proibição de forma segregada a entrada de indivíduos provenientes de países fronteiriços ao Brasil, explicitando a falta de respaldo científico para a restrição específica a venezuelanos. Aqui cabe ressaltar que esta medida permanece vigente desde as primeiras portarias de fechamento de fronteira, originalmente sob a justificativa de amparo por nota técnica da Anvisa e hoje sequer com justificativa explicitamente indicada.

Em maio de 2021 diante da descoberta de uma nova cepa do vírus identificada na Índia, e que tem alavancado os números de casos e óbitos neste país,  foi reforçado o alerta mundial sobre mais essa forma de disseminação do coronavírus, e em função disso, foi editada a Portaria Interministerial 654/2021, vigente no momento de conclusão deste texto. A Portaria  preserva o teor principal  das normativas anteriores – portanto, todas as ilegalidades e controvérsias aqui destacadas – além de incluir a Índia na lista de países de origem com restrições a voos destinados ao Brasil, assim como Reino Unido, Irlanda do Norte e África do Sul. Aos passageiros provenientes destes países, aplicam-se algumas exceções, das quais caso sejam cumpridas, ainda assim exige-se que realizem um período de quarentena ao ingressar no Brasil.

Instrumentação de medidas infralegais na política migratória

Após mais de um ano de pandemia, período em que a política nacional migratória tem se fundamentado em portarias interministeriais enviesadas por motivações ideológicas – em detrimento de critérios científicos e sanitários -, é preciso refletir sobretudo a respeito das consequências das diretrizes federais sobre os imigrantes que buscam refúgio no Brasil, uma vez que as medidas desproporcionais que têm sido adotadas para  os que ingressam no país por via terrestre têm ampliado a situação de vulnerabilidade destes indivíduos.

Dentre as medidas, tem-se a condição de irregularidade ao cruzar a fronteira nacional por via terrestre (salvo no caso de raras exceções previstas nas portarias), com a previsão de sanções como a responsabilização penal, deportação imediata e inabilitação do pedido de refúgio. Tais medidas foram inauguradas pela Portaria 120/2020 logo no início da pandemia no Brasil e entram em conflito direto com os aspectos mais progressistas da Lei de Migração de 2017 (Lei 13.445/2017),  que garante o respeito aos princípios de ampla defesa, direito ao contraditório e ao devido processo legal para imigrantes irregulares ou em busca de regularização no Brasil. Com a previsão das sanções mencionadas, estes direitos  têm sido amplamente negados aos imigrantes que chegam ao país por via terrestre, pois sequer lhes é disponibilizado o acesso aos mecanismos legais e administrativos para buscar proteção e/ou regularização.

Outro aspecto preocupante é o fato de que, ao permitir mecanismos para forçar o retorno destes indivíduos aos seus países de origem, mesmo se lá estiverem sujeitos a iminente risco de vida – por perseguições políticas,  conflitos internos, entre outros fatores –  o Brasil está violando expressamente diretrizes internacionais como o direito à solicitação de refúgio e os princípios da Convenção de Genebra referente aos Estatuto dos Refugiados (1951), incorporados à legislação nacional por meio da Lei de Refúgio (Lei 9.474/1997).

Assim, embora ainda não tenha ganhado o devido destaque na CPI da pandemia, a política de controle de fronteiras adotada pelo governo federal durante a crise sanitária deve ser formalmente questionada. É urgente que as incompatibilidades e abusos normativos aqui expostos sejam reconhecidos pela administração federal, e a política de controle de fronteiras seja adequada para enfim determinar medidas sanitárias efetivas de prevenção e combate à disseminação do coronavírus, que sejam concomitantes à proteção aos direitos garantidos aos imigrantes.

Sobre os autores

Caio Serra é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), pós-graduado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e membro do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP.

Diana Amorim é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (IRI/USP) e atua como pesquisadora e assessora de projetos na área de Advocacy. Também possui experiência na área de relações governamentais e análise de políticas públicas. É integrante do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP



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