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quinta-feira, março 28, 2024

A situação dos imigrantes na Itália como sinal de declínio de uma sociedade (parte 3)

Por Arnaldo Cardoso

No último dia 30 de julho, Dia Internacional Contra o Tráfico de Seres Humanos, a ONU estimou em mais de 21 milhões de pessoas o número de vítimas desse crime em todo o mundo. Dada a sua natureza, há possibilidade desse número ser bem maior. A organização não governamental de origem britânica, Save the Children – que recentemente foi alvo de ataques de milícias digitais da extrema-direita norte-americana – que atua em mais de 100 países estima ser mais de 40 milhões o total de vítimas de tráfico, dos quais 10 milhões seriam menores de 18 anos.

O tráfico de pessoas é caracterizado como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força ou outras formas de coerção, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração” pela UNODC e assim definido em protocolo específico sobre a matéria e complementar à Convenção de Palermo, de 2004.

Dentre as formas de exploração dessas pessoas, a prostituição está entre as mais numerosas, e a Itália, foco da presente pesquisa, ocupa lugar destacado nessa matéria.

Um importante estudo da OIM (Organização Internacional para Migrações) de 2016 apontou que, estando as redes internacionais de tráfico e prostituição atuando na Itália há mais de três décadas elas estão cada vez mais organizadas, e a demanda é crescente por mulheres cada vez mais jovens.

Nos relatórios do Istat (Instituto Nacional de Estatística) a prostituição figura junto com a produção e comércio de drogas e o contrabando de cigarros, compondo a “economia subterrânea” ou “não observada” do país, na categoria de “bens e serviços ilegais”, totalizando em 2017 o montante de 18,9 bilhões de euros.

No mercado italiano da prostituição as mulheres nigerianas, chinesas e de alguns países do leste europeu são a maioria.

O mencionado estudo da OIM apontou que só no primeiro semestre de 2016 já haviam ingressado na Itália cerca de 3,6 mil mulheres nigerianas sem documentos ou com documentos falsos e cerca de 80% delas foram aliciadas em redes de prostituição.

Em 2019, observadores da OIM que operam na Sicília passaram a registrar um aumento expressivo da chegada por mar de mulheres da Costa do Marfim.

Origens e níveis de exploração sexual

De acordo com a origem e os meios através dos quais se dão o ingresso em território italiano, o(a) imigrante que passa a trabalhar na prostituição no país é submetido a diferentes níveis de exploração/dependência.

Da Nigéria

No auge da crise migratória de 2015-6 a OIM mapeou o tráfico de mulheres nigerianas para a Itália, suas rotas e conexões. Simona Moscarelli, especialista de combate ao tráfico humano da OIM, em entrevista ao jornal britânico The Guardian declarou “Os nossos indicadores apontam que a maioria destas mulheres está sendo deliberadamente trazida [para a Itália] com propósitos de exploração sexual.”

Por ocasião da divulgação dos resultados da investigação de 2016 da OIM o então vice-procurador de Agrigento, na Sicília, Salvatore Vella que realizou em 2014 a primeira grande investigação sobre as redes de tráfico de mulheres nigerianas para a Itália confirmou que “os centros de recepção de migrantes e refugiados estão cada vez mais sendo usados como pontos de recolhimento pelas redes de tráfico humano” e sentenciou “os mafiosos vêm simplesmente ao campo e escolhem as mulheres que querem. Tão fácil como ir ao supermercado”.

Mesmo após essas investidas de autoridades públicas e organizações da sociedade civil esse fluxo não cessou. As viagens clandestinas da Nigéria até a Itália, em sua maioria com escala na Líbia (sobre esse particular trataremos em próximo artigo), chegam a custar 40 mil euros para a migrante.

A maioria dessas mulheres tem entre 19 e 25 anos, são analfabetas e de famílias numerosas e muito pobres. Vindas de uma sociedade onde há um peculiar sincretismo religioso entre o cristianismo, o islamismo e o animismo, muitas dessas mulheres antes da viagem para a Europa são compelidas a um ritual de vodu conhecido como juju, quando é feito um juramento de obediência àquele que a “ajudou” na viagem e compromisso com o pagamento da dívida, que pode significar a necessidade de realização de 4 mil “serviços sexuais”.

Um relatório recente da Save the Children apontou que nos primeiros 6 meses de 2020, cerca de mil novas vítimas de tráfico e exploração de menores de 18 anos foram interceptadas na Itália, das quais 87% eram nigerianas e 5% delas menores de 14 anos.

Agravemento do contexto na pandemia

No contexto de vigência das medidas de  emergência sanitária da Covid-19 a situação dessas imigrantes ganhou traços ainda mais dramáticos como mostrou matéria de Lorenzo Tondo publicada no último 10 de julho pelo jornal The Guardian da qual extraio o seguinte trecho “De acordo com testemunhos de voluntários, assistentes sociais e ongs, durante o prolongado e rigoroso bloqueio de três meses da Covid-19, redes de tráfico abandonaram mulheres e seus filhos, que não puderam sair de casa ou do trabalho e ficaram sem comida e dinheiro para pagar o aluguel. Dado seu status ilegal, elas não tiveram direito a assistência financeira ou auxílios de desemprego concedidos por programas governamentais de emergência.” Em recente matéria do site italiano Internazionale.it com o título “Os dias difíceis das profissionais do sexo” encontram-se duros relatos sobre a prostituição na Itália em tempos de pandemia.

Andrea Morniroli, da cooperativa Dedalus, porta-voz da plataforma nacional de combate ao tráfico avaliou que “A situação é trágica: alguns dias atrás, fomos informados de um caso de quatro jovens mulheres nigerianas vítimas de tráfico que permaneceram trancadas em casa sem comida, porque ‘Madame’ não quer deixá-las sair por medo de ficarem doentes”.

Morniroli conta ainda que “As prostitutas nigerianas desapareceram das ruas: são extremamente frágeis, muitas vezes não sabem ler e escrever, não sabem como acessar ferramentas on-line e não têm clientes regulares procurando por elas. E assim elas não podem ganhar nada: elas não pagam a dívida, e acima de tudo, elas não têm dinheiro para comer. A situação é diferente para as meninas do leste, que costumam ter um ‘protetor’: algumas delas são forçadas a sair para a rua mesmo na pandemia, colocando em risco a si e a seus clientes. Finalmente, há as prostitutas chinesas: elas também receberam ordens de ficar em casa e não ter contato com os italianos”.

Do leste europeu

Nos primeiros dias de junho de 2020 a polícia italiana desbaratou uma organização criminosa com sócios albaneses e italianos que exploravam prostituição e venda de drogas na pequena comuna de Castelnovo ne’Monti, de 10 mil habitantes, província de Reggio Emilia, na rica região da Emília Romagna. A operação antecedida por quatro anos de investigações apurou que dentre outros crimes seus operadores comandavam a exploração sexual de dez jovens mulheres do leste europeu, cujos serviços eram vendidos ao longo da Via Emilia. na fronteira entre as províncias de Reggio e Parma.

A cada rede de prostituição desmantelada mais informações passam a ser disponibilizadas para a orientação de novas operações policiais. É importante frisar que essas operações são reativas, não cobrindo o vazio ou má concepção e implementação de políticas públicas dirigidas para os imigrantes. Em março de 2018, depois de quatro meses de investigações a polícia de Bolonha fechou duas casas de massagem que exploravam seis imigrantes do leste europeu em serviços sexuais, uma em Calderara di Reno e outra na via del Gomito. Uma das unidades já havia sofrido investigações em 2014.

Nas cidades de Bolonha e Milão investigações policiais já identificaram e desmontaram muitas dessas redes de prostituição. Se olhada pelo ângulo da paralisação da ação ilegal de tráfico e exploração de imigrantes o desmantelamento pela polícia dessas redes é positiva, mas o fato da imigração ser controlada pelo aparato policial dos Estados contribui para a criminalização do imigrante, assim como para a corrupção policial e a precarização ainda maior da vida do imigrante irregular.

De acordo com Wermuth & Aguiar (2017) pode-se afirmar que “[…] a Itália, desde a década de 1990, vive mudanças em suas políticas migratórias que transformaram o tratamento e a percepção dos processos migratórios, especialmente no que diz respeito à política de repressão e criminalização dos imigrantes”.

Da China

O crescimento da presença de prostitutas chinesas e das respectivas redes chinesas de prostituição na Itália tem levado pesquisadores, ongs e agentes públicos a se dedicarem à compreensão de seu funcionamento visando intervenções.

Pelo quanto já se sabe sobre essas redes chinesas, elas operam com marcado senso comercial, segmentando o mercado e a oferta dos serviços. Numa primeira segmentação se dá a divisão entre clientes chineses e italianos, atentando para as preferências de cada grupo. Em Roma já se identificou uma rede que operava com central de atendimento, agendamento, anúncios em revistas de publicidade – “massagens completas para homens” – e onze apartamentos disponíveis.

A maioria dessas mulheres chinesas têm em torno de 20 anos e são provenientes da zona rural do norte da China. A entrada na Europa se dá especialmente por Paris, com visto de turista. No mercado do sexo pago as prostitutas chinesas são conhecidas pelo seu alto grau de sujeição.

Em março de 2016 o desmantelamento pelas polícias de Roma e de Bolonha de uma rede de prostituição que se apresentava como “casas de massagem” e que operava em toda a Itália revelou as intrincadas relações que estruturam essas redes. A empresa com sede em Bolonha recrutava garotas na China que depois passavam por triagem em várias regiões da Itália.

Nos últimos anos muitas dessas redes de prostituição chinesa foram desmanteladas. Em novembro de 2019 foi a vez de uma rede com conexões entre as cidades de Modena e Pescara – distantes 400 quilômetros – revelando um esquema que contava com call center, 21 apartamentos, três empresas do ramo de “massagens” e muitas jovens mulheres chinesas que trabalhavam 7 dias por semana, entre 7 h e 2 h da madrugada, com liberdade de circulação e autonomia restringidas.

Em 2007 por iniciativa da administração pública da região da Emilia-Romagna (municípios de Piacenza, Fidenza, Parma, Reggio Emilia, Modena, Bolonha, Ferrara, Cesena, Ravenna e Rimini) teve início um projeto – depois de outros implementados em meados dos anos 1990 – visando o conhecimento e intervenções sobre as redes de prostituição, desta vez as chinesas, operantes na região, com foco nas atividades que ocorrem em espaços fechados (apartamentos e “casas de massagem”). Batizado de Projeto Invisível (Progetto Invisibile) e reestruturado em 2014, visava desde o início desvendar as articulações e o cotidiano dessa teia de relações “invisíveis”, mas que ocorrem sob os olhos de todos.

As intervenções se estruturaram principalmente nas áreas da saúde e segurança, com foco em prevenção de doenças (DST) e assistência jurídica contra “exploração severa”. Os propósitos de regularização da situação de imigrantes irregulares e do enquadramento legal de negócios do “entretenimento e saúde” também integram o projeto.

Como informa a prefeitura de Modena, gestora principal do projeto [...] “um conjunto de princípios e avaliações encontrou expressão plena dada a participação de autoridades locais

e entidades privadas afiliadas, com o apoio de redes locais formadas por órgãos de aplicação da lei, autoridades judiciárias, serviços sociais e de saúde, entidades do terceiro setor e sindicatos”.

Embora o projeto informe a motivação de compreender comportamentos e culturas, a atenção do projeto sempre se voltou para os sujeitos organizadores, operadores e ofertantes do “serviço” e não para os demandantes/consumidores.

Perspectiva do cliente

A prostituição, tradicionalmente encarada como problema para gestores públicos das áreas de segurança e saúde, e que muitas vezes figura na pauta de grupos conservadores, raramente é abordada na perspectiva do cliente, da demanda do mercado do sexo pago.   

Por essa perspectiva uma primeira indagação a ser feita é: por que apesar do fato das relações sexuais antes do casamento – especialmente em países ocidentais –  serem hoje muito difundidas e normalizadas – muito em função dos avanços da liberdade sexual e da maior igualdade de gênero – o sexo pago é um fenômeno crescente e não decrescente?

E o que dizer se juntarmos a essa questão o fato de que em países como a Itália, o mercado do sexo pago é constituído em sua maioria pela oferta de mão-de-obra estrangeira, proveniente especialmente de países pobres?

A socióloga italiana Luisa Leonini, professora e diretora do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres e Diferenças de Gênero da Universidade de Milão, acompanha com atenção as variações desse fenômeno na Itália desde o final da década de 1990 quando coordenou uma pesquisa sobre o mercado do sexo pago em Milão, aplicando entrevistas em profundidade com os clientes de prostitutas.

Em seu “Partiamo dalla domanda” (Partamos da demanda) de 2007, Leonini nos lembra que são várias as facetas do sexo pago, dentre elas a prostituição feminina, a pedofilia, a prostituição homossexual, a propagação da pornografia, sites e chats de Internet.

Quanto a extensão e a qualidade do fenômeno, sua pesquisa se alinhou com um estudo de 2002 realizado por Ambrosini – conhecido especialista em problemas migratórios – ao estimar em cerca de 30 mil as prostitutas estrangeiras que trabalhavam nas ruas do país naquele momento. Hoje esse número é certamente maior.

De acordo com Leonini “em média uma prostituta atende cerca de dez clientes por dia, o que multiplicado por 30 mil prostitutas na rua o que permitiu estimar a extensão do fenômeno. A esse cálculo é necessário acrescentar o fenômeno do sexo pago em locais fechados, mais difícil de quantificar precisamente porque não é visível. A pesquisadora sentencia que o fenômeno do sexo pago pode ser definido “como um fenômeno de massa que envolve uma enorme quantidade de pessoas”.

Do referido estudo destacamos abaixo seus principais achados:

  • o sexo pago pode ser entendido como um “costume” popular e difundido, que faz parte, de certa forma, “de ser homem na Itália”;
  • é essencial compreender o papel do dinheiro, pois desempenha um papel central na dinâmica relacional desse tipo de consumo: é uma forma de poder que permite ao seu titular estabelecer as regras do jogo; é a certeza, por exemplo, como muitos clientes nos disseram, de poder escolher; é o poder de pagar e conseguir o que se deseja sem ter que explicar, negociar, se envolver;
  • um dos elementos fundamentais na relação entre clientes e prostitutas está precisamente ligado ao desequilíbrio de poder que o dinheiro confere a quem o detém, para estabelecer condições e relações com os outros;
  • os clientes das prostitutas não se interessam pelas pessoas, não procuram uma interação ou relacionamento com o outro;
  • os clientes das prostitutas não pedem o nome, não perguntam a idade, não perguntam de onde vêm, não ligam se são imigrantes regulares ou irregulares, se são menores ou adultas: compram um serviço.

Achados como os acima destacados da inusual abordagem do fenômeno da prostituição na Itália combinados com dados e históricos recentes como os reunidos neste artigo, ao revelarem o entrelaçamento da prostituição com a dinâmica migratória, os papéis estabelecidos e comportamentos/valores que modelam relações socio-políticas, reforçou-se a hipótese principal de que a situação dos imigrantes na Itália torna evidente além das violências, um processo de intensificação de fatores nativos que tem posto em curso um declínio social no país, .

(No próximo artigo dessa série trataremos das implicações de disposições legais sobre migração na Itália, dos efeitos danosos da criminalização da imigração e do imigrante e da disputa política e construção de narrativas acerca dos valores constitutivos do povo italiano.)

Arnaldo Cardoso, cientista político, pesquisador e professor universitário.

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