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terça-feira, abril 23, 2024

Como o conceito de refugiado evoluiu ao longo da história

Para compreender a evolução do conceito jurídico de refugiado é preciso situar os diferentes contextos históricos em que ele foi formulado

Por Regina Conrado
Do ProMigra

A evolução histórica do conceito de refugiado resulta de fatores históricos, sociológicos e políticos. As solicitações de refúgio e asilo são institutos jurídicos que precedem o surgimento do Estado-nação e, em seus primórdios, a teoria jurídica reconhecia o refúgio como um direito à mobilidade e à autopreservação. Hathaway (1991) divide a formulação do conceito de refugiado a partir de três visões distintas: jurídica (1920-1935), que reconhecia o refúgio com base no pertencimento do indivíduo a determinado grupo; social (1935- 1940), caracterizada pela assistência internacional para determinados grupos de refugiados em decorrência de acontecimentos políticos e sociais, principalmente os relacionados ao nazismo; e individualista (1940-1950), caracterizada pelo exame dos méritos do caso individual do solicitante de asilo. Tomarei essas fases como referência para a análise.

Para compreender a evolução do conceito jurídico de refugiado é preciso situar os diferentes contextos históricos em que ele foi formulado. Paralelamente, este artigo apresenta a evolução institucional e política das normas e organizações que compõem o regime internacional para refugiados elaborado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Destaco como os fatores normativos, institucionais e políticos ao longo do tempo, fomentaram um paradigma legal cada vez mais restritivo ao direito à mobilidade dos refugiados.

Antecedentes

O término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) alterou as bases territoriais da Europa e culminou com a migração de grandes contingentes humanos. Estima-se que, no fim dos impérios Russo, Austro-Húngaro e Otomano, o número de pessoas deslocadas na Europa tenha chegado a três milhões. Além disso, algumas minorias étnicas deslocadas para os novos Estados que sucederam os antigos impérios (caso da Iugoslávia, Tchecoslováquia, Armênia, Áustria, Bulgária, Hungria, Polônia, Lituânia, Turquia e Grécia) não foram naturalizadas pelos seus novos países, e muitas tornaram-se apátridas. Essas minorias tinham um frágil status jurídico por serem consideradas por seus estados de origem como uma ameaça à coesão cultural e nacional.

Nos primórdios da consolidação do instituto do refúgio em 1921, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, juntamente com a Liga das Nações, sugeriu a criação do Alto Comissariado para os Refugiados Russos (ACRR). Coordenado pelo governo da Noruega, o objetivo da ACRR era proteger os quase dois milhões de russos obrigados a deixar seu país após a Revolução Russa de 1917. O conceito de refugiado referia-se então, aos indivíduos perseguidos em seus estados de origem, sendo a função do órgão era definir a situação jurídica dos refugiados, repatriá-los ou levá-los para os assentamentos.

A partir de 1935, a política antissemita de Hitler na Alemanha, deu início à perseguição dos judeus com o consequente êxodo desse grupo e a perda de seus direitos de cidadania, além de desnaturalizar judeus e imigrados políticos residentes fora da Alemanha. O início da Segunda Guerra (1939-1945) desestimulou a oferta estatal de proteção aos refugiados, o que intensificou a busca por refúgio principalmente pelos judeus, forçando os Estados de asilo a impor restrições à sua entrada. No Brasil, não havia proibição oficial para a entrada dos judeus, porém, uma circular secreta (Circular 1.127/1938) promulgada por Getúlio Vargas, proibia as missões diplomáticas de conceder vistos de entrada para os judeus ingressarem no país.

Em 1938, a Noruega propôs a criação de um órgão para a proteção dos refugiados: o Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados (ACLNR). Fatores como a perseguição de comunistas, sindicalistas, socialdemocratas, judeus, ciganos, eslavos e alemães com ascendência judaica, influíram para a construção de um conceito de refugiado definido coletivamente, ou seja, como parte de um grupo étnico ou nacional. O conceito com base na origem ou ligação a um determinado grupo étnico, racial ou religioso, assumiu uma perspectiva coletivista.

O Estatuto dos Refugiados de 1951 e o ACNUR

No fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa recebeu um grande número de refugiados que deixaram seus países em consequência do uso político do território por parte dos Estados (por ascendência étnica, gênero entre outros critérios), e não, por perseguições políticas ou religiosas. Era o caso dos judeus expulsos dos territórios alemães. Na época, existiam cerca de 11 milhões de deslocados na Europa, em sua maioria egressos de países do Leste Europeu controlados pela comunista União Soviética. Para receber os refugiados, foram organizados campos de reassentamento na Alemanha, Áustria, Itália e Grécia.

Em 1946, a Assembleia Geral da ONU votou a constituição da Organização Internacional para os Refugiados (OIR) e, até 1951, esse órgão foi o principal responsável pela realocação dos refugiados. Embora prestasse assistência aos refugiados europeus, o OIR foi o primeiro organismo internacional a tratar do problema dos refugiados como um todo. Mas sua atuação não solucionou o problema. Os países europeus, preocupados com a estabilidade da Europa, buscavam uma solução humanitária para as cerca de 40 milhões de deslocados, inclusive aqueles vindos dos regimes totalitários que se implantaram na Europa na primeira metade do século XX.

Em 1948, a Organização das Nações Unidas elaborou a Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrando os direitos humanos e um código de ação comum aos países. O órgão reconhecia o direito de indivíduos procurarem refúgio, mas, não a obrigação dos Estados em concedê-lo, uma vez que a concessão do refúgio é um ato soberano do Estado, o qual tem por atribuição controlar o território e as fronteiras. Portanto, uma decisão de natureza política.

Em 1951, a Assembleia Geral da ONU estabeleceu o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), tornando-o responsável pela proteção aos refugiados e por encontrar soluções permanentes para eles. Foi então criada a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, assinada por 12 países, com o objetivo de fornecer proteção internacional aos refugiados e adotar a Convenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados. A Convenção garantiu uma estrutura jurídica formal para o trato do refúgio com normas de proteção amparadas pelo Direito Internacional.

O conceito de refugiado

Durante a conferência, deu-se um debate entre duas visões distintas sobre o refúgio: a eurocêntrica, que reconhecia como refugiados apenas os europeus, e a universalista, que sustentava que o conceito de refugiado envolvesse pessoas de todas as origens. Uma nova definição de refugiado foi então elaborada, referindo-se a pessoa “que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar”.

O conceito formulado pela Convenção considerava o refúgio como um estatuto de natureza individual – embora pudesse ser concedido a grupos –, negligenciando dessa forma, a relação entre raça, gênero, a formação dos fluxos de refugiados e a forma como eles são gerenciados. A definição abrangia o caso individual, requerendo a análise da experiência de perseguição dos solicitantes. Contemplava os refugiados participantes de eventos ocorridos antes de janeiro de 1951, com base em uma perspectiva individualista de busca por proteção motivada por um evento político ou social, independentemente da definição de grupo. Foram estabelecidos quatro elementos definidores da condição de refugiado durante a Convenção: estar fora do seu país de origem; ausência de vontade ou incapacidade do Estado de origem em oferecer proteção ou facilitar o retorno; incapacidade ou falta de vontade do refugiado por temor de perseguição; e perseguição motivada por etnia, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou por opinião política. Foram também estabelecidos padrões mínimos para o trato com o refugiado, o direito ao emprego remunerado e assistência social, tirar documentos de identidade e passaporte, além de poder transferir seus bens para o país onde fosse admitido.

Além do Estatuto valorizar a elegibilidade individual e a história pessoal do solicitante de refúgio, incluiu restrições geográficas e temporais aos refugiados e definiu o asilo e o exilio com base nos direitos humanitários e na cooperação internacional, para orientar a busca de soluções permanentes. As medidas de exclusão foram consideradas um direito à autopreservação do Estado, e a obrigação da hospitalidade como um dever humanitário. Esses princípios apoiavam-se na ideia de que os direitos humanitários deveriam prevalecer sobre o poder de exclusão.

Alguns estudiosos indicam que o conceito estipulado pelo Estatuto do Refugiado privilegiava aqueles cuja concessão de asilo poderia ser útil ao enfraquecimento do Leste Europeu comunista e, consequentemente, fortalecer o Ocidente capitalista. As pessoas que fugiam da pobreza, violência, das perseguições e dos desastres naturais não cabiam no conceito, a menos que se enquadrassem à uma das condições de refúgio aceitas pela Convenção . Era um conceito que descrevia um refugiado ‘normal”, “branco, homem e anticomunista”.

Configurações contemporâneas do refúgio

Com o fim das disputas ideológicas entre os blocos comunista e capitalista que configuravam a Guerra Fria, a migração internacional enfrentou medidas mais restritivas além da intensificação da xenofobia, especialmente nos países de destino. Na década de 60, surgiram refugiados principalmente africanos, os “novos refugiados”, em consequência de acontecimentos ocorridos depois de 1951, e que não eram protegidos pela Convenção. O Estatuto dos Refugiados foi, então, revisto pela Assembleia Geral da ONU em 1967, quando foi assinado novo Protocolo que eliminava as limitações geográficas e temporais e excluía o critério de reconhecimento do refugiado como aquele que tivesse sido perseguido em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951. O Protocolo de 1967 ampliou a definição de refugiado incluindo aqueles que, abrangidos pela Convenção, independentemente do prazo de janeiro de 1951, além daqueles que, devido a agressões externas, dominação estrangeira ou eventos que alterem a ordem pública do país de origem ou nacionalidade, se vejam obrigados a fugir.

Entre as décadas de 70 e 80, alguns países da América Latina (El Salvador, Nicarágua, Guatemala e Chile) foram assolados por conflitos políticos internos resultantes da eclosão de ditaduras infratoras dos direitos humanos. Houve então um fluxo de mais de 2 milhões de refugiados provenientes apenas dos países da América Central. Nesse contexto, em 1984, foi elaborada a Declaração de Cartagena, um instrumento regional de proteção aos refugiados com ênfase na questão do regresso forçado, o princípio do non-refoulement. A Declaração pretendia alterar o conceito de refugiado dada pela Convenção de 1951 – considerando-se que esta não abrangia as situações de conflitos armados –, nele incluindo a proteção para os que deixaram seus países em decorrência da violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação dos direitos humanos ou outras circunstâncias perturbadoras da ordem pública.

A Declaração de Cartagena trouxe soluções permanentes para os refugiados – integração local, repatriação e reassentamento, reiterando o princípio do regresso forçado. Como esse último instituto integra o Direito Internacional Consuetudinário, pode ser aplicado por qualquer país, independentemente de integrar convenções ou protocolos reguladores dos direitos dos refugiados. Apesar de a Declaração de Cartagena não possuir caráter vinculativo obrigando os Estados a cumpri-la, permitiu a acolhida de um grupo maior de refugiados, corroborando o comprometimento da América Latina com essa problemática.

Nos anos 1990, emergiu a ideia de que os refugiados não poderiam ter uma condição transitória. A Resolução ACNUR 45/149 de dezembro de 1990, adotou então, uma política preventiva para as “causas originárias dos fluxos de refugiados com o objetivo de evitar novos fluxos e facilitar a solução dos problemas existentes.” Essa política centrava-se nos países de origem e na criação de mecanismos impeditivos da violação aos direitos das populações locais evitando que se tornassem refugiadas. A responsabilidade recaia sobre os países de origem – responsáveis pela eclosão dos deslocados, pelas condições de retorno e repatriação voluntaria e ausência de medidas impeditivas de fuga – e a repatriação passou a ser vista como uma solução permanente, eximindo a comunidade internacional da proteção dos deslocados.

Diferentemente do Estatuto de 1967, que tinha uma orientação post facto de proteção para aqueles que já haviam cruzado a fronteira, essa política se concentrava nas causas dos fluxos dos deslocados: instabilidade política, disputas internas, violações de direitos humanos, desastres naturais e guerras. Por um lado, a ação defendia a prevenção para evitar que as pessoas fugissem de seus países, por outro, preservava o instituto do asilo e a importância da cooperação internacional. A contradição da premissa era que ela dificultava a requisição de refúgio na medida em que, ao impedir que o refugiado cruzasse a fronteira – ação garantida pelo abrigo da proteção internacional -, impedia a possibilidade de integração do refugiado ao país de asilo, o assentamento em um terceiro pais ou o retorno voluntario. A nova Resolução levou ao surgimento de barreiras aos refugiados saídos de países que funcionavam como ponto de resistência.

A cooperação internacional passou a ser exercida nos países de origem mediante intervenções humanitárias, dificultando que vítimas de conflitos e perseguidas em seus países pudessem solicitar refúgio em outro país. A estratégia preventiva impactou negativamente a condição dos refugiados, uma vez que, ao conter esses grupos em seus países de origem, impedia que a comunidade internacional desse asilo aos novos fluxos de refugiados de forma a garantir a estabilidade territorial dos países.

No final do século XX, conflitos internos como as guerras do Afeganistão, Irã-Iraque, Vietnã, fugiram da jurisdição do direito internacional, em virtude da soberania estatal desses países. Em 1988, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, temendo o crescente número de refugiados internos, adotou os Princípios Básicos sobre o Deslocamento Interno (Guiding Principles on Internal Displacement) , visando reforçar a proteção desses refugiados e elaborar estratégias para reconstruir as comunidades destruídas durantes os conflitos.

Considerações finais

Conhecer o processo histórico e a evolução de leis e acordos que definiram o conceito de refugiado, contribui para delimitar a responsabilidade do Estado e dos próprios refugiados. O conflito de interesses entre a necessidade de proteção dos refugiados e a preocupação dos Estados com a segurança de seus nacionais e de suas fronteiras, é um tema complexo. Prova disso é que alguns estudiosos consideram o conceito de refugiado formulado durante a Convenção de 1951 elitista, já que se destinava a uma minoria de migrantes involuntários composta majoritariamente por europeus brancos e alfabetizados. Esses refugiados atendiam aos critérios de perseguição individual inseridos no texto, mas excluía os migrantes econômicos ou vindos de países politicamente instáveis que não sofriam perseguição política.

Um primeiro vínculo do refugiado é com seu Estado de origem, que pode decidir persegui-lo em função da raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. O segundo vinculo é com o Estado de asilo, ator responsável por resgatar ou não os direitos políticos e sociais do refugiado. No meu entendimento, as decisões de ambos os Estados sobre a trajetória dos refugiados são políticas assim como os deslocamentos humanos. Porém, as ações humanitárias em geral, tentam se revestir de neutralidade para balancear os interesses dos refugiados com os dos Estados. Importante destacar que, a partir de meados do século XX, vários Estados passaram a reconhecer a fuga por medo de perseguição em função de raça, religião, nacionalidade, convicções políticas ou filiação social, como um direito individual a ser protegido pela legislação internacional.

Um problema da Convenção de 51, é o fato de ela não definir com clareza o direito de asilo consagrado na declaração Universal dos Direitos do Homem (1948). Por outro lado, um aspecto positivo da Convenção é a defesa dos princípios do non-refoulement, da não-discriminação, regras sobre o estatuto pessoal do refugiado, regras que impedem a punição por entrada ou permanência irregular no país, regras sobre trabalho dos refugiados e regras sobre documentos de identificação e viagem.

O Brasil ocupa destaque na América do Sul por ter sido o pioneiro a regulamentar a proteção aos refugiados: aprovou a Convenção de 1951 em 1960; aderiu ao Protocolo de 1967 em 1972 e, foi o primeiro país a elaborar uma lei específica sobre refugiados (Lei Federal nº 9.474/97) em 1997. Embora não tenha assinado a Declaração de Cartagena de 1984, passou a aplicar o conceito ampliado de refugiado definido nesse encontro.

Notas

HATHAWAY, James C, The Law of Refugee Status, Vancouver: Butterworths Canada Ltd., 1991. American Journal of International Law, vol 87, Issue 2, Abril 1993, pp 348-351.

2 Os 12 países que assinaram a Convenção em julho de 1951 foram: Áustria, Bélgica, Colômbia, Dinamarca, Holanda, Iugoslávia, Liechtenstein, Luxemburgo, Noruega, Reino Unido, Suécia e Suíça (ACNUR, 2013c).

3. ACNUR, 1996a, p. 61
https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/statusofrefugees.aspx

4. Eventos ocorridos antes de 1 janeiro de 1951, devido ao medo de ser perseguido por motivações de raça, religião, nacionalidade, e pertencimento a um grupo social especifico e opiniões política, ou, não tendo uma nacionalidade e estando fora do país de residência em consequência de tais eventos, e que não possa retornar.

5. De acordo com a Convenção de Genebra de 1951, os indivíduos não podem ser mandados contra a sua vontade para um território no qual possam ser expostos a perseguição ou onde corram risco de morte ou ainda para um território do qual se sabe que serão enviados a um terceiro território no qual possam sofrer perseguição ou tenham sua integridade física ou vida ameaçada.

Sobre a autora

Regina Conrado é consultora, socióloga, doutora em Políticas Públicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e integrante do ProMigra


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