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quarta-feira, abril 24, 2024

Curta “Liberdade” discute apagamento de histórias de migrações no bairro paulistano

Após rodar por importantes festivais no Brasil e no exterior, a produção pode ser vista no YouTube; equipe presta apoio ao Centro de Estudos de Cultura da Guiné, retratada no curta

“Sow, Abou e Satsuki se encontram em um bairro de São Paulo chamado Liberdade. Uma história sobre imigração, assombrações e resistência”: esta é a breve e impactante sinopse do premiado curta codirigido por Pedro Nishi e Vinícius Silva.

Intitulado “Liberdade”, o curta joga o tempo todo com o significado cru da palavra, o bairro de mesmo nome no centro da capital paulista, as migrações e a história.

Em live realizada para anunciar o acesso livre à obra, a equipe do curta aproveitou para divulgar a campanha de arrecadação para o Centro de Estudos de Cultura da Guiné, que tem seu importante trabalho retratado no filme.

Liberdade

O curta-metragem de correalização de Pedro Nishi e Vinícius Silva, tanto no roteiro, quanto na direção, foi exibido e reconhecido em mais de 20 festivais no Brasil e no mundo, além de ter sido vencedor do Prêmio Especial do Júri no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Os 25 minutos que compõem o filme são suficientes para narrarem diferentes tempos e origens, além de colocar em foco debates sobre história e apagamento. Através da atuação de Aboubacar Sidibé, Cristina Sano e Mamadou Yaya Sow, o trabalho traz referências ao período escravocrata, à imigração japonesa e à presença atual de imigrantes africanos e latino-americanos no bairro.

A obra começou a ser idealizada após um encontro entre Pedro Nishi e Aboubacar Sidibe (Abou), em um contexto em que o segundo conduzia uma aula de dança e percussão em um colégio de São Paulo.

“Ao final, lembro perfeitamente que ele que tomou a iniciativa para a gente se conhecer, me chamando a atenção para ao menos me apresentar e falar um pouco de mim. Sempre brinco que ele deu o primeiro passo pro nosso filme realmente acontecer. (…) Foi nessa hora, que ele me falou que morava na Liberdade. Isso me marcou de pronto. Ele falou que morava numa casa com outros amigos que também eram imigrantes de países africanos, principalmente da Guiné Conacri, como ele”, comentou Pedro Nishi em conversa com o MigraMundo.

Realizado através de recursos do Prêmio Revelação do Curta Kinoforum, o curta foi elaborado através dos relatos de Abou aos diretores e roteiristas sobre a pensão que gerencia no bairro da Liberdade.

“Nesse momento, eu lembrei da minha bisavó Satsuki – ela durante muito tempo cuidava de uma pensão na Liberdade onde recebia imigrantes japoneses. A partir dali, veio a ideia de fazer um filme sobre esse cruzamento de trajetórias, tempos, experiências migratórias distintas que tinham como ponto em comum o bairro da Liberdade”, explicou o diretor nipo-brasileiro.

No curta, Abou contracena com Cristina Sano, que tem sua personagem inspirada na bisavó de Nishi, e com Sow, um jovem guineense que é barrado pela migração no aeroporto ao chegar ao Brasil.

“Vinicius e eu nos debruçamos num trabalho de roteiro para dar conta da melhor forma possível desse recorte das trajetórias de Abou e Sow, fazendo um cruzamento com duas outras camadas que nos parecia importante: a de Satsuki, minha bisavó, com a imigração japonesa – que acabou inspirando uma das personagens do filme – e do passado do bairro Liberdade atrelado ao apagamento histórico da memória negra em São Paulo. Foi a partir desses processos, estabelecendo pontes sem desviar de suas fissuras, que concebemos o filme Liberdade”, contou Nishi.

Aboubacar Sidibé e Cristina Sano em cena de “Liberdade”.
(Foto: Divulgação)

O lançamento do curta, em 2018, coincidiu com renomeação da estação de metrô do bairro, que passou a se chamar “Japão-Liberdade”.

“Uma vez que o filme aborda justamente os apagamentos históricos sistematicamente praticados ali, foi uma infeliz coincidência a estreia do curta acontecer justamente com uma nova ação política dessa natureza. Naquele momento, eu, Vinicius e toda a equipe do filme achamos importante escrever um texto nos posicionando a respeito”, disse o diretor.

Hoje em dia, ao olharmos para o bairro, é notável a grande complexidade na composição deste lugar. É até um desafio o definir brevemente em palavras. Mas é evidente como, além da presença de pessoas de ascendência do leste asiático, não só japonesas, como também chinesas e sul-coreanas em número extremamente significativo, é cada vez maior a chegada no bairro de pessoas de países africanos como da Guiné, do Congo, da Angola, entre outros e do Haiti.

Sob estas camadas da história do lugar, existe uma outra história, anterior à chegada dos imigrantes japoneses, que deve ser lembrada – e não apagada. A história de no mínimo 400 anos da presença de negros africanos no Brasil permeia este lugar. Antes de tudo a “Praça da Liberdade” foi um pelourinho, onde foi instalada a primeira e única Forca da então Capitania Real de São Paulo, palco de execução de negros escravizados e fugitivos condenados à pena de morte por tal ato” dizia trecho da nota assinada por Pedro Nishi e Vinícius Silva com apoio da equipe do filme curta-metragem Liberdade.

Liberdade e os (não) bem-vindos

Ao mostrar todas as diversas trajetórias que coexistem na Liberdade – mesmo que em tempos diferentes – o curta busca trazer a complexidade do bairro e da história migratória em São Paulo, mas que poderia ser em muitas outras cidades do mundo.

“Para nós, é de extrema importância tentar olhar para toda a complexidade da Liberdade. Sabemos que a Liberdade é um território extremamente complexo, multiforme, com uma história cheia de camadas, vidas e experiências diversas, um lugar que carrega disputas e apagamentos históricos. Ali definitivamente não é apenas um bairro de imigrantes japoneses e que essa narrativa reducionista chancela apagamentos históricos (e sistemáticos) contra a memória negra em São Paulo, e também oculta outras experiências migratórias que também compõem e tem extrema importância na história e na vida do bairro – imigrantes chineses, coreanos, palestinos, sírios; mais recentemente, guineenses, haitianos, congoleses, angolanos; além de pessoas que vieram de outros estados do Brasil”, explicou Nishi.

Antes de ser disponibilizado em março de 2021 no Youtube, a obra produzida por A Flor e a Náusea em parceria com o Centro de Estudos de Cultura da Guiné em 2018, o curta foi exibido em diferentes lugares do mundo, como Madagascar, Alemanha, França, EUA e Escócia.

“Acredito que cada qual se conectou com o filme de sua maneira particular, mas também com pontos universais. Nessa sociedade capitalista com cicatrizes abertas do colonialismo e do imperialismo que vivemos, é notório que a questão da imigração e do refúgio é de importância global, presente e pungente. Nesse aspecto, acho que o filme conversou de forma direta e específica com pessoas de diferentes lugares do mundo (…) Foi surpreendente perceber que o filme que fizemos juntos, um filme tão específico sobre o Abou e o Sow, sobre o Centro de Estudos de Cultura da Guiné, sobre Satsuki e sobre a história do bairro da Liberdade, mesmo tão longe, tocava e dialogava com as pessoas ali [Cinelatino – Encontro de Toulouse, França] de alguma (e tantas) formas” lembrou Nishi.

“Acho que esse contato do filme com pessoas de outros lugares do mundo carrega um processo semelhante ao “gesto síntese” do filme de criar pontes, cruzamentos, perceber inserções entre jornadas distintas, sem deixar atentar para as diferenças, particularidades e fissuras dessas pontes” concluiu.

Tendo em vista os ricos debates que o curta é capaz de proporcionar, para o lançamento oficial e público da obra no Youtube, Abou, Cristina Sano, Pedro Nishi e Vinícius Silva realizaram uma live no mesmo site, mediada por Julia Noá.

Durante o debate foi comentado como movimentos migratórios são muitas vezes violentos e como nem sempre o recebimento do país destino é como previsto.

“Tem uma frase no filme que e acho que é uma síntese do Liberdade que eu acho muito importante que é: Nós somos bem-vindos, mas não somos bem-vindos. Eu acho que é a síntese do Brasil em relação ao imigrante” apontou a atriz Cristina Sano durante o debate online (que pode ser visto no YouTube).

“No Brasil, tem muitos imigrantes de diferentes origens. Eles são bem-vindos, porque são nossos irmãos, mas eles passam muita dificuldade. Então deixam entrar no país, mas não os acompanham e isso é grave. A saúde não é um problema, já que é gratuita. Mas achar um trabalho é complicado e o diploma de outros países não é aceito, não é bem-vindo. Então tem quem venha ao Brasil pensando uma coisa e encontra o contrário” relatou Abou ao MigraMundo. “Eu não posso generalizar todos os migrantes, porque eu conheço mais imigrantes negros vindos da África, é esse o meu trabalho, eu conheço a situação deles. E eu vejo de migrante ocidentais, como da França e dos EUA, e nossas vidas são completamente diferentes”, complementou.

Centro de Estudos de Cultura da Guiné

Nascido em Kamsar, Guiné, Abou sempre teve a cultura tradicional de seu país natal como uma paixão, o incentivando a se capacitar para coreografar, dançar, tocar instrumentos percussivos, cantar, contar histórias, compor música e escrever poesias. No Brasil desde 2012, Abou ministra atualmente aulas de dança no Centro de Estudos da Cultura da Guiné, centro fundado por ele em fevereiro de 2016.

Como mostrado no curta, o centro que fica no bairro Liberdade, também serve de moradia para migrantes. Atualmente, 13 imigrantes africanos vivem no local. 

Além disso, realiza atividades artísticas, culturais e pedagógicas, aulas de dança e percussão, saraus e encontros temáticos e acolhe e aloja artistas africanos em situação de vulnerabilidade.

“Tudo isso é trabalho meu. É um sonho de pequeno. Quanto eu estava no meu país, eu trabalhava com criança, acompanhava projetos com pessoas com deficiência. E é a mesma ideia aqui no Brasil, onde eu trabalho com a minha música”, explicou Abou.

Entretanto, desde sua fundação, o centro tem recebido pouca ajuda financeira. O projeto é mantido por Abou, profissionais voluntários e amigos doadores.

“O Centro Cultural eu comecei com uma casa que estava abandonada e eu coloquei meu próprio dinheiro. Mas como eu queria meu espaço, porque não é fácil fazer o trabalho, eu lutei sem ganhar, mas se eu ganhava algum dinheiro eu colocava no trabalho e na casa. Hoje eu tenho meu espaço para as aulas de dança e percussão e para contar as histórias.  E eu abri uma casa para as crianças também. Mas até hoje não tem acompanhamento [por parte dos poderes públicos]” contou o fundador do projeto.

Desde a criação do centro cultural também se desenvolvem neste espaço as atividades do Ballet Fareta Sidibé, grupo criado e dirigido por Abou e formado por bailarinos e percussionistas, a maioria guineenses que transformam em dança e música a vida das aldeias da Guiné.

Além disso, um dos projetos pedagógicos do Centro se chama Sourir Sourir, que tem como objetivo servir como um contra turno escolar para filhos de imigrantes africanos. Atualmente, o projeto recebe 14 crianças, filhos de africanos provenientes da Guiné-Conacri, Guiné Bissau, Camarões, Nigéria e Mali.

Tento em vista as dificuldades para manter o espaço e suas atividades, principalmente com a crise social e econômica em decorrência da pandemia, o centro abriu uma campanha para arrecadação de doações.

Segundo o texto da arrecadação oficial, a presença deste centro cultural reproduz a importância que espaços como este têm na Guiné para a construção e manutenção da identidade dos povos para suas gerações mais novas. A formação neles oferecida é paralela a uma educação formal, e frequentemente inspira os jovens a se dedicarem a uma carreira artística. “O fato de serem os próprios migrantes a ensinar colabora para a construção da representação social dos africanos, seu modo de vida e sua cultura”, complementa o texto.

“A ideia do Centro é ajudar as crianças de pais africanos que nascem no Brasil, mas não tem condição de levar o filho para a África para conhecer. Então, a gente conta histórias dos países, tem oficina de dança, percussão e educação. Não é só da Guiné-Conacri, mas também de outros países, como Senegal, Mali, Guiné Bissau, Libéria, Costa do Marfim”, explicou Abou.

“É por conta desse cenário desolador e difícil [político, econômico e social] que a campanha de financiamento do Centro de Estudos de Cultura da Guiné se faz tão importante. Foi necessária uma mobilização autônoma e independente do Centro de Cultura para garantir a manutenção de suas atividades (atividades estas que constituem uma rede de apoio de extrema importância para a comunidade, não só imigrante, do bairro da Liberdade), uma vez que o poder público se faz ausente e inoperante nesse momento de crise. Acredito que as críticas que o curta traz continuam atuais, infelizmente, porém é ainda pior. As feridas estão mais abertas e a situação mais grave, tristemente. Mais do que nunca, é importante a gente estar juntos e fortalecer no que for possível essa luta. (…)A intenção dele [o curta] estar no youtube é que ele alcance o máximo possível de pessoas. E que isso ajude a alavancar a campanha, isso é o mais importante agora” pontuou Nishi.

Interessados no trabalho realizado pelo Centro e por Abou, podem ver as redes sociais do Centro (no Instagram, @centroculturaldaguine) ou clicar aqui. O mesmo link pode ser usado para fazer doações na plataforma da Benfeitoria.

O curta Liberdade, de Pedro Nishi e Vinicius Silva, pode ser acessado na integra pelo YouTube. Interessados em ver o trailer, devem clicar aqui.

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