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quinta-feira, março 14, 2024

Lei de Migração entra em vigor, mas regulamentação ameaça avanços

Falta de diálogo do governo com a sociedade civil foi uma das marcas do processo pós-sanção da nova lei; entidades da sociedade civil ainda buscam mudanças e prometem ir à Justiça, caso necessário

Por Rodrigo Borges Delfim
Em São Paulo (SP)
Atualizada às 22h49 de 21/11/17

A nova Lei de Migração (lei 13.445/17) entra em vigor no Brasil a partir desta terça-feira (21). Aprovada pelo Congresso em abril deste ano, ela reconhece o migrante, independente de sua nacionalidade – ao contrário do Estatuto do Estrangeiro, agora extinto, que vê no migrante uma potencial ameaça à soberania nacional. Também saiu no Diário Oficial da União o decreto 9199/17, que regulamenta a nova lei de Migração.

Apesar dos cerca de 20 vetos feitos pelo governo federal no ato de sanção, em meio deste ano, a nova Lei de Migração é considerada uma vitória da sociedade civil organizada, que há décadas tentava mudar a legislação migratória nacional. No entanto, a regulamentação aplicada à nova legislação é alvo de fortes críticas da sociedade civil organizada, que considera que o texto desvirtua o que a própria lei diz.

“Estamos diante de um governo que não entende que um ato normativo como um decreto não pode contrariar uma lei”, lamenta Camila Asano, diretora de relações externas da Conectas Direitos Humanos, em nota publicada no site da instituição. A ONG é uma das mais ativas no processo de discussão da nova lei.

Nova Lei de Migração revoga o Estatuto do Estrangeiro e reconhece o migrante como sujeito de direitos, ficando de acordo com a Constituição.
Crédito: Missão Paz

Regulamentação polêmica e sem diálogo

As mudanças feitas pelo governo no ato de sanção ligaram um sinal de alerta para o processo de regulamentação da nova lei, que poderia atenuar ou aprofundar os efeitos dos vetos. Em torno de 30 artigos da Lei de Migração dependem de decretos complementares para valerem de fato. E enquanto a elaboração da nova lei contou com participação tanto do meio político como da sociedade civil, o processo de regulamentação foi marcado pela falta de transparência do governo federal e pelo espaço reduzido para diálogo junto à sociedade.

Até a publicação do decreto de regulamentação, as únicas oportunidades abertas pelo governo para discutir o texto foram: a atividade presencial do Fórum de Participação Social, promovida em agosto pelo CNIg (Conselho Nacional de Imigração, ligado ao Ministério do Trabalho), em São Paulo, e que produziu um total de 68 propostas para o decreto; a consulta pública da minuta do decreto, feita pela internet entre os dias 1 e 13 de novembro; e uma audiência pública marcada para 13 de novembro em Brasília.

Uma última audiência foi marcada pela sociedade civil para 15 de novembro, no auditório da Missão Paz, em São Paulo. Embora integrantes do governo federal tivessem confirmado presença do evento, nenhum deles compareceu.

Mesa de abertura da atividade presencial do Fórum de Participação Social, do CNIg, em São Paulo (agosto/17).
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

Com 318 artigos (quase o triplo dos 121 da nova lei, já excluindo os vetados), o texto do decreto 9199/17 ignora a maioria das sugestões dadas durante as audiências e consultas públicas e vai contra grande parte dos avanços contidos na nova Lei de Migração. O decreto ainda posterga a regulamentação de pontos importantes da nova Lei de Migração, como o caso dos vistos e autorizações de residência por razões humanitárias. O artigo 36 do texto, por exemplo, determina que um “ato conjunto dos Ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e Segurança Pública e do Trabalho definirá as condições, prazos e requisitos para emissão do visto”.

Outro problema do decreto é a permanência de termos como “imigrante clandestino” e a possibilidade de prisão para migrantes em situação irregular por solicitação da Polícia Federal (Art. 211) – medida contrária ao que diz o artigo 123 da própria Lei de Migração, que determina que “ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias”.

Ao final da audiência do dia 15, foi divulgada uma carta aberta, endossada por dezenas de instituições da sociedade civil, que pontuou as principais lacunas e interpretações que vão contra ao que diz a própria Constituição e a lei que o decreto regulamenta – a íntegra da carta pode ser lida aqui:

  • Apresenta sérias lacunas postergando, para “atos ministeriais futuros”, critérios e condições para acesso a direitos;
  • Mantém possibilidades de arbitrariedades e discricionariedades ao não disciplinar e definir termos amplos previstos em lei, como “atos contrários aos princípios e objetivos constitucionais”;
  • Mantém a confusão entre justiça criminal e migração quando condiciona o acesso ao direito de migrar à ausência de antecedentes penais e condenação penal, concretizando uma dupla penalização;
  • Mantém a pessoa aguardando expulsão no Brasil sem a possibilidade de regularização migratória;
  • A minuta contradiz a Lei, que garante a não criminalização de migrantes por sua condição migratória, e prevê a prisão de migrantes devido à sua condição migratória;
  • Inclui previsão de prisão para fins administrativos, prática vedada pela Constituição Federal;
  • Dificulta ou restringe as possibilidades de reunião familiar;
  • Reduz de 90 para 30 dias o prazo para que o migrante se apresente à Polícia Federal após publicação no D.O.U., em vista de regularizar documentos/residência permanente;
  • Não estabelece parâmetros sobre as condições, prazos e requisitos para a emissão do visto humanitário, uma vez que se trata de um dos temas mais emblemáticos do novo conjunto normativo sobre Migrações no Brasil;
  • Cria um sistema complexo e intrincado de tipologias de vistos e residências, atrelando o acesso a documentos às motivações, ocupações e condições limitadas e provisórias;
  • Restringe a obtenção de visto de trabalho e não esclarece o que quer dizer com prioridade para “mão-de-obra estratégica”, mantendo a lógica seletiva do Estatuto do Estrangeiro;
  • Mantém a atual prática do uso do “protocolo” que restringe o acesso a direitos já garantidos;
  • Ao detalhar apenas alguns motivos (“por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertinência a grupo social ou opinião política”) que determinam a “não devolução”, reduz o conceito de refúgio, na medida em que essas não são as únicas razões que ameaçam a vida das pessoas;
  • Dá poder a PF para disciplinar via portaria sobre matérias centrais (como deportação, expulsão e repatriação). A PF, no entanto, é um ente subordinado que aplica as normativas e não pode regulá-las ou ser discricionário na matéria. É aplicador da normativa e não formulador das regras;
  • Não há prazos previstos para edições dos atos complementares, tampouco a previsão de participação social em suas elaborações.

“A dita proposta constitui uma grave ameaça a importantes avanços, tanto no que se refere aos direitos dos migrantes como no que tange à capacidade do Estado brasileiro de formular políticas adequadas em relação a essa relevante matéria”, assinalaram os professores André de Carvalho Ramos, Deisy Ventura e Pedro Dallari em artigo publicado no último dia 18 no jornal Folha de S.Paulo (leia aqui). Os três integraram a Comissão de Especialistas constituída pelo Ministério da Justiça que teve a finalidade de elaborar uma proposta de Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil (2013-2014).

Outra entidade a publicar carta aberta sobre o decreto foi a Rede Espaço Sem Fronteiras, que também destacou a distorção que o decreto causa no que prega a nova lei. “Apesar de se impor como uma substituição do antigo Estatuto do Estrangeiro, implementado na Ditadura com os princípios voltados para questões de segurança nacional, a regulamentação desta lei acabou por fazer um paralelo com o antigo Estatuto, distanciando-se muito do desejado para ela. A manutenção deste decreto representará um retrocesso ao Estatuto do Estrangeiro e um agravamento da política migratória nacional”.

Em nota enviada à imprensa, o Ministério da Justiça informou que “o texto do decreto se encontra na Casa Civil e aguarda assinatura do presidente da República para publicação no ‘Diário Oficial da União’. O Ministério da Justiça e Segurança Pública irá se manifestar e tirar todas as dúvidas da imprensa após ter conhecimento da redação final.”

Migrantes querem maior participação e acesso aos debates sobre a Lei de Migração.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

Próximos capítulos

A sociedade civil, no entanto, já se articula para lutar contra o decreto. “Estudaremos as medidas cabíveis contra os trechos do decreto que contrariam a lei. Além disso, manteremos uma vigília incansável por uma regulamentação coerente dos trechos ainda não contemplados pelo decreto, como o visto humanitário”, completa a Conectas na nota no site da entidade.

“Caso aprovada sem alterações substanciais, a minuta não cumprirá com a sua finalidade de detalhar e tornar efetiva a mudança do paradigma em prol da garantia dos direitos humanos proposta pela Lei n° 13,445/17. Mas, legislará sobre a questão migratória em sentido contrário ao espírito da lei e em desacordo com a Constituição Federal de 1988, o que dará ensejo às medidas judiciais cabíveis”, finaliza a carta aberta divulgada no dia 15.

Um caminho possível é a apresentação de um Projeto de Decreto Legislativo que suste os artigos nos quais o decreto 9199/17 contraria a lei e vai além do direito de regulamentar.

Avanços mantidos e novas frentes

Mesmo com os vetos e com uma regulamentação polêmica, a nova Lei de Migração conserva avanços importantes. Entre eles estão:

  • revogação do Estatuto do Estrangeiro e da lei 818, de 1949 (sobre nacionalidade), consideradas arcaicas e que geravam insegurança jurídica;
  • Lei em consonância com a Constituição de 1988 (ao contrário do Estatuto do Estrangeiro) e com os tratados internacionais assinados pelo Brasil, ao garantir igualdade de tratamento entre brasileiros e migrantes de outros países que residam no país;
  • compromisso com o combate à xenofobia e demais formas de discriminação contra migrantes;
  • combate ao tráfico humano, com estabelecimento de punições para que praticar esse tipo de crime;
  • Previsão de assistência a apátridas, asilados e brasileiros no exterior, determinando cooperação jurídica internacional para essas situações;
  • garantia à participação e manifestação política, vedadas pelo antigo Estatuto do Estrangeiro e que geravam grande insegurança sobre os migrantes;
  • impedimento de repatriação, deportação e expulsão coletivas, que são vedadas pelo Direito Internacional;
Cartaz na Marcha dos Imigrantes de 2016 pede dignidade para os migrantes no mundo todo.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

Pontos que foram vetados na sanção da Lei de Migração, como a anistia a migrantes em situação irregular, também podem ser retomados em forma de projeto de lei. Já há, inclusive, uma proposta de anistia na Câmara dos Deputados – o PL 7876/2017, apresentada no último dia 13 de junho. Seu autor é o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP), que foi relator da nova Lei de Migração quando ela tramitou na casa, entre 2015 e 2016.

“Tomaremos as medidas políticas e jurídicas necessárias para que o que foi votado no Congresso Nacional seja cumprido, garantindo o direito de ir e vir dessas pessoas”, afirma o deputado, em vídeo publicado nas redes sociais, criticando o decreto.

O fim do Estatuto do Estrangeiro também permite a possibilidade de novas frentes de atuação em favor dos direitos dos migrantes no Brasil. Um exemplo ocorreu ainda em junho deste ano, antes da entrada em vigor da nova lei, quando a Justiça Federal em São Paulo atendeu a um pedido da Defensoria Pública da União e deferiu a gratuidade de taxas para regularização migratória para migrantes que não possuem condições econômicas de arcar com os pagamentos. A Lei de Migração, que ainda estava no período de “vacatio legis” – que é o período entre a sanção e a entrada em vigor da nova legislação -, foi citada na decisão.

De qualquer forma, a nova Lei de Migração deve continuar a ser assunto recorrente e motivo de mobilização junto à sociedade, seja para lutar contra retrocessos, seja para conservar avanços já obtidos.

 

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