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quinta-feira, março 28, 2024

Por um mundo pós-fronteiriço

A fronteira se tornou uma das palavras-chave para ler o mundo, interpretá-lo e desvelá-lo. E a cena protagonizada por uma criança haitiana na fronteira Brasil-Peru exemplifica como elas têm sido protagonistas de um mundo pós-fronteiriço

Por Handerson Joseph*

No último dia 14 de fevereiro, uma criança haitiana de aproximadamente 3 anos protagonizou uma cena pós-fronteiriça e humanizou a fronteira. Ela apertou as mãos dos policiais peruanos que formavam uma barreira na fronteira do Brasil com o Peru, no estado do Acre, para impedir a mobilidade das pessoas haitianas que queriam sair do Brasil, passando pelo país vizinho, para retornar ao Haiti e/ou tentar uma vida melhor em outros países.

Enquanto os policiais impediam os migrantes haitianos de cruzarem a fronteira, usando as forças estatais, o menino distribuía apertos de mãos e abraços aos policiais. Uma das cenas mais profundas das/nas fronteiras nesses últimos tempos, no seu gesto, desprovido da securitização das fronteiras, lá estava uma fronteira afetuosa possível, aquela de união enquanto humanos, independente das nossas diferenças étnico-raciais, nacionais, linguísticas, religiosas etc.

No gesto do menino negro migrante espelha-se a fronteira da paz, do amor, da compaixão pelo outro. Por vezes os órgãos nacionais e internacionais pregam a paz e a união, mas na prática exercem suas forças destruidoras mais do que as forças humanas e afetuosas para a gestão das fronteiras e das mobilidades das pessoas.

Para transformar as fronteiras

A ideia de um mundo pós-fronteiriço para o qual tenho chamado a atenção em alguns dos meus trabalhos acadêmicos talvez seja a capacidade de transformar as fronteiras estatais em humanizadoras. O mundo e os governos têm muito o que aprender com as crianças, principalmente nos modos de gestão das fronteiras e das migrações.

As crianças têm sido protagonistas de um mundo pós-fronteiriço. Muitas delas, quando chegam às fronteiras, principalmente entre os Estados Unidos e o México, são separadas de seus pais e familiares, sem saber se um dia poderão se reencontrar nos corredores da vida e nos corredores migratórios. Outras não agem olho por olho, dente por dente, mas respondem à militarização das fronteiras com abraços e apertos de mãos, como a cena do menino haitiano.

Nessa última década, a fronteira se tornou uma das palavras-chave para ler o mundo, interpretá-lo e desvelá-lo. Hoje, as condições de possibilidades de uma transformação do mundo passam necessariamente por uma transformação das fronteiras, passam pela demolição dos muros, a destruição das cercas, a extinção dos regimes de controle e o desmantelamento das tecnologias de vigilância das fronteiras e das migrações.

Negação das fronteiras?

Os regimes e as tecnologias de controle e de dominação devem ser obrigatoriamente substituídos por mais pontes (simbólica e materialmente) para unir as pessoas e os países, por mais políticas equitativas entre indivíduos e nações para diminuir as desigualdades, por mais abraços e apertos de mãos entre aqueles que são de nacionalidades diferentes, em outras palavras, por um mundo pós-fronteiriço, notadamente um mundo pós-fronteiras desagregadoras e assoladoras.

As fronteiras estatais devem entrar em ruínas para ceder espaço àquelas que são humanas e humanizadas, no sentido mais profundo e sensível do termo humano. Advogar por um mundo pós-fronteiras não significa negar a existência (ainda forte) das que existem entre Estados.

Não se trata, necessariamente, de um mundo sem fronteiras, não há como negá-las, pois onde há diversidade e diferenças, lá estão elas, sejam físicas ou simbólicas (culturais, étnicas, linguísticas, religiosas etc). Reafirmar a existência das fronteiras não significa advogar em nome das que são desagregadoras, mas sim dar um passo para transformá-las, humanizá-las, superando a dimensão estadocêntrica para alcançar um mundo pós-fronteiriço. O futuro do mundo é a mobilidade e o devir migratório.

Sobre o autor

Handerson Joseph é Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, com doutorado sanduíche pela École des Hautes Études En Sciences Sociales (EHESS) e pela École Normale Supérieure (ENS) em Paris. Professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Fronteira (PPGEF) da Unifap (Universidade Federal do Amapá), foi um dos fundadores e Coordenador do PPGEF (2019-2020). Fundador do Programa de Apoio a Migrantes e Refugiados (PAMER).

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