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sábado, abril 27, 2024

A conjuntura dos migrantes venezuelanos em situação de rua: os (in)visíveis do Terminal Rodoviário de Boa Vista

A proximidade dessas pessoas com a estrutura da operação humanitária provoca questionamentos sobre os desafios para a efetivação plena da assistência humanitária e sobre a urgência de adoção de uma governança multinível com a cooperação das três esferas governamentais

Por Cintia Barbosa Barros
Do ProMigra

A migração venezuelana para o Brasil continua sendo um desafio para a aplicação efetiva de políticas públicas migratórias pelas autoridades governamentais brasileiras. Entre as principais medidas tomadas pelo Governo Federal para receber o deslocamento migratório venezuelano está a implementação da Operação Acolhida, que oferece assistência humanitária aos migrantes em três eixos: ordenamento da fronteira, abrigamento e interiorização.

Em 2022 a Operação Acolhida foi reconhecida pela ONU como um trabalho pioneiro na prestação de assistência humanitária, colocando o Brasil em posição de destaque internacional. Apesar desse reconhecimento e da forte atuação governamental juntamente com agências internacionais e organizações da sociedade civil, ainda é um desafio gerenciar o deslocamento intenso de migrantes venezuelanos que ingressam diariamente no território brasileiro.

De acordo com informações divulgadas pelo Portal da Imigração, em janeiro de 2023 foram registradas 16.953 entradas de venezuelanos no Brasil, o que representa um aumento significativo em comparação ao mesmo período do ano anterior, quando houve a entrada de 14.627 venezuelanos. Apesar de toda a estrutura do aparato humanitário e a sua importância para a efetividade das políticas migratórias brasileiras, o caráter multifacetado do deslocamento venezuelano cria um desafio na prestação da assistência humanitária.

Venezuelanos em situação de rua

Um dos exemplos mais sintomáticos é o caso dos migrantes venezuelanos em situação de rua no entorno da rodoviária de Boa Vista. O Terminal José Amador de Oliveira, localizado bem próximo aos Abrigos Humanitários, do Posto de Interiorização e Posto de Triagem (todos da Operação Acolhida), tornou-se uma “ocupação espontânea” criada pelos venezuelanos. O idioma espanhol é praticamente o idioma oficial da região. A situação de vulnerabilidade foi ainda mais potencializada com o fechamento de alguns abrigos na capital roraimense.

Há uma diversidade de serviços no entorno: vendedores ambulantes e pequenas lanchonetes servem de apoio a quem chega em Boa Vista pelo terminal rodoviário e fomentam a economia local. Bem próximo dali, um substantivo feminino do espanhol chama a atenção: “peluqueria”, escrito em uma placa improvisada com um pedaço de papelão.  São os microempreendedores informais, uma saída para conseguir sobreviver numa das capitais mais caras do norte do Brasil.

Caminhando mais um pouco e aguçando o olhar, é possível notar que roupas estão estendidas nas grades que separam a rodoviária da rua, funcionando como um varal improvisado. À noite, o local se torna um espaço para dormir, criando um cenário que lembra a obra “Retirantes”, de Candido Portinari. Apesar da situação na região, alguns projetos estão presentes em seu entorno. O Projeto Orinoco – Águas que Atravessam Fronteiras, organizado pela Cáritas e o Posto de Recepção e Apoio (PRA), gerido pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), distribui refeições e oferece dormitórios, tudo de forma gratuita.

A proximidade dessas pessoas com a estrutura da operação humanitária provoca questionamentos sobre os desafios para a efetivação plena da assistência humanitária e sobre a urgência de adoção de uma governança multinível com a cooperação das três esferas governamentais (municipal, estadual e federal). É urgente sensibilizar gestores públicos na criação de políticas públicas locais para essa demanda, não só para venezuelanos, mas também outros migrantes, principalmente por Roraima ter uma tríplice fronteira.

Desafios

Como diria Bauman, eles se tornam “os invisíveis e indesejados” aos olhos das autoridades, encontrando-se em situação de rua por diversos motivos que vão desde a abordagem ideológica da situação da migração venezuelana até episódios de expulsão dos abrigos por violação das normas. Além disso, há aqueles que aguardam por uma vaga nos abrigos ou perderam o emprego e não conseguem arcar com o custo do aluguel.

Há ainda situações tão extremas de vulnerabilidade que colocam essas pessoas em posição de exclusão dentro do sistema humanitário, permanecendo à margem das políticas públicas que ainda não foram sequer pensadas localmente.

E como enxergar esses invisíveis? Esse é um desafio para a sociedade local que muitas vezes fica indiferente ao esforço que o Brasil tem feito nessa acolhida e abre os olhos apenas para os problemas. Por outro lado, devemos dar o reconhecimento merecido à Operação Acolhida e toda sua estrutura e atuação com parceiros, que mesmo com os diversos desafios enfrentados nos últimos anos (a pandemia, por exemplo, que inviabilizou o trânsito das fronteiras terrestres e potencializou as vulnerabilidades dos migrantes em Roraima) conseguiu acolher com dignidade aos que buscaram seus serviços. De fato, é uma iniciativa pioneira na prestação de assistência humanitária implementada pelo Estado brasileiro que merece todo louvor.

Por outro lado, para que esses resultados tenham um maior alcance, é fundamental que as demais esferas governamentais trabalhem em conjunto, uma vez que a centralização da solução das demandas apenas na Operação Acolhida demonstra uma limitação em lidar com a complexidade do fenômeno migratório. É necessário, portanto, que a governança seja multinível e que haja uma atuação solidária para solucionar a questão daqueles que se tornaram “invisíveis”.

Sobre a autora

Cíntia Barbosa Barros é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI-PRI), na Universidade Federal do ABC, onde atualmente pesquisa sobre a prática de Direitos Humanos nos Abrigamentos de Venezuelanos localizados na cidade de Boa Vista, membra do Promigra (FDUSP) e graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza.

Referências

BAENINGER, Rosana; SILVA, João Carlos. Migrações Venezuelanas, Campinas: Unicamp, 2018.

BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017.

INSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS. Site do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH).  Disponível em: http://www.migrante.org.br/index.php (acesso em: 15/05/2023).

MAHLKE, Helisiane. Direito Internacional dos Refugiados. Novo Paradigma Jurídico. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017.

INSTITUTO MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS. Site do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH).  Disponível em: http://www.migrante.org.br/index.php (acesso em: 20/05/2022).

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