Por Bianca Medeiros
No Martim Moniz, em Lisboa, uma operação policial recente gerou indignação ao encostar dezenas de imigrantes, principalmente trabalhadores estrangeiros, contra as paredes de uma rua fechada pela PSP. A autoridade alegou tratar-se de uma ação de rotina, mas testemunhas e organizações de direitos humanos apontaram o episódio como um exemplo de perfilamento racial e abuso de poder. A operação, amplamente registrada em vídeos, levantou preocupações sobre a proporcionalidade das ações policiais e a persistência de práticas discriminatórias em áreas com alta concentração de imigrantes.
A xenofobia institucional, é definida por Bauman (2005) como “a exclusão sistemática do outro por meio de mecanismos burocráticos e normativos”, está enraizada em práticas que reforçam desigualdades sociais e violam princípios fundamentais de direitos humanos. A operação no Martim Moniz exemplifica o que autores como Goffman (1963) descreveram como a estigmatização do “estrangeiro”, atribuindo-lhe características negativas que justificam ações discriminatórias.
O preconceito contra imigrantes, especialmente quando promovido ou tolerado pelo Estado, constitui uma violação direta de tratados internacionais dos quais Portugal é signatário.
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1965, determina que os Estados devem garantir a igualdade de todos perante a lei, independentemente de raça, cor, ou origem nacional. No entanto, operações como a realizada no Martim Moniz sugerem que há uma discrepância entre os compromissos internacionais assumidos por Portugal e a prática doméstica.
Além disso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu artigo 7º, reforça que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei”. Entretanto, como ressalta Fábio Konder Comparato (2003), a concretização dos direitos humanos requer não apenas sua positivação em tratados, mas também a criação de estruturas institucionais e sociais que combatam discriminações enraizadas.
No âmbito do Sistema Europeu de Direitos Humanos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem reiteradamente condenado práticas de discriminação racial em operações policiais, destacando que tais ações violam o artigo 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que proíbe a discriminação em todas as suas formas. Casos como B.S. v. Spain e Timishev v. Russia ilustram a postura firme do TEDH ao exigir que Estados membros não apenas evitem discriminações, mas também implementem políticas eficazes para proteger minorias e imigrantes.
Mas o que fazer quando a discriminação está incorporada nas estruturas do Estado? Como apontado por Bourdieu (1998), o conceito de “violência simbólica”, que se manifesta por meio de práticas normalizadas de exclusão e marginalização, se reflete no cotidiano de milhares de migrante mundo a fora, mas se reflete principalmente na conduta estatal por meio das atuações policiais e, em casos de países com alta concentração de imigrantes, como Portugal, mais especificamente como Martim Moniz e Cova da Moura, locais frequentemente associados a essa violência institucional.
Estudos recentes realizados pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) revelou que casos de xenofobia registrados aumentaram mais de 400% nos últimos cinco anos, sendo a comunidade brasileira a mais afetada. Esse aumento reflete um cenário de crescente intolerância em setores variados, incluindo segurança pública, habitação e mercado de trabalho.
O uso desproporcional de força e operações direcionadas a grupos específicos violam diretamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade, ambos pilares do Estado de Direito e dos Direitos Humanos. Em casos como o do Martim Moniz, é fundamental lembrar a Recomendação Geral nº 31 da CERD, que orienta os Estados a evitar práticas de “perfilamento racial” em operações policiais.
Segundo Luís Roberto Barroso (2021), a polícia, como braço operacional do Estado, não deve ser instrumento de discriminação, mas, sim, de proteção igualitária. A ausência de protocolos claros e a falta de treinamento adequado em direitos humanos para as forças de segurança contribuem para perpetuar ciclos de abuso e exclusão.
E pior, a responsabilização por ações de abuso de poder é central para a reconstrução da confiança pública nas instituições, mas ela não acontece. A omissão do Estado Portugues, incentivado pela força crescente de opiniões e ações partidárias anti migrantes, fazem com que organizações não governamentais, como a Humans Before Borders, tenha desempenhado um papel crucial ao denunciar abusos e oferecer suporte jurídico às vítimas.
Segundo relatório da ONG divulgado em 2024, 70% das denúncias de abuso de autoridade contra imigrantes em Portugal não resultam em sanções efetivas, evidenciando uma lacuna no sistema de justiça.
Nesse contexto, autores como Hannah Arendt (1951) destacam que a falta de accountability institucional enfraquece os fundamentos democráticos e promove um ambiente de impunidade. Para Arendt, a responsabilidade política deve ser acompanhada de uma responsabilização ética que garanta a dignidade e o respeito pelos direitos fundamentais de todos.
Obviamente, para que casos como o do Martim Moniz não se repitam, é imprescindível adotar uma abordagem integrada que envolva reformas institucionais e ações educativas. A formação contínua das forças de segurança em direitos humanos, aliada à criação de mecanismos eficazes de denúncia e acompanhamento, é essencial para combater a discriminação estrutural.
Além disso, a implementação de políticas públicas inclusivas, conforme recomendado pela Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, pode ajudar a reduzir as desigualdades e promover uma convivência multicultural harmônica. Como defende Judith Butler (2009), a luta pela igualdade requer não apenas a desconstrução de estruturas opressoras, mas também o reconhecimento ativo da interdependência entre todos os membros da sociedade.
Sobre a autora
Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos.
Referências
Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Zahar, 2005.
Goffman, Erving. Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. LTC, 1963.
Bourdieu, Pierre. Meditações Pascalianas. Bertrand Brasil, 1998.
Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. Saraiva, 2003.
Barroso, Luís Roberto. A Constituição e seu Futuro. Fórum, 2021.
Butler, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto?. Civilização Brasileira, 2009.
Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras, 1951.
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