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terça-feira, dezembro 10, 2024

A Lei de Migração e o Decreto de regulamentação: entraves e desafios

Enquanto a Lei de Migração representa um avanço social em relação as migrações no Brasil, o decreto regulamentador caminhou na direção contrária

Na última terça-feira (24) completaram-se cinco anos da sanção da Lei de Migração (Lei 13.445/2017), regulamentada seis meses depois por meio do Decreto 9.9199/2017 . Com um processo marcado pela incessante luta de diversos membros da sociedade civil organizada, que se desdobrou durante décadas para alterar a legislação migratória nacional, vigente desde o período de ditadura militar, ainda com o sucesso na aprovação da lei, tiveram que se defrontar com diversos retrocessos ocasionados pelo Decreto que a regulamentou, como será discutido a seguir neste balanço histórico.

A norma substituiu o regimento do Estatuto do Estrangeiro e revogou a Lei 818, de 1949, sobre nacionalidade, ambas consideradas arcaicas e que geravam insegurança jurídica para imigrantes. Ela propõe uma mudança paradigmática no que tange à agenda das migrações internacionais no Brasil, pautada na defesa dos direitos humanos aos imigrantes e em repúdio à xenofobia, racismo e quaisquer outros tipos de discriminação. Além disso, a Lei de Migração condiz com a Constituição de 1988 e com tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, ao garantir igualdade de tratamento entre brasileiros e imigrantes residentes no país.

Enquanto o processo de diálogo com a sociedade civil a partir de uma construção coletiva durante a tramitação do projeto de lei 2516/2015, proposto pelo senador Aloysio Nunes (PSDB), cujo relator do projeto foi o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP),  por outro lado tem-se a elaboração de um decreto para a regulamentação da lei, conduzida pelo então governo de Michel Temer, com o mínimo de consulta do texto pela sociedade civil organizada.

A participação social na elaboração do Decreto 9.9199/2017 foi tão limitada que ocorreram somente três eventos abertos, nos quais as propostas sugeridas pela sociedade civil foram quase completamente ignoradas. O texto consolidado do decreto foi divulgado na mesma data do lançamento da Lei de Migração, com quase o triplo de artigos da legislação objetiva-se regulamentar. Um ato normativo como um decreto não deve, de forma alguma, contrariar uma lei, como ocorre no episódio mencionado, sendo que este decreto não foi devidamente discutido pela sociedade.

Ainda assim, era urgente a extinção do Estatuto do Estrangeiro 6.815/1980, por se tratar de uma legislação anacrônica e altamente discriminatória, contradizendo em absoluto a postua do Brasil enquanto vanguardista no que se refere à temática migratória. O Estatuto previa a prisão para fins de deportação, além da expulsão de imigrantes em situação de irregularidade e outras situações diversas, incluindo em casos de “vadiagem e mendicância”, conforme o Art. 65 do antigo regimento legal.

As mudanças da, até então, Nova Lei de Migração

A transição para a então nova lei de migração busca a desburocratização dos procedimentos para a regularização migratória, a possibilidade de reunificação familiar, erradicação da apatridia e introdução de vistos de acolhida humanitária, aplicados inicialmente para haitianos e sírios e, mais recentemente, para afegãos e ucranianos. A iniciativa pretende que indivíduos em deslocamento que estejam em situação de risco possam se deslocar de maneira mais segura para o Brasil e, ao chegarem ao país, possa facilitar o processo para a obtenção da documentação.

A Lei promove a entrada regular e a regularização migratória como princípios norteadores, além de assegurar a isenção das taxas para emissão de documentos em casos de hipossuficiência econômica, inexistente durante o regimento do Estatuto do Estrangeiro. Estabelece categorias de vistos para o ingresso e permanência no Brasil, dos quais inova-se com o visto de acolhida humanitária a apátridas e migrantes em países no qual ocorre uma “situação de  grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário”, tendo sido aplicada aos nacionais da Síria, Haiti, Afeganistão e, mais recentemente, da Ucrânia.

Ainda, promove o acesso igualitário de imigrantes aos serviços públicos como, programas e benefícios sociais, educação, assistência jurídica integral pública, emprego, moradia, seguridade social e bancarização como princípio da nova lei. Extingue-se a deportação e extradição por crimes políticos ou de opinião. Por fim, preserva e garante o direito à mobilização política em protestos e o direito à organização e associação sindical, antes vetados pelo Estatuto do Estrangeiro.

No meio do caminho, tinha o Decreto

O Decreto 9.9199/2017 que regulamenta a lei de migração surge como um grande empecilho no processo de renovação da legislação migratória nacional, sendo que, ao invés de servir como esclarecimento de procedimentos específicos para a execução da lei, acaba por contrariar a própria legislação ao retroceder em diversos tópicos que vinham sendo discutido amplamente pela sociedade civil organizada. Dentre estas contrariedades, está a confusão entre a justiça criminal e migratória que permanece ao se restringir o direito de migrar pela exigência da comprovação da ausência de antecedentes penais e condenação penal prévia para a obtenção da autorização de residência.

Além disso, o Decreto preserva uma terminologia antiquada, como o termo “imigrante clandestino”, que apresenta resquícios da criminalização do migrante outrora presente no Estatuto do Estrangeiro. Por fim, o Decreto não regulamenta os parâmetros e condições de prazos nem documentação necessária para a emissão dos vistos humanitários, que deveria ser um dos aspectos mais promissores da nova lei, sendo necessária a criação de Portarias para regulamentar a oferta de vistos humanitários para cada situação específica, como tem sido de praxe nos casos experenciados na aplicação do visto até então, o que causa uma certa insegurança jurídica e dificuldades processuais.

Embora os vetos presidenciais e a polêmica da regulamentação da lei tenham afetado o cumprimento das demandas históricas da sociedade civil, a Lei de Migração pôde preservar avanços importantes, dentre os quais o estabelecimento de medidas punitivas no combate ao tráfico humano, a previsão de assistência a apátridas e brasileiros localizados no exterior, estabelecendo meios de cooperação jurídica internacional para essas situações, a garantia de participação e manifestação política, antes vedadas pelo Estatuto do Estrangeiro e o impedimento de repatriação, deportação e expulsão coletivas.

Desafios

Passado meia década alguns desafios permanecem e há questões mal resolvidas após 5 anos de aplicação da Lei de Migração, sendo o decreto de regulamentação o principal causador de incongruências, pois, além de contrariar vários pontos da Lei de Migração, o decreto de regulamentação também deixou de fora pontos importantes do texto. Um exemplo é a criação da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, que teria como propósito coordenar e articular ações intrasetoriais e intraministeriais, contando com a participação de organizações da sociedade civil, com o intuito de promover o acesso a direitos e facilitar a vida de quem migrou para o país. Porém, como o própiro inciso primeiro do artigo 120 da Lei de Migração estipula, seria necessário um ato normativo do Poder Executivo federal para regulamentar esta Política, fato que não ocorreu até o presente momento.

Para os próximos anos, é necessário que haja a maximização dos valores consagrados na Lei de Migração, em contrapartida ao Decreto regulamentador, em que se enfatize a cooperação entre os Estados e Municípios para a efetivação de outras políticas públicas em caráter transversal, sobretudo no que tange à saúde, educação e assistência social. Além disso, é preciso que a desburocratização dos procedimentos se torne a diretriz de fato para a política migratória nacional, a partir da diminuição de exigências de certidões de antecedentes penais e com a adoção de anistias administrativas periódicas.

Por fim, se faz necessário o retorno do Brasil ao Pacto Global para Migração, da Organização das Nações Unidas (ONU), para a reafirmação do país com seu compromisso em garantir a migração segura, ordenada e regular aos indivíduos que se deslocam ao território.

Sobre o autor

Caio Serra é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), pós-graduado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e membro-coordenador do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP.

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