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terça-feira, dezembro 24, 2024

A mulher migrante, numa cidade toda feita contra ela

Aproveitando a reflexão feita a partir de A Hora da Estrela, famosa obra de Clarice Lispector, quantas Macabéas existem pelas estradas, mares, desertos, fronteiras e metrópoles da migração?

Por Pe Alfredo J. Gonçalves

A frase do título é extraída do último livro de Clarice Lispector, A hora da estrela, publicado no ano de 1977. A obra põe em relevo a trajetória anônima de uma migrante alagoana na cidade do Rio de Janeiro. O relato fictício prossegue em duas vias, paralelas e convergentes: a do narrador, que se apresenta como Rodrigo S. M., um escritor com sucesso duvidoso, ao que tudo indica; e a personagem Macabéa, que trabalha como datilógrafa.

Chama a atenção, em primeiro lugar, a dificuldade de Rodrigo em caracterizar sua personagem. Em lugar disso, passa algumas páginas a falar de si mesmo, de como, por acaso, “tropeça” com essa migrante pelas ruas da cidade e da própria indecisão em apresentar ao leitor uma pessoa tão invisível e insignificante. Por que, em meio à multidão, à indiferença e ao anonimato da cidade, fazer emergir um rosto que, de um ponto de vista estético, nada tem a oferecer? Por que gastar palavras e tempo com essa nordestina para quem “ninguém olha”.

No decorrer da trama – de resto, sem qualquer sobressalto ou acrobacia espetacular – tem-se a impressão que em lugar de traçar os contornos e atributos de Macabéa, Rodrigo empenha-se em desconstruir sua personagem. A cada passo, desinteressa-se por ela, ou então toma a si a tarefa como uma obrigação da qual quer livrar-se e não consegue. A imagem daquela migrante, ao mesmo tempo que o atrai, o enoja e o enche de tédio. Com esse vaivém meio a contragosto do narrador, Clarice parece mostrar quanto a presença ou a ausência de Macabéa, absolutamente, não têm qualquer importância. Com ela ou sem ela, a metrópole e o mundo vão adiante. Peça irrelevante e substituível numa engrenagem que a devora.

A própria identidade da personagem aparece de forma fragmentada. Avança e recua na mente e na escrita de Rodrigo. Cedo a moça tornara-se órfã, tendo sido adotada por uma tia que não lhe dispensava qualquer tipo de afeto. Suas penas e carências estão envoltas no nevoeiro de uma memória feita de retalhos. O leitor só descobrirá o nome dela na metade do livro, coisa que pode simbolizar a ocultação do migrante na cidade grande. Macabéa é pobre, feia e infeliz, sem ter grande consciência de tudo isso. Alguma coisa ou alguém que as famílias e a sociedade, com certa vergonha, tentam jogar para debaixo do tapete.

Claro, ela tinha lá seus ideais, guardava fotos de celebridades, sonhava com um príncipe. Em vez disso, cruzou-lhe o caminho Olímpico. Ele também migrante, pobre trabalhador, mas tão vaidoso e orgulhoso quanto desprezível. Ela e ele – dois párias excluídos e descartáveis que o destino jogou um nos braços do outro, para logo separá-los. Olímpico prefere Glória, a amiga de Macabéa, a qual, embora igualmente pobre trabalhadora, mostra-se mais despachada. Colhera alguns traços dispersos da astúcia que prevalece no mundo urbano, e com eles procurava driblar as dificuldades e defender a si mesma nessa selva de pedra.

Ironicamente Macabéa encontra seu ideal tão almejado alguns segundos antes da morte. Tem existência “rala e imprestável”, pensa em voar mas vive rastejando, aprecia Coca-Cola com sanduiche, habita um cubículo com outras três companheiras… Um dia faz uma visita a uma cartomante. Esta põe as cartas e lhe garante um belo destino pela frente, inclusive um encontro com alguém muito especial. Meia atordoada, ao sair da entrevista e cruzar a rua, Macabéa se depara com um carro vistoso, elegante… E logo pensa no seu príncipe. Tanto se atrapalha e se comove que acaba sendo atropelada pelo automóvel. Morre e se apaga no exato momento em que sentira brilhar a própria estrela. 

Quantas Macabéas pelas estradas, mares, desertos, fronteiras e metrópoles da migração?! “Uma moça numa cidade toda feita contra ela”. Milhões de mulheres e homens num mundo todo feito contra eles, numa sociedade toda feita contra eles, em países estranhos todos feitos contra eles, numa economia globalizada toda feita contra eles?!…

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