Por Bruna Kadletz
O fim do ano é, para muitos, uma data festiva. Celebra-se o nascimento de Jesus, aquele que encarnou os atributos divinos e iluminou com seus passos o caminho da simplicidade e compaixão. O Jesus da história era Palestino judeu de origem pobre, perseguido e refugiado, mas politizado o suficiente para mobilizar massas e clamar por transformação individual e social. O Cristo da fé desperta o espírito de cooperação e amor ao próximo, restaura o senso de justiça e padrão de vida ético.
O apelo comercial do Natal tende a ofuscar a sua simbologia mais profunda. Renascer na luz da consciência Crística. Além de presentes, festas e comilanças, o Natal evoca um sentimento de reflexão e introspecção. Ao celebrar e refletir sobre o legado de Jesus para a humanidade, como nos situamos dentro dos seus ensinamentos atemporais?
O ano de 2016 foi, inquestionavelmente, turbulento tanto para a sociedade brasileira como para a sociedade global. No Brasil, a caixa de pandora foi aberta, e os escândalos políticos parecem ecoar as sujeiras de um calabouço nunca antes limpo. Os desafios globais, além da indigesta eleição de Trump e Brexit, oscilam entre acentuação da degradação ecológica e mudança climática até catástrofes humanitárias na rota por refúgio, intensificação de conflitos e guerras e ondas de terrorismo. O custo humano mais perverso desses desafios é a desumanização daqueles que são forçados a se deslocar.
Todos esses eventos revelam a verdade bruta que muitos sentem na sua espinha – a corrosão de valores humanos. Impossível olhar para essa realidade e não questionar o que está acontecendo com a humanidade. Onde foram parar os ensinamentos do homem que há mais de dois mil anos encarnou os atributos divinos na terra?
Dos desafios globais, um se destaca perante meus olhos. O fenômeno global da movimentação em massa. O mundo migra e se movimenta, de forma nunca antes vista. Atualmente, mais de 250 milhões de pessoas vivem como migrantes, fora de seus países de origem.
E tem aqueles outros 65 milhões, que assim como Jesus e sua família, foram forçados a deixar suas casas por causa de guerras e perseguições. Nos últimos anos, líderes políticos e organizações internacionais tem demonstrado incapacidade em responder as necessidades mais básicas de refugiados e migrantes.
Passagem legal e segura é fora de cogitação em qualquer negociação internacional. Como consequência, rotas clandestinas e redes de tráfico humano disseminam com toda força. Somente em 2016, mais de 5 mil refugiados e migrantes perderam suas vidas na travessia clandestina do Mar Mediterrâneo. A criminalização do movimento aprisiona outros milhares em centros de detenção na Europa e Ilhas do Pacífico, nas fronteiras cada vez mais militarizadas e fortificadas, e nas condições desumanas dos campos de refugiados.
Neste Natal, enquanto desfrutamos da companhia dos nossos amados no aconchego de nossas casas, milhões de crianças, mulheres e homens vivenciaram as consequências cruéis da vida em refúgio.
Em campos na Jordânia, Turquia e Grécia, o inverno rigoroso não perdoa as tendas e barracas daqueles que não possuem mais um teto seguro sobre suas cabeças. As barracas são frágeis e facilmente inundadas pela chuva e neve. Muitas crianças não têm roupas de inverno e comida. No Quênia e Etiópia, as rações – sim, as refeições são chamadas de rações – não são suficientes para aliviar a fome crônica.
A falta de responsabilidade política e institucional amplifica o sofrimento de refugiados e migrantes. Restrições políticas e legais impossibilitam soluções sustentáveis para esse desafio global.
Verba para aliviar as necessidades emergenciais de pessoas abandonadas em campos de refugiados existe sim. O que não existe é coordenação, decência e honestidade para aplicar os recursos de forma correta. A ONU/ACNUR, junto com a União Europeia, estão sendo acusadas de falhas no gerenciamento das verbas que seriam destinadas para refugiados em campos na Grécia, deixando eles congelarem no inverno.
Ao visitar diversos campos e conversar com centenas de refugiados e migrantes na África, Oriente Médio e Europa, eu pude testemunhar a veracidade das falhas no gerenciamento dos recursos. Campos sem chuveiros, banheiros móveis insalubres, barracas impróprias, rações insuficientes e com poucos nutrientes.
Há um abandono político e social palpável. Entende-se porque muitos confessam estar morrendo aos poucos e preferem voltar para zonas de conflito.
E nós, como nos relacionamos com questões humanas que vão além do nosso círculo de visão? Será que nosso olhar pode se expandir ao ponto de reconhecermos a interconexão intrínseca da humanidade e do planeta que sustenta nossa existência?
A realidade global é desafiadora e, muitas vezes, desmotivadora. Com a situação humanitária em Aleppo e o recente ataque terrorista em Berlim, como podemos encontrar humanidade em uma civilização que parece colapsar?
Tais realidades não existem em um universo paralelo, mas sim na nossa casa em comum chamada Terra. Portanto, neste fim de ano, a condição da humanidade deveria nos encorajar a refletir sobre os valores que organizam nossa sociedade e moldam nossa forma de viver.
Que tipo de contribuição podemos fazer para o mundo em colapso? Será que existe um propósito de vida que vai além de compras e aquisição de bens materiais, distração e entretenimento, competição e conquistas, brigas e conflitos? Será que podemos viver uma vida com um sentido mais profundo que reconheça a humanidade e o valor de todos os seres que habitam o planeta?
Nos momentos em que o medo e discursos de violência e ódio ao próximo estão tão presentes no nosso inconsciente coletivo, precisamos reavivar a mensagem espiritual do Cristo. Ao invés de sermos engolidos pelo turbilhão que nos divide, podemos oferecer a face do amor, compaixão e união.
No dia em que celebramos o nascimento de Jesus, deveríamos lembrar em nossos corações que a sua família também foi marginalizada, perseguida e obrigada a fugir para sobreviver. Mas, acima de tudo, precisamos nos conscientizar que a mensagem de Cristo foi de justiça e amor ao próximo.