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domingo, dezembro 22, 2024

A situação dos imigrantes na Itália como sinal de declínio de uma sociedade (Parte 4)

Por Arnaldo Cardoso*

O reconhecimento da complexidade do fenômeno das migrações internacionais é o primeiro passo para sua adequada compreensão. Assim, evitam-se danos decorrentes de simplificações e generalizações que tem sido presentes em discursos e ações, tanto de autoridades governamentais quanto de outros atores sócio-políticos, como é o caso de parcela da mídia em matérias acerca do fenômeno.

Outra afirmação coerente com a da complexidade do fenômeno é a da necessidade da utilização de diferentes fontes e tipos de dados para uma adequada abordagem dessa realidade em suas diferentes esferas e níveis em que se processa.

No estudo em tela sobre a situação dos imigrantes na Itália como sinal de declínio da sociedade, considerando o já exposto nos três artigos precedentes, foi um bom ponto de partida a identificação da situação demográfica atual da Itália cuja taxa líquida de reprodução (TLR) expressa a diminuição da população do país, fato que, sob diversos ângulos, é motivo de preocupação.

Avançando sobre a questão da exploração do trabalho do imigrante na Itália em setores como o da agricultura e do trabalho doméstico – agravadas nos casos dos imigrantes irregulares – as implicações disto desdobram-se para além do aviltamento da vida dos imigrantes. Ao tolhê-los de direitos básicos dá-se a privação de condições para uma integração digna na sociedade, retroalimentando processos de degeneração de relações sociais e deformando valores subjetivos positivos relacionados ao trabalho.

É eloquente de um tal estado de coisas os números e interpretações atribuídos ao trabalho irregular (onde está inserido o trabalho dos imigrantes irregulares) expressos em relatórios do Istat (Instituto Nacional de Estatística).

Ao tratar da “economia não observada” que Inclui essencialmente a economia paralela e a economia ilegal, o Rapporto Annuale 2020 informa que “o valor agregado gerado pela economia não observada ou pela soma da economia de atividades subterrâneas e ilegais, situa-se em 211 bilhões de euros (12,1% do PIB), com um aumento de 1,5% em relação ao ano anterior.”

Numa demonstração da incidência de trabalho irregular por setores, o relatório mostra que “é maior no setor de serviços (16,8%) e atinge níveis particularmente altos no segmento ‘Outros serviços para pessoas’ (47,7%), onde a demanda pelo desempenho irregular do emprego pelas famílias é relevante. Muito significativa é a presença de trabalhadores irregulares também na agricultura (18,4%), na construção civil (17,0%) e no comércio, transporte, armazenamento e reformas (15,8%).”

É especialmente significativa a avaliação estampada no relatório do Istat onde diz que “O uso de trabalho irregular por empresas e famílias é uma característica estrutural do mercado de trabalho italiano.”

Demonstrativa dessa realidade, na parte 2 do presente estudo abordamos o caso dos imigrantes búlgaros na comuna de Mandragone e de outras origens em Terracina, onde milhares de trabalhadores imigrantes são submetidos a jornadas diárias exaustivas e mal remuneradas, na colheita de produtos agrícolas. No contexto da pandemia do coronavírus eles se viram diante de novas situações de violências, marcadas pela xenofobia e preconceitos.

Ainda no tocante a exploração de mão-de-obra estrangeira, na parte 3 abordamos a situação do mercado do sexo pago na Itália, abastecido predominantemente por mulheres imigrantes. O entrelaçamento da dinâmica migratória com redes de prostituição desde muito operantes na Itália, associada a percepção revelada por entrevistas junto a clientes italianos de prostitutas, das quais extrai-se que “o sexo pago pode ser entendido como um ‘costume’ popular e difundido, que faz parte, de certa forma, ‘de ser homem na Itália’” e que “eles não perguntam de onde vêm, não ligam se são imigrantes regulares ou irregulares, se são menores ou adultas: compram um serviço” reforçam o entendimento da amplitude e profundidade dos desafios com os quais a Itália precisa se defrontar.

Diante da complexa realidade da prostituição no país, uma análise mais atenta sobre a dinâmica das redes de tráfico de pessoas e de prostituição demandou informações de um nível mais amplo, sistêmico, o das relações internacionais onde se dão as negociações entre Estados, e destes com organizações internacionais regionais e globais.

O relatório “Oltre un milione di ferite”: La Violenza Sessuale contro Uomini e Ragazzi lungo la Rotta del Mediterraneo Centrale verso l’Italia” de março de 2019, produzido pela Women’s Refugee Commission (WRC), ao reunir importantes dados e informações sobre a violência sexual e outras formas de abuso a que migrantes são submetida(o)s nas rotas marítimas com destino à Itália, expõe um quadro gravíssimo que tem sido desprezado ou merecido atenção secundária das autoridades envolvidas nos programas e medidas de controle e repressão à imigração irregular.

A primeira afirmação constante das conclusões do referido relatório, fruto de extensa investigação contemplando entrevistas com migrantes e refugiados, é que a violência sexual “está espalhada por toda a rota do Mediterrâneo central” e que ela incide sobre  mulheres e meninas mas também sobre homens e meninos, que são “expostos a múltiplas formas de violência enquanto viajam”. Essas ocorrências são configuradoras dos deslocamentos forçados que se dão em contextos de conflitos e guerras nos quais diferentes formas de abuso e violências sexuais são cometidos.

A Líbia (ex-colônia italiana) que vive uma grave instabilidade política desde a queda do regime de Muammar Gadafi em 2011, é descrita como um “inferno” onde “refugiados e migrantes se veem presos em redes de exploração, onde atos brutais de violência sexual são cometidos em total impunidade, com a finalidade de extorsão, submissão, punição e diversão dos torturadores.”

Nas conclusões do relatório da WRC há um alerta sobre as consequências da estratégia do governo italiano e da UE para coibir a imigração através do endurecimento das medidas de segurança e acordos como o realizado com a Líbia, incluindo  apoio financeiro à Guarda Costeira da Líbia que, para realizar a captura e detenção de migrantes reprimem o trabalho de monitoramento e resgate feito por navios humanitários de ongs internacionais,  aumentando com isso a tensão e a violência, provocando a “morte de milhares de pessoas no mar e  incentivando fenômenos como a detenção ilegal, tortura, violência sexual, escravidão e assassinatos.”

É legítimo nos perguntarmos: O que a indiferença diante dessa realidade por parte de um país democrático revela sobre ele?

Dando mostras de uma mesma compreensão da extensão e gravidade da situação dos migrantes e refugiados, e coerente com o postulado de fraternidade de seu pontificado, o papa Francisco – que é alvo da ira de determinados grupos políticos na Itália – tem feito ecoar os apelos por consciência e responsabilidade de governantes e sociedades. Em uma missa em Roma, ocorrida em 8 de julho passado, o papa lembrou de uma viagem que fez sete anos atrás à ilha de Lampedusa, quando ouviu relatos de migrantes do norte da África, especialmente da Líbia.

Fazendo um apelo contra a indiferença diante da tragédia dos migrantes no Mediterrâneo o papa exortou em sua missa “Eu penso na Líbia, nos campos de detenção, nos abusos e violências que sofrem os migrantes, nas viagens sem segurança, esperando salvamento e sendo rejeitados aqui.” (AFP, 8/7/20).

Contrastante com posições como a do papa Francisco e de outros atores da sociedade civil, o governo italiano persiste num padrão de ações que só tem agravado o quadro. No começo de agosto passado o Ministro das Relações Exteriores da Itália Luigi Di Maio (M5S) ameaçou bloquear 6,5 milhões de euros de fundos da Tunísia – outro país cuja situação vem gerando crescentes fluxos de migrantes forçados – como punição ao fato de migrantes provenientes do país continuarem aportando na costa italiana.

A Tunísia passa por uma profunda crise econômica com queda de 4,3% de seu PIB e 35% de taxa de desemprego entre jovens. Críticas ao bloqueio de fundos se embasam na denúncia da ineficácia da estratégia de chantagem e na inadequação dessa visão sobre o problema dos deslocamentos forçados. A Itália se faz presente na Tunísia através de investimentos empresariais na exploração de recursos energéticos, num modelo extrativista sem atenção para o meio ambiente e questões sociais do país.

Organizações como a Associação das Organizações Italianas para a Cooperação e Solidariedade Internacional (Aoi) que defendem que só através de um plano estratégico concebido multilateralmente, contemplando questões ambientais, de saúde, educação, emprego, bem como do empoderamento das mulheres poderá trazer resultados positivos no sentido de reverter a situação dos deslocamentos forçados de países como a Tunísia.

A crítica ao padrão da política externa italiana para países de onde provém a maior parte dos deslocamentos forçados é extensiva a outras metrópoles europeias de recente passado colonizador, bem como às autoridades da União Europeia.

Com base em relatório de 2016 da Amnesty International, Wermuth & Aguiar já denunciavam que “A União Europeia, por meio desses acordos de readmissão e cooperação, recorre aos Estados que não podem ou que não respeitam os direitos humanos dos refugiados e migrantes, para fazer o ‘trabalho sujo’ de interceptação e repatriamento forçado desses sujeitos, em clara violação do Direito Internacional”.

Em cimeira da União Europeia ocorrida em fevereiro de 2016, em Bruxelas, o professor François Crépeau, especialista em Direito Internacional Público e  relator especial da ONU sobre Direitos Humanos dos Migrantes expressou preocupação com “acordos de cooperação bilaterais negociados entre a Itália e seus vizinhos, especialmente a cooperação com a Líbia, devido à falta de padrões mínimos de Direitos Humanos e os inúmeros e frequentes relatos de abusos e violações aos imigrantes”. Asseverou ainda que o continente está criando “um assustador novo conceito do que é normal”.

Política externa europeia e italiana

Agora, podemos nos perguntar: sendo a política externa uma expressão da imagem que um país faz de si e do mundo, o que podemos extrair da atual política externa italiana e europeia?

Quanto à criminalização da imigração e do imigrante, os autores Wermuth & Aguiar, já em 2017, salientavam que na Itália desde a Lei nº 225 de 1992, passou-se a delegar poderes emergenciais a órgãos especiais com o objetivo de superar determinadas situações de crise. Com base nesse dispositivo, a prática da legislação governamental por meio de decretos-lei transformou-se em regra na Itália, tornando rotineiro o uso de medidas excepcionais, a tal ponto que, ao constituírem a forma normal de legislação, acabam culminando alterações jurídicas, políticas e sociais”.

Sendo disso exemplo os decretos e circulares de Salvini, de 2018-19, em matéria de imigração, que ferem direitos fundamentais e a legitimidade constitucional, sua manutenção pelo atual governo italiano faz crer que o PD e o M5S compactuam com uma visão de país explicitada pela Liga de Salvini, de extrema-direita, ou que tais partidos governistas são incapazes de conceber e liderar uma nova orientação política para o país, capaz de efetivamente enfrentar problemas como o da gestão das migrações que desde muito demandam novas e eficientes respostas.

Um ambiente de demandas sociais não atendidas e insatisfação com o sistema de representação política é terreno fértil para ideologias que apostam no ódio, na polarização e na construção de “inimigos imaginários”. É onde prosperam líderes com promessas salvacionistas, defendendo astuciosamente a política como uma expressão necessária da “vontade geral”.

Realidade incontornável em diferentes países, o populismo de extrema-direita tem se afirmado como força política na Itália e em países como Brasil, Estados Unidos e Reino Unido, e uma direita radical populista tem ampliado seu poder e posto em xeque o Estado de Direito em países como Polônia e Hungria.

Embora com variações em cada país, um traço comum entre eles é a escolha de um inimigo contra o qual engajar o “povo”. Como sugere o estudioso da extrema direita, Cas Mudde, a associação de ansiedade econômica a questões como a integração regional e a imigração tem sido explorada por extremistas de direita com bons resultados eleitorais especialmente na Europa.  Também a invocação de um idealizado povo portador de tradições e valores ameaçados tem sido recorrente.

Nesse contexto, cada avanço dessas ideologias extremistas representa um custoso retrocesso no caminho para a superação de problemas estruturais como o das migrações internacionais.

À Itália está posto o desafio de rejeitar fórmulas que visam perpetuar caricaturas de um passado e povo idealizados e construir um presente novo fortalecido pelo aprendizado com os erros do passado.

*Arnaldo Cardoso é cientista político, pesquisador e professor universitário.


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