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sábado, novembro 23, 2024

Abrigamento, trabalho e conhecer o idioma são fundamentais para refugiados, diz diretor do Adus

Por Sebastião Rinaldi

O apoio do terceiro setor na reinserção de pessoas em situação de refúgio ou acolhida humanitária é crucial, uma vez que nem sempre o Estado supre necessidades na mesma proporção da chegada e da demanda por ajuda. Fundado há dez anos em São Paulo, o Instituto Adus é uma entidade sem fins lucrativos que atua justamente com essa proposta: capacitação de migrantes para viver uma vida digna no país de acolhida, por meio de frentes como pedagógicas/educacionais, trabalho e renda, suporte psicológico e jurídico, além de uma orientação geral e burocrática, digamos assim.

Em bate-papo com o MigraMundo, Marcelo Haydu, diretor da ONG, comenta sobre o começo de tudo, frentes de atuação, casos emblemáticos e o futuro da iniciativa. Formado em Relações Internacionais, com mestrado em Ciências Sociais e doutorado em Saúde Coletiva, o gestor mostra uma visão pragmática e, ao mesmo tempo, consciente e empática do setor em que atua.

MigraMundo: De onde veio a ideia da fundação do Adus?

Marcelo Haydu: Diria que tudo começa em 2006, no meu segundo ano de graduação em Relações Internacionais. Fiz um primeiro estudo, de iniciação científica, sobre refugiados, com o qual me propus a entender esse cenário em São Paulo. Na época, falei com 10 imigrantes – pessoas de Angola, Congo, Camarões e Colômbia. A partir daí, eu me interessei demais pelo tema. Essas pessoas foram tão gentis, ao narrarem suas trajetórias, à época na Casa do Migrante, que me dispus a auxiliá-las de alguma maneira. Começaram a me ligar e passei a acionar minha rede de contatos, que era ridícula de tão pequena. Naquele momento, era tudo mais difícil e nada se falava sobre o tema. Esse público não conseguia atendimento nem em hospitais. 

Essa iniciativa foi se estendendo ao longo dos anos. Em 2008, fiz meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre angolanos, então o maior grupo de refugiados no País. Quando dei por mim, percebi que recebia demandas como se eu fosse uma instituição. Chamei dois amigos – o Vítor, um colega da época de graduação, e o Andrea Piccini, um italiano que conheci nas andanças da graduação. Falei com eles que estava com uma ideia de criar uma entidade e eles aceitaram. Essa conversa foi em dezembro de 2009. Foram 10 meses pensando o que fazer, conversando com vários refugiados e solicitantes de refúgio. Chegamos à constituição do Adus em 10 de outubro de 2010 (10/10/10) – a data é coincidência. 

Como foi o trâmite legal para sua criação?

Na verdade, constituir uma ONG é como abrir uma empresa. No lugar de um contrato social, usa-se um Estatuto Social. Foi um trabalho participativo. Tínhamos encontros mensais com um grupo grande de imigrantes. Muitas vezes, pegávamos emprestado um ônibus, buscávamos as pessoas na Casa do Migrante e íamos até a casa de um amigo na Vila Madalena. Ouvíamos as demandas deles, como trabalho, revalidação de diploma, estudo… Pensamos: o que conseguimos dar conta em três pessoas, conciliando com as outras atividades? O Vítor tinha um emprego regular e o Andrea estava quase se aposentando. A pessoa com mais tempo era eu. Decidimos focar em duas frentes: conquistar vagas de trabalho e passeios pela cidade (levar para conhecer São Paulo, como cinemas, teatros, museus, praças públicas). Com o ônibus garantido, por meio de um amigo que disponibilizava os carros uma vez por mês, começamos a fazer as vaquinhas. 

Em seguida, partimos para o Estatuto. Escrevemos o nosso já prevendo não somente as ações daquele momento, mas todas as demais que poderíamos fazer. Há áreas de saúde, pesquisa, trabalho, renda, há um pouco de tudo. Concluímos e registramos, extraindo um CNPJ. E com isso, há uma série de documentações a serem tiradas, juntamente com a Caixa Econômica. É como se fosse uma empresa nesse sentido, com registro em cartório. Deve haver um mínimo de pessoas, uma direção, um conselho fiscal, responsáveis legais, entre outros. Foi um processo de cerca de 8 meses. Temos um período mandatório de 4/5 anos.

Atualmente, o Adus trabalha com eixos, como pedagógico, emprego/renda, jurídico, entre outros. Como foi até chegar nessas áreas de atuação?

Começamos com foco em “emprego e passeios” até meados de 2013. Nesse ano, a direção estava pensando em fechar o Adus por causa da falta de parceiros. Nesse momento, conquistamos um parceiro novo, que foi a Wizard. Era uma demanda dos imigrantes: ter aula de português. Só o Sesc Carmo dava aulas do nosso idioma para esse público. Fizemos um pedido a várias escolas. Nossa proposta era: temos professores e precisamos de material didático e capacitação. Nessa tentativa, a Wizard nos ligou. Em quatro dias, conseguimos uma sala na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Colocamos anúncio para professores no nosso site. Tivemos várias pessoas. Conquistamos essa parceria.

Começamos com uma sala em um cursinho pré-vestibular e depois tivemos mais duas salas na faculdade Anhanguera. Foi assim até dezembro de 2014. Em janeiro de 2015, conquistamos nosso próprio espaço, que é na região central de São Paulo.

Foi quando quisemos abraçar outras ações, como cultura, advocacy, saúde mental. Do dia para noite, saltamos de 30 para 300 pessoas. O Adus vivia lotado. As ações práticas eram constantes, mas administrativamente era um caos. Conseguimos sustentar isso por dois anos. Em 2017, depois dessas questões gerenciais, decidimos dar um passo atrás: focar em capacitação e geração de emprego/renda. Cortamos quase tudo. Fomos de quase 300 participantes para cerca de 130 – tudo isso em uma questão de duas semanas.

Hoje, temos orientação jurídica, aulas de português, capacitação para o mercado de trabalho e inclusão no mercado de trabalho. O atendimento não é um programa. É uma porta de entrada para um direcionamento inicial. Há também o UNNO, que é um negócio social (não um programa) por meio do qual os refugiados dão aulas de idiomas. Estamos em um momento de fortalecimento do que já é feito. 

No ensino de português, em 2022, estamos em um modelo híbrido. Conseguimos contratar uma pessoa e ter turmas de avançado (um passo importante que não havia). Estamos fechando parcerias com a UFABC e com o Instituto Singularidades para que os cerificados do Adus sejam reconhecidos pela Polícia Federal. Além do ensino de sala de aula, queremos incluir umas iniciativas de cultura por meio de saraus. No eixo de emprego/renda, queremos que haja empregabilidade fora de São Paulo. Estamos promovendo cursos de informática, finanças, entre outros, para que as pessoas se coloquem em vagas melhores. São passos adiante que estamos dando. Temos base física em São Paulo e, daqui a três ou quatro anos, podemos ter base física em outras localidades.

Qual é a importância da área pedagógica na inserção de pessoas em situação de vulnerabilidade social, oriundas de outros países, residindo no Brasil?

No caso dos imigrantes, não apenas refugiados, você dominar minimante o idioma local é o primeiro passo para se inserir e formar uma nova rede de relacionamentos. Como ir à padaria, pegar o trem, participar de uma entrevista de emprego? Ainda mais em um país como o Brasil em que poucas pessoas dominam outros idiomas. É preciso ter um nível razoável de português. Por isso, desde sempre, foi uma busca do Adus. Há sempre uma demanda.

Três questões são fundamentais: abrigamento (um lugar para ficar te dará condições para fazer as demais atividades), trabalho e conhecimento do idioma. O português está na base das outras duas. Sem um nível adequado da língua, todas as outras se prejudicam. 

Gostaria de narrar casos emblemáticos de superação e de conquistas do Adus?

Vou destacar dois casos. Um deles me marcou muito pessoalmente: um rapaz do Togo, que foi uma das primeiras pessoas que conheci no Adus. Ele era muito sozinho. Conseguimos uma vaga para ele trabalhar em uma empresa de drywall, na área de construção civil. Ele adorava o trabalho. Só uma informação adicional: não havia horário para as pessoas me ligarem… era domingo de noite, era de madrugada… Em um domingo, por volta das 21h, eu estava cansado e o telefone tocou. Uma ligação a cobrar e pensei em desligar. Era ele:

– Marcelo, tudo bem? Boa noite. Liguei só para te desejar boa noite. Não tenho amigo aqui e você é a única pessoa que tenho como referência.

Aquilo para mim foi simbólico. Às vezes, as pessoas precisam de mais do que um trabalho. Depois, ele me contou que estava se mudando para Campinas. Em seguida, me disse que abriu seu próprio negócio.

A história do Anass (Síria) também me marcou bastante. Ele chegou ao Brasil e foi trabalhar em restaurantes árabes. Nesse meio tempo, começou a fazer trabalhos como venda de perfumes e artesanatos. É o que ele faz hoje. O Adus realizou um evento, em 2017, no Shopping Center 3 (São Paulo – SP). Fizemos uma feira étnica por duas semanas. Havia dez famílias vendendo roupas, artesanatos, comidas, e ficou lotado de gente todos os dias. Saiu até no SP TV.

O Anass me relatou, depois, que estava buscando trazer a família dele para o Brasil. Nesses dois fins de semana, com essa verba obtida no evento, ele conseguiu trazer os pais e a irmã dele, da Síria. Foi dessa feira, inclusive, que ele despertou e pensou: aqui tem um caminho. A partir daí, passou a trabalhar por conta própria.

Como foi o aporte recebido em 2020, por meio da Quintessa? 

Esse aporte é fruto de um edital, sendo algo pontual. A verba veio de uma emenda parlamentar de uma vereadora em São Paulo. A Quintessa faz a administração dos recursos, de modo que essa verba seja aplicada da forma mais eficaz possível, atuando também na prestação de contas. Entre centenas, o Adus ficou na relação das 5 finalistas selecionadas. Temos uma pessoa que fica como ponto focal. Por meio desse recurso, conseguimos fazer as 60 videoaulas que estão disponíveis no YouTube.

Quais são as perspectivas do Adus para os próximos anos, considerando inclusive o impacto da pandemia?

O Adus está em movimento de pensar em expansão, passando a atuar em parceria com organizações de outras cidades. A ideia seria atender de maneira mais efetiva refugiados e solicitantes de refúgio que residem em outras “praças” principalmente. Estou falando basicamente de estados como Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Roraima, Amazonas, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná.

Queremos fortalecer nossos programas, levando as aulas de português de forma mais organizada para fora de São Paulo, de maneira síncrona e assíncrona. Além disso, temos como objetivo levar cursos de capacitação profissional para esses estados, bem como ajudar migrantes em situação de vulnerabilidade a ser inserirem no mercado de trabalho. E vamos investir mais na frente cultural, com eventos e calendários específicos.

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