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sábado, novembro 2, 2024

Abrigamento voluntário de refugiados ucranianos vive impasse na Holanda

Mais de 5 milhões de ucranianos já deixaram o país em direção a outras nações em razão da guerra, segundo dados da ONU. Em alguns países, a empatia inicial começa a dar lugar a outros sentimentos

Por Natália de Oliveira Ramos
de Utrecht, Holanda

Imediatamente após a Rússia invadir a Ucrânia, a população holandesa se organizou para receber os refugiados. Apelos foram compartilhados pelas redes sociais: alguns de organizações humanitárias; outros – de caráter menos oficial – pela população que voluntariamente acolheu os refugiados na fronteira com a Polônia e ofereceram suas próprias casas como abrigo – até a família real holandesa ofereceu um de seus imóveis. Apesar da comoção inicial, os anfitriões começaram a se queixar e há casos de refugiados “devolvidos” às prefeituras dos Países Baixos (nome oficial do país).

Desde o começo da guerra, segundo dados do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados), mais de 5 milhões de ucranianos já fugiram do país, causando o maior êxodo de civis na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, outras 7,1 milhões de pessoas estão deslocadas dentro da própria Ucrânia – juntos, representam cerca de 12 milhões de ucranianos, mais de um quarto da população.

Choques culturais

A paulistana Jade Manesco,30, mora em Amsterdã, capital holandesa, com o marido e os filhos, de 7 e 2 anos. Ela foi uma das pessoas que logo no início do conflito se cadastraram para receber refugiados em casa – sua única exigência era que fossem mulheres não-fumantes. Depois de dois dias, uma mulher de 54 anos e sua filha adolescente foram abrigadas.

A princípio, a preocupação de Jade era sobre as possíveis mudanças de rotina. Como ela e a mulher não falam um idioma em comum, a brasileira teve receio de ter que ocupar-se integralmente das recém-chegadas. Mas a comunicação aconteceu com gestos misturados com palavras soltas em inglês. “Meu filho até chama a mãe (ucraniana) de avó”, relatou.

Mãe e filha chegaram à Holanda depois de escapar dos bombardeios em Dnipro, na região central da Ucrânia. Com a ajuda de voluntários e vizinhos, elas foram instaladas em um cômodo adaptado com móveis e eletrodomésticos. “Nunca tinha visto meus vizinhos tão unidos (em ajudar). Uma pena que isso não aconteça com outros refugiados”, lamentou Jade.

Diferente do que houve no início da guerra, o ímpeto de ajudar se transformou em arrependimento para algumas famílias. A insatisfação dos anfitriões ocorre principalmente por questões de convivência.

Em entrevista para o jornal De Telegraaf, o porta-voz do conselho para refugiados do país (o Vluchtelingenwerk) analisou que aqueles que prontamente colocaram suas casas à disposição, provavelmente subestimaram a complexidade de abrigar pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, “que tiveram que deixar parceiros em um país em guerra”.

Ele declarou que um em cada três que se apresenta para acolher ucranianos é reprovado na triagem e que a negativa ocorre por motivos de coabitação, apesar dos esforços das organizações humanitárias para encontrar perfis compatíveis.

Segundo a recifense Carolina Moraes, de 38 anos, “todo mundo está se sentindo um pouco hóspede na própria casa”. Com a ajuda de outra brasileira, ela encontrou quase 20 residências para abrigar refugiados. 

Na casa dela estão os ucranianos Victoria e Sergey, 37, um casal de microempresários de Kharkiv que estava em lua de mel no Caribe quando recebeu a notícia da invasão russa na Ucrânia, na noite de 23 de fevereiro. “Quando eles chegaram, eu só sabia que eles poderiam subir as escadas”, relembrou a anfitriã, que não pediu qualquer identificação.

Passada a fase intercultural, onde a gastronomia e a música brasileira foram bem recebidas, as adversidades deram as caras. Carolina destacou que falta proatividade por parte do casal, desde tarefas simples, como levar o lixo para fora da casa, e até questões fundamentais para a estadia no novo país.

Segundo a brasileira, o casal foi resistente em registrar-se como refugiado, o que foi feito após a advertência de que teriam de deixar a casa dela. Desde março, a Holanda reconhece automaticamente o status de refugiados ucranianos registrados nos municípios. 

A regularização é uma exigência do governo holandês para emitir permissões de moradia e trabalho. O casal tampouco deu os primeiros passos para recomeçar no novo país: recusaram ajuda para entrar no mercado de trabalho; não frequentam as palestras oferecidas aos recém-chegados.

De acordo com a dona da casa, a falta de iniciativa se estendeu ao serviço voluntário, que carece de professores que se comuniquem em ucraniano e russo para as escolas que atendem as centenas de crianças órfãs e refugiadas.

“São pessoas realmente boas, que estão passando por uma situação horrível. Sofremos juntos com as notícias sobre a guerra”, disse Carolina, referindo-se à descoberta de dezenas de corpos pelas ruas e em valas comuns de Butcha, no início de abril.

“Falo para reagirem, para seguirem a vida. Estamos doando nosso tempo, nos dedicando a eles, mas percebo que são acomodados. Acredito que seja [um comportamento] cultural”. Apesar dos aborrecimentos, Carolina e o marido vão hospedar o casal por pelo menos 90 dias – média de tempo recomendada pelas organizações humanitárias. 

Ao MigraMundo, Veronica e Sergey contaram que foram recebidos com um buquê e que os brasileiros fazem de tudo para que se sintam confortáveis. “São nossos salvadores”, enfatizaram.

Eles chegaram à gélida Holanda no início de março, num voo humanitário. Na mala, apenas roupas para o calor da República Dominicana, onde passavam a lua de mel. Quando saíram da Ucrânia, havia suspeitas sobre as intenções de Vladimir Putin, segundo eles, pela movimentação fora do comum na fronteira com a Rússia. Mesmo assim, não imaginavam que a guerra atingiria grande escala e, muito menos, que civis seriam atacados.

Parte da família do casal está em Kharkiv; e a outra em Kherson, um dos primeiros territórios ocupados. Além dos ataques diretos aos cidadãos ucranianos, eles estão “loucamente preocupados” com a escassez de insumos.

Logo no início do conflito, o fornecimento de água e energia elétrica foi cortado. “Tudo foi bombardeado, lojas, farmácias, supermercados (…) o gato estava ficando sem comida e nossos pais estavam em péssimas condições, o aquecedor quebrou e a temperatura atingiu os 19 graus negativos”, contou o casal Victoria e Sergey.

Anfitriões arrependidos

A insatisfação dos anfitriões repercutiu na mídia holandesa. O site Het Parool  publicou um artigo intitulado “Refugiados ucranianos não são animais domésticos”, uma alusão ao primeiro lockdown da pandemia, quando houve massiva adoção de cães e gatos, que logo foram abandonados quando os tutores colocaram a responsabilidade na ponta do lápis.

No caso dos refugiados, os donos das casas estão aborrecidos por que seus hóspedes não querem jantar às 18 horas em ponto; alguns reclamam do comportamento das crianças e dos pais, que, segundo os donos das casas, passam dia e noite lendo notícias da Ucrânia.

Uma holandesa relatou que se sentiu enganada depois que descobriu que um ucraniano abrigado em sua casa tinha, também, a nacionalidade síria. Em entrevista para o site Volkskran, ela disse que se tivesse sabido, não teria aberto as portas de sua casa porque um muçulmano não encaixa em sua família.

Além da convivência, questões financeiras também estão sob a mesa. Entre as queixas se destacam o aumento nos gastos de manutenção da casa. Essas pessoas questionam uma possível compensação do governo, mas até o momento nada foi anunciado. O que se sabe é que os ucranianos, já registrados como refugiados, que estejam instalados em lares holandeses recebem um auxílio semanal, cuja quantia varia, e não estão obrigados a repassar qualquer valor.

Ucranianos pela Europa

Até o último dia 8 de abril, a Holanda contabilizava 27 mil refugiados de origem ucraniana. Uma tímida fração se comparada à Polônia, que está no topo da lista com mais de 2,7 milhões, ou mesmo com outros países europeus no leste do continente, como Romênia (726 mil), Hungria (484 mil) e Moldávia (447 mil). Essas pessoas estão sob a Diretiva de Proteção Temporária, que lhes garante acolhimento, trabalho, cuidados e educação desde que se enquadrem nas regras do mecanismo. Além disso, não precisam de visto para transitar pela União Europeia.

A partir desses pontos, o governo holandês estima que, nos próximos seis meses, o país deve receber em média 850 mil refugiados – o equivalente à população de Utrecht, a quarta cidade mais populosa do país.

Caso a estimativa se concretize, a alternativa que tem sido debatida é a construção das chamadas “Vilas Ucranianas”, onde, na teoria, milhares de pessoas podem ser acomodadas a longo prazo. No entanto, a Holanda vem recebendo críticas sobre ações semelhantes, como o centro de refugiados Ter Apel, que está superlotado. 

Apesar disso, alguns especialistas defendem que o poder público deveria ser o único à frente da recepção de ucranianos, pois, segundo opinam, não há garantias de que os voluntários vão manter o entusiasmo nas próximas semanas.

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