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quinta-feira, março 28, 2024

Acordo de Paris deixa a desejar sobre refugiados ambientais, aponta pesquisadora

Por Rodrigo Borges Delfim

Atualizado em 13/09/16

Já imaginou viver em cidades ou mesmo países que podem desaparecer nas próximas décadas? Ou ter de mudar do campo para a cidade porque a agricultura no seu pedaço de chão se tornou impraticável?

Esse cenário apocalíptico que mais parece filme de Hollywood já é uma ameaça real para diversas localidades no planeta que estão próximas ao nível do mar e temem a subida dos oceanos. Também afeta regiões inteiras afetadas por secas e pela infiltração de água marinha nos mananciais de água doce. Esses e outros exemplos chamam a atenção para um tema que pouco a pouco ganha força nos debates sobre aquecimento global: as questões climáticas e de mobilidade humana – também chamadas de “deslocados ambientais”, “refugiados ambientais” ou “refugiados do clima”.

Embora ainda de forma tímida, a questão climática relacionada com mobilidade humana está presente no chamado Acordo de Paris, firmado na última sexta (22) na sede da ONU (Organização das Nações Unidas) em Nova York, e que já conta com 175 países signatários (incluindo o Brasil, que ratificou o Acordo no último dia 12 de setembro). O acordo tem esse nome porque foi costurado durante a COP-21, que aconteceu em dezembro passado na capital francesa.

Uma das entidades que pautaram a relação entre refugiados e questões climáticas na COP-21 foi a RESAMA (Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais), fundada em 2010 no Brasil e Uruguai, mas que conta com colaboradores em outros países. Em entrevista ao MigraMundo, a professora e pesquisadora Fernanda de Salles Cavedon, representante da Resama na COP-21, aponta como positiva a inclusão dos direitos humanos no texto do Acordo de Paris, mas lembra os diversos obstáculos existentes para que tais direitos sejam realmente implementados.


MigraMundo: Que balanço a RESAMA faz da COP-21, em Paris?
Fernanda de Salles Cavedon:
Os principais pontos positivos do Acordo de Paris são, especialmente, a fixação de um objetivo ainda mais ambicioso de aumento de 1,5° C da temperatura e no máximo 2° C, o reconhecimento da necessidade de avançar em direção a uma era pós-carbono atingindo 100% de produção de energias renováveis e eliminando definitivamente a queima de combustíveis fósseis, a inclusão dos direitos humanos no texto e a referência aos direitos dos migrantes face à mudança do clima e a adoção de medidas para enfrentar os deslocamentos provocados pelos impactos adversos das mudanças climáticas.

Mesmo constando no Acordo uma referência aos deslocamentos ambientais provocados pelas mudanças climáticas, o que já pode ser considerado um avanço significativo, ele deixa muito a desejar se comparado às propostas que foram apresentadas por distintos atores científicos e organismos internacionais. Deve-se considerar que versões anteriores do Acordo previam a criação de um organismo de coordenação dos deslocamentos provocados pelas mudanças climáticas, o que poderia ter sido uma grande conquista em termos de governança das migrações ambientais. Infelizmente este dispositivo foi suprimido do texto final do Acordo. A referência aos deslocamentos provocados por mudanças climáticas se limita ao item sobre perdas e danos (loss and damage). Pesquisadores e ONG’s envolvidas no tema das migrações ambientais sustentavam uma abordagem mais ampla do tema no Acordo de Paris, especialmente o reconhecimento das migrações ambientais como medida de adaptação às mudanças climáticas.

Questão dos refugiados ambientais está no Acordo de Paris, costurado na COP-21. Crédito: Arnaud Bouissou/ COP21/Fotos Públicas - 12/12/2015
Questão dos refugiados ambientais está no Acordo de Paris, costurado na COP-21.
Crédito: Arnaud Bouissou/ COP21/Fotos Públicas – 12/12/2015

Daqui para frente, será preciso trabalhar para que os direitos dos migrantes e a previsão de desenvolvimento de recomendações para fazer face aos deslocamentos provocados pelas mudanças climáticas possam resultar em ações concretas por parte dos Estados parte do Acordo e dos organismos internacionais que atuam na área das mudanças climáticas e migrações. Pode-se visualizar uma possível articulação entre o Acordo de Paris e a Agenda Nansen para a proteção dos deslocados externos no contexto dos desastres e das mudanças climáticas a fim de alcançar medidas concretas de enfrentamento do problema.


O que seria exatamente a Agenda Nansen?
A Iniciativa Nansen foi um processo consultivo destinado a construir uma agenda global por consenso sobre princípios-chave e elementos para atender as necessidades de proteção e assistência das pessoas deslocadas além das fronteiras de seus países em contextos de desastres, incluindo os efeitos adversos das mudanças climáticas. A Iniciativa foi lançada pelos governos da Noruega e da Suíça em outubro de 2012 e foram realizadas consultas regionais e sub-regionais entre 2013 e 2015 que reuniram representantes dos Estados expostos a riscos de desastres, Estados de acolhida dos deslocados e da sociedade civil. A Agenda Nansen para a proteção dos deslocados transfronteiriços no contexto dos desastres e mudanças climáticas foi concluída durante a Consulta Global realizada em outubro de 2015 e endossada por 110 países, dentre eles o Brasil. A Agenda é um documento pautado em consenso e compromissos, com recomendações específicas sobre a prevenção e gestão de deslocamentos ambientais, identificando as práticas e os instrumentos mais adequados para a proteção dos deslocados ambientais e os mecanismos pertinentes para a cooperação entre os Estados de uma mesma região.


O ACNUR prevê que eventos ligados à mudança climática, como secas, inundações e tempestades, irão se tornar a maior causa de deslocamento da população, tanto dentro como fora das fronteiras nacionais, num futuro não muito distante. Já chegou a hora de uma atualização da definição de refúgio que englobe questões climáticas?
Os deslocamentos de pessoas provocados por desastres ambientais ligados à mudança do clima já são realidade. Segundo estimativa do Internal Displacement Monitoring Centre nos últimos sete anos 184,6 milhões de pessoas foram deslocadas em consequência de desastres naturais, com uma média de 26,4 milhões de pessoas deslocadas por ano. Em um estudo recente, a United Nations International Strategy for Disaster Risk Reduction (UNISDR) informa que 90% dos desastres naturais dos últimos 20 anos esta ligados às mudanças do clima.

Mesmo diante da constatação do incremento dos deslocamentos de pessoas provocados pelos impactos das mudanças climáticas e das previsões, inclusive do IPCC, de que este fenômeno tende a se intensificar, continuamos face à ausência absoluta no contexto internacional de uma base legal que reconheça o status de deslocado ambiental e garanta sua proteção integral. Podemos assim afirmar que já se ultrapassou o momento de adotar medidas no sentido de adotar um estatuto jurídico internacional para gerenciar os deslocamentos provocados por fatores ambientais, dentre os quais as mudanças climáticas.

A ampliação do conceito de refugiado para contemplar as pessoas deslocadas por razões ambientais não tem sido uma opção ventilada pela comunidade internacional para obter os mecanismos adequados para enfrentar o problema e garantir a proteção dos deslocados ambientais. Esta é também a posição do ACNUR que já se manifestou no sentido da não utilização da expressão “refugiado ambiental”, por entender que não se encaixa na definição convencional de refugiado e que uma modificação da convenção nesse sentido poderia enfraquecer ou criar novas dificuldades para a sua aplicação.


E qual exatamente a posição da RESAMA em relação a esse conceito?
A RESAMA defende a necessidade de adoção de medidas no âmbito global, regional e local aptas a reconhecer este novo status migratório, estabelecer os direitos dos deslocados ambientais e as modalidades de obtenção do status de deslocado ambiental, bem como a necessária estrutura e os mecanismos de governança das migrações ambientais (instituições, fundos, mecanismos de solução de conflitos, etc). Nesse sentido, a adoção de um instrumento internacional específico que estabeleça padrões mínimos de proteção, não restrito aos deslocamentos provocados pelas mudanças climáticas, abrangendo também desastres naturais e outras alterações significativas no ambiente que sejam gatilhos ou causas imediatas de deslocamentos, bem como sua incorporação às normas regionais e à legislação e às políticas públicas nacionais numa abordagem integrando migração, meio ambiente, mudança do clima, desastres e direitos humanos é urgente e necessária.

Entidades globais divergem sobre a ampliação do conceito de refugiado para questões ambientais. Crédito: IOM/Alessandro Grassani 2015
Entidades globais divergem sobre a ampliação do conceito de refugiado para questões ambientais.
Crédito: IOM/Alessandro Grassani 2015


Quando se fala em globalização, lembra-se muito do caráter econômico e deixando a face humana desse processo em segundo plano. Na sua opinião, o lado humano também é deixado de lado nas discussões sobre clima?
Este é um argumento central de inúmeras ONGs e centros de pesquisa que militam pela chamada justiça climática, que propõe uma abordagem das negociações sobre o clima pautada na humanidade (human-centred approach). Esta abordagem pautada na humanidade tem se traduzido pela ação em prol da inclusão dos direitos humanos nas decisões e acordos sobre as mudanças climáticas. Distintos são os relatórios e resoluções de organismos das Nações Unidas a reconhecer o impacto das mudanças climáticas sobre os direitos humanos e a contribuição da base ética e jurídica dos direitos humanos para a gestão da crise climática. Também proliferam propostas de declarações, de iniciativa científica ou governamental, visando uma abordagem das mudanças climáticas a partir da ótica dos direitos humanos ou dos direitos da humanidade, a exemplo do Projeto de Declaração de Direitos Humanos e Mudanças Climáticas pilotada pelo Global Network for the Study of Human Rights and the Environment (GNHRE) ou o Projeto de Declaração dos Direitos da Humanidade de iniciativa do Governo da França.

Avanços foram obtidos no Acordo de Paris com a inclusão dos direitos humanos no seu preâmbulo. Os Estados-parte no Acordo devem, nas suas ações em matéria de mudanças climáticas, respeitar, promover e considerar suas obrigações em matéria de direitos humanos, especialmente o direito à saúde, os direitos dos povos indígenas, das comunidades locais, dos migrantes, das crianças, das pessoas portadoras de deficiência e das pessoas em situação de vulnerabilidade, assim como o direito ao desenvolvimento. Cabe nesse momento um trabalho de mobilização e de cobrança por parte da sociedade civil para que esta disposição geral ganhe concretude nas políticas nacionais de mudanças climáticas e nas próximas negociações internacionais sobre o clima.

A nosso ver, a integração da mobilidade humana nas negociações sobre o clima é um importante passo de tomada de consciência e de visualização dos reais impactos da mudança do clima sobre distintos aspectos da vida, da dignidade e da segurança de pessoas em diferentes regiões do planeta, dando uma dimensão humana a este debate.

 

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