Uma decisão inédita recente da Justiça brasileira traz boas perspectivas para muitos migrantes. A Justiça Federal do Rio Grande do Norte concedeu a Andrimana Buyoya Habizimana, natural do Burundi, os direitos decorrentes da condição de apátrida. Com a medida, Andrimana, mais conhecido como “Abin”, tornou-se oficialmente um apátrida sem pátria. Uma luta que durou 17 anos.
Em entrevista ao MigraMundo, Abin resume essa trajetória e fala dos planos. Atualmente ele reside em Natal, capital potiguar, e concilia atividades remuneradas com atuação em favor de outros migrantes.
Abin, pode nos contar um pouco da sua infância no Burundi?
Eu nasci no Burundi em 1980, mas com 9,10 anos sai do país porque, como na maioria dos países africanos, o conflito sempre existe né. Você tem paz, mas, ao mesmo tempo, não tem.
O Burundi conquistou a independência da Bélgica em 1962 e passou a ter uma monarquia liderada por líderes da etnia tútsi. Mas não demoram a eclodir uma série de conflitos com integrantes da etnia hútu. São décadas marcadas por guerras sangrentas, crises políticas e econômicas. Rebeliões ocorridas entre 1972 e 1988 causaram a morte de dezenas de milhares de pessoas – algumas estimativas chegam à impressionante marca de 50 mil mortos.
Como os conflitos afetaram a sua vida e da sua família?
Nessa época, minha família procurava um lugar melhor para viver porque lá não dava mais, e nos deslocamos. Só tínhamos eu e meus pais no Burundi porque meus irmãos todos já tinham saído, eu cresci sem ter meus irmãos por perto. Foram momentos muito difíceis e não quero lembrar do que passei porque acredito que nem toda história traz boas lembranças .
Saindo do Burundi vocês foram para onde?
Nesse tempo saí pros países vizinhos e passei por vários lugares. Passava um tempo e logo a gente se deslocava. Vivíamos por temporadas porque, como na África tem muitas fronteiras, fica fácil ir de um país pro outro. Tem o conhecimento da língua também que ajuda.
Quando eu tinha dez anos, minha mãe faleceu. Com 18 anos, meu pai e, então, fiquei sozinho. Depois que eu cresci, passei um tempo na África do Sul, onde trabalhava coletando material reciclável. Mas lá também estava difícil e, em 2006, decidi ir para Europa. Entrei num navio clandestino, sem nem saber para onde ia, mas queria sair de qualquer jeito.
Abin não sabe ao certo, mas acredita que ficou cerca de trinta dias na embarcação vivendo da pouca comida que levou. Passava dia e noite escondido, esperando uma brecha para andar um pouco.
Ao invés de atracar na Europa, o navio chegou no porto de Santos, em São Paulo. Como foi isso?
Não foi uma viagem planejada, só que eu acabei no Brasil. No início eu não queria ficar aqui porque eu não falava a língua, não conhecia ninguém e quando a gente é jovem tem essa ideia de que a Europa é o melhor lugar para conseguir alguma coisa na vida, né? Então eu comprei uma passagem para Portugal. Aí começou todo o problema porque em Lisboa acabei deportado e abriram um processo na justiça que deu início a essa batalha da apatridia. Eles queriam me devolver para o Burundi porque o processo é esse, tentam te mandar pro país de origem. Só que eu não tinha documento que comprovasse minha cidadania como burundiano. Então me mandaram pro Brasil num voo que veio para Natal.
No Brasil o senhor foi imediatamente aceito?
Não, o Brasil também tentou me deportar pro Burundi e para África do Sul, mas nenhum dos dois países africanos aceitou a minha volta. O próprio embaixador falou que nem todo mundo que nasce no Burundi é burundi, então não quis me dar o documento.
É nesse momento que o senhor passa a ser considerado um apátrida?
Sim, porque nenhum país queria me aceitar. Eu não tinha como comprovar nada e fiquei sem saída. Passei oito meses preso na Polícia Federal.
Segundo a Organização das Nações Unidas, o apátrida é aquele que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. A situação de apatridia acontece por diversas razões relacionadas, principalmente, a algum tipo de discriminação judiciária, política, religiosa ou social contra minorias.
A própria Polícia Federal te orientou a procurar a Ordem dos Advogados do Brasil e o caso foi entregue ao advogado Marcos Guerra. Como foi esse processo?
Em 2008, começou essa batalha do documento. Eu pedi refúgio político e um visto permanente, mas tudo foi negado. Tinha só um protocolo de RNE [Registro Nacional do Estrangeiro] provisório. Consegui tirar o CPF [Cadastro da Pessoa Física] e a carteira de trabalho, então, pelo menos, conseguia trabalhar. Fui feirante e depois auxiliar de serviços gerais em um hospital. Mas era ruim porque todo ano eu tinha que renovar o protocolo, pagar… e toda vez faltava alguma coisa, então eu tinha que andar com uma cópia do meu processo porque toda hora pediam que eu comprovasse minha situação.
Em 2010, a Justiça Federal do Rio Grande do Norte concedeu a Abin os direitos decorrentes da condição de apátrida, em uma decisão inédita. O desembargador federal Edilson Nobre, à época juiz, determinou ainda que o Governo brasileiro oferecesse documento de identificação e autorizou o exercício de um trabalho. Na sentença, escreveu: “considero que a negativa do pedido implicará, na prática, a redução do autor à condição de coisa, eliminando a possibilidade de desenvolvimento de sua personalidade, o que se atrita – e muito – com o princípio da dignidade da pessoa humana”.
Nesse meio tempo, o senhor conseguiu trabalhar, ter moradia?
Eu tive até uma filha que já tem nove anos! E minha escolaridade foi toda no Brasil, eu não tinha conseguido estudar antes. Fiz ensino fundamental, médio, e estou fazendo faculdade. Tudo no Brasil. Procurei melhorar minha vida e o que mais faço é ingressar na educação. Porque sempre tem dificuldade no início, tem pessoa que não conhece né, nunca viu um estrangeiro… então essas barreiras eu sempre tive que enfrentar. Essa jornada de escolaridade, de mudar o caminho de vida, graças a Deus consegui fazer aqui.
Consegui um emprego na Liga Norteriograndense contra o Câncer e fui crescendo. Hoje trabalho no almoxarifado do hospital e estou no terceiro ano do curso de administração.
O caso teve o desfecho final em outubro de 2022, com o processo de trânsito em julgado, ou seja, sem possibilidade de recurso, após análise pelo Supremo Tribunal Federal.
Foi uma longa jornada, Abin. Valeu a pena?
Não foi um processo fácil, tive apoio de muitas pessoas que encontrei no meu caminho. Principalmente do meu advogado que me ajudou a ter paciência e amadurecer também. Muita gente não consegue esperar, conheço outros migrantes do meu país que desistiram: “ah o protocolo demora, vou embora procurar outro lugar para mim”. Isso passava na minha cabeça, mas sempre confiei em Deus. Eu estava conseguindo trabalhar, tinha minha família, então preferi ter paciência. E graças a Deus deu tudo certo! Já estou há dez anos em Natal e me acostumei.
Ainda quero dar entrada para tirar a cidadania brasileira porque hoje estou numa situação assim ao mesmo tempo conhecido e desconhecido. Então quero concluir tudo isso.
O senhor participa de várias palestras, encontros. Acha importante partilhar sua trajetória?
Eu conto a minha história porque hoje eu tenho voz, mas muitos que estão na luta não têm, ninguém escuta essas pessoas. Em 2014, estive em São Paulo para a Comigrar, que foi a primeira Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio.
Em junho de 2014 aconteceu em São Paulo a 1ª Conferência de Migrações e Refúgio (Comigrar). O evento foi promovido pelo Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho e Ministério das Relações Exteriores, com apoio de várias agências das Nações Unidas, dentre elas UNODC, OIM, ACNUR e PNUD. A Comigrar teve como objetivo promover um diálogo social ampliado para subsidiar a construção da Política Nacional sobre Migrações e Refúgio.
Abin, você foi uma das 788 pessoas participantes da Comigrar. Como se deu essa experiência?
O Brasil é um país que está sempre recebendo migrantes, às vezes vêm africanos ou árabes… E isso é muito bom, mas nós passamos muitas dificuldades aqui. Então fiquei feliz porque conseguimos mudar um pouquinho a lei e ajudar a melhorar a vida dessas pessoas. Apesar de tudo que passei nos últimos anos, construí a minha vida no Brasil e esse é meu país.
A situação do apátrida no mundo
A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (1954) foi o primeiro tratado internacional inserido nos marcos da Organização das Nações Unidas (ONU) a se referir diretamente à temática. De acordo com o documento, o termo apátrida “designará toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional” (ONU, Artigo 1º). Assim, o apátrida é aquele que não possui um vínculo de nacionalidade reconhecido por nenhum Estado-Nacional.
No artigo “Os 60 anos da Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Apátridas e Seus Reflexos na Legislação Brasileira”, a pesquisadora e professora de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Carolina de Abreu Batista Claro, afirma que a situação do “cidadão sem pátria” vai muito além de questões jurídicas. “Ocasiona o não exercício dos direitos inerentes à nacionalidade, consubstanciados na cidadania, e prejudica o gozo dos direitos humanos de forma ampla, uma vez que ao apátrida comumente são negados acesso à educação, à saúde, à moradia, entre outros direitos humanos fundamentais”, analisa a advogada.
Dados da ONU apontam que atualmente 10 milhões de pessoas se encontram em situação de apatridia, mas é importante ressaltar que muitos pesquisadores contabilizam como apátridas os 5,8 milhões de palestinos sob mandato da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA).
Desafios mundiais para a apatridia
Em 2014, a organização lançou a campanha #IBelong (“Eu pertenço”) com uma meta ambiciosa: zerar os casos até 2024. Para isso, a organização realiza um trabalho de conscientização das populações e articulação de políticas públicas via ACNUR. Segundo a agência, desde então, houve uma série de avanços em relação ao tema: quase 350 mil apátridas adquiriram a nacionalidade, 25 nações aderiram às duas Convenções da ONU sobre Apatridia, 16 países estabeleceram ou melhoraram procedimentos de determinação da apatridia e 10 países alteraram suas leis de nacionalidade para beneficiar pessoas em situação de apatridia.
Apesar disso, dificilmente a organização atingirá a meta proposta. Para o pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Guilherme Antunes Ramos, ainda que o Direito Internacional tenha avançado em relação às problemáticas envolvendo a nacionalidade, a apatridia continuará sendo um impasse enquanto países e a ONU trabalharem soluções focadas não no humanismo, mas na soberania estatal.
“A própria edificação de ações combativas à apatridia – como as convenções de 1954 e 1961, e a Campanha I Belong – parece sustentar a impossibilidade de se referendar a proteção de direitos humanos com base apenas na humanidade de seus agentes, posto que tais ações apostam na aquisição de nacionalidade como única solução possível. Comprova-se, assim, a pertinência da crítica de Hannah Arendt ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Enquanto ainda dependerem da intermediação do Estado-Nacional, os direitos humanos seguirão, conforme pontua Samuel Moyn (2010), como uma grande utopia. Somente a superação do estatocentrismo em favor do humanismo em seu sentido mais amplo poderá dotar as normas de direitos humanos da força necessária para que irradiem de forma plena e eficaz a proteção e o respeito aos direitos fundamentais, sem distinções de qualquer ordem” (RAMOS, 2018, p.304).