Por Rodrigo Borges Delfim e Lya Maeda
A chegada de quatro jovens afegãos ao Rio de Janeiro nesta semana, que conseguiram visto humanitário na Turquia para ingresso no Brasil, teve uma sensação a mais de alívio. Além das condições enfrentadas no Afeganistão, novamente sob o governo do grupo extremista Talibã, o grupo ainda precisou contornar uma situação de mal-entendido que quase impediu a viagem.
O caso foi relatado pela ONG IKnow My Rights (IKMR), envolvida na mobilização pela vinda dos quatro jovens, por meio da conta no Instagram. No último dia 22, a instituição disse que a companhia aérea Qatar Airways havia negado o embarque dos quatro rapazes a partir da capital turca, Ancara – a embaixada brasileira no país é uma das que estão habilitadas para emissão de vistos humanitários para afegãos.
O motivo alegado, segundo os afegãos, era de que os jovens – com idades entre 18 e 23 anos – “não possuíam o perfil para voar pela empresa”.
“A companhia aérea @qatarairways impediu o embarque alegando que eles são suspeitos por não terem bagagem, por portarem somente uma mochila e não possuem o perfil para voarem pela Qatar, portanto devem procurar por outra companhia aérea porque com eles, eles não viajam!!!”, escreveu a IKMR no Instagram, cobrando posicionamento da Qatar Airways.
De acordo com a IKMR, familiares dos jovens afegãos que vivem no Brasil mobilizaram recursos legais e financeiros, incluindo uma vaquinha, para garantir que eles pudessem chegar ao país. Toda essa articulação ficou a ponto de ser perdida diante da negativa inicial do embarque pela empresa.
Pouco depois, usuários brasileiros começaram a questionar a companhia aérea em postagens sobre o caso. Uma publicação da Qatar sobre uma campanha contra o câncer de mama do time feminino do Paris Saint-Germain (PSG) – que é patrocinado pela empresa – ficou repleta de comentários cobrando uma reposta sobre o caso, tanto em português quanto em inglês.
Mudança de rumos
Ao tomar conhecimento do caso, o MigraMundo procurou a assessoria de comunicação da Qatar Airways no Brasil para verificar o que estava sendo feito em relação ao caso. Horas depois, já na manhã de sábado (23), a companhia entrou em contato com a IKMR.
Na resposta, a Qatar informou que o que estava ocorrendo era um grande mal entendido e que iria trabalhar para que os quatro afegãos conseguissem chegar ao Brasil em segurança. O retorno gerou a segunda publicação da IKMR nas redes sociais, tranquilizando as pessoas que acompanhavam o caso por meio dos relatos da ONG.
“Fizeram questão de ressaltar que a empresa tem um comprometimento com a resposta humanitária global que está sendo articulada em socorro à população afegã e que o que ocorreu foi um caso isolado, envolvendo uma documentação extra que eles deveriam apresentado também”, relatou a ONG via Instagram.
A IKMR admitiu ao MigraMundo que foi a partir da solicitação do site à operação brasileira da Qatar Airways sobre o caso que a companhia aérea tomou conhecimento do assunto e acionou a matriz, que começou a investigar o ocorrido e tomou as providências seguintes.
Fontes ligadas à companhia falaram ao MigraMundo de forma reservada que a companhia aérea negou o embarque porque os quatro jovens afegãos não apresentaram o teste de Covid-19 exigido pelas autoridades brasileiras para embarque, chegaram pouco antes do horário do voo e tinham pouca bagagem (somente uma mochila cada). Ainda segundo essas fontes, a ausência desses elementos e uma questão idiomática levaram o grupo a entender que eles “não tinham o perfil” para embarque”. A empresa temeu ainda que os jovens poderiam estar em situação de tráfico humano, pelas condições em que chegaram ao aeroporto de Ancara.
Poder da cooperação
Desfeito o mal entendido, os quatro jovens afegãos enfim embarcaram para o Brasil, chegando na última segunda-feira (25) ao aeroporto internacional de Guarulhos (SP). De lá, seguiram no mesmo dia em um voo da Latam para o aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, destino final do grupo.
O final da jornada também foi registrado nas redes sociais, com agradecimentos às duas companhias aéreas envolvidas na longa viagem entre a capital turca e o Rio de Janeiro.
“Finalmente esses garotos afegãos alcançaram o tão esperado refúgio em nossa terra! Se lar é onde o coração está, acho que podemos dar como certo de que nos braços desse tio eles terão de volta um pouquinho da sensação de como é se sentir em casa! Que todos que fizeram parte dessa resposta humanitária, se sintam também abraçados por essa família”, escreveu a ONG nas redes sociais.
Falando diretamente ao MigraMundo, a diretora da IKMR, Vivianne Reis, afirmou que o caso mostra o poder e a necessidade da cooperação mútua para assegurar a proteção a pessoas em situação de vulnerabilidade.
“Os desafios são tão inimagináveis e parecem não ter fim, mas não podemos nunca perder de vista que o que está em jogo é a nossa própria humanidade. E por isso temos de colaborar uns com os outros em todas as etapas até que quem precisa consiga alcançar um lugar seguro”.
Visto humanitário e afegãos no Brasil
Em 3 de setembro, o Brasil anunciou que concederia visto humanitário para afegãos, duas semanas depois de admitir que estudava a medida. De acordo com a regulamentação do visto humanitário na Lei de Migração, sua aplicação depende de um ato do Poder Executivo – o que de fato ocorreu neste caso, em portaria publicada no dia 6 do mesmo mês.
Apesar do gesto, afegãos que vivem no Brasil tem denunciado uma série de condições que as embaixadas brasileiras no exterior estão exigindo dos solicitantes de visto humanitário. Eles estão tendo de provar, entre outros pontos, que serão mantidos durante ao menos seis meses por alguma organização que banque uma longa lista de despesas. Entre as exigências estão plano de saúde e odontológico, renda mensal, hospedagem, alimentação, transporte, teste PCR para Covid-19 e custos para revalidação de diplomas. E também exigem que o solicitante tenha deixado o Afeganistão de forma regular – o que é praticamente impossível, diante do fechamento das fronteiras do país asiático.
Essas exigências não constam na portaria que regulamentou a concessão do visto. O texto determina que os solicitantes apresentem quatro documentos: passaporte, comprovante de meio de transporte para o Brasil, atestado de antecedentes criminais (que pode ser trocado por uma declaração de próprio punho) e formulário oficial preenchido.
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, até o começo de outubro um total de 30 vistos humanitários foram concedidos para afegãos, em um universo de 400 solicitações registradas pelo próprio Itamaraty.
A suspeita, segundo os afegãos e demais organismos braisileiros que atuam junto a migrantes, é que esteja sendo colocado em prática o discurso apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro na Assembleia-Geral das Nações Unidas. Em setembro passado, ele afirmou que o visto humanitário seria aplicado aos afegãos “cristãos, mulheres, crianças e juízes”.
De acordo com o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), ligado ao Ministério da Justiça, 162 afegãos já foram reconhecidos como refugiados no Brasil, enquanto 49 processos estão ainda em tramitação. Desde dezembro de 2020 o próprio governo brasileiro reconhece o Afeganistão como país de “grave e generalizada violação de direitos humanos – o que, à luz da lei brasileira de refúgio, garante uma tramitação mais célere dos pedidos de afegãos.
Situação global
Desde o começo do ano, a violência levou 3,5 milhões de afegãos a abandonarem suas casas. Essa população vai se somar às cerca de 2,9 milhões de pessoas que já estavam deslocadas internamente ao final de 2020, de acordo com a agência das Nações Unidas para refugiados, o ACNUR. Parte desse grupo já tentava chegar a países vizinhos, como o Paquistão e o Irã, em busca de proteção internacional – uma tarefa complicada, já que o Talibã fechou as fronteiras afegãs.
“Esperamos que a situação no Afeganistão se estabilize e que as pessoas não sejam forçadas a deixar o país. Mas sendo a Agência da ONU para Refugiados, temos que estar preparados para o pior cenário. Muitas vezes, deixar o país não é apenas o último recurso, mas a única opção que as pessoas têm para sobreviver e ter acesso aos seus direitos humanos mais básicos”, afirmou Kelly Clements, Alta Comissária Adjunta do ACNUR, ao apelar à comunidade internacional que garanta proteção aos afegãos que conseguirem deixar o país.
Segundo projeções das Nações Unidas sobre o Afeganistão, até 500 mil pessoas vão procurar refúgio em outros países.
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