As cidades também são locais que contam com a presença de pessoas e comunidades indígenas, tanto de povos originários do Brasil quanto de países vizinhos. E um evento em São Paulo ajudou a entender as conexões entre elas, que acabam subestimadas ou mesmo ignoradas pelo senso comum. Além disso, também serviu como espaço para pedir que os dados sobre essa população sejam aprimorados, de forma a dar visibilidade também a indígenas migrantes e dar suporte a futuras políticas públicas.
A atividade ocorreu no último dia 27 de março, promovida pelo Floresta no Centro, livraria e espaço de diálogo mantido pelo ISA (Instituto Sócio Ambiental) na Galeria Metrópole, na região central da capital paulista. Ela reuniu mulheres indígenas de diferentes etnias e nacionalidades que vivem no Brasil, partilhando suas experiências de vida e como encontraram formas de lutar por suas comunidades, ao mesmo tempo em que resgatam e valorizam as próprias origens.
De acordo com o Censo de 2022, o Brasil tem 1.693.535 pessoas indígenas, o que corresponde a 0,83% da população total do país. No entanto, não há dados consolidados sobre populações indígenas migrantes, que acabam contabilizadas somente pela nacionalidade.
Luta pela terra e pelo direito de migrar
“Não temos nenhum tipo de mapeamento de quantos indígenas migrantes estão nesse território, porque estamos invisbilizados. Precisamos desses dados para poder abrir oportunidades”, apontou a ativista e artista boliviana Fernanda Noemi Soto. Mais conhecida como Fernanda Quéchua, ela representou no evento a AYNI (Articulação Andina de Indígenas Migrantes).
Formada em meados de 2024, a articulação adota o termo “Ayni” por expressar um conceito central para as etnias Aymara e Quechua, de cooperação e ajuda mútua.
Entre as reivindicações da AYNI estão:
- reconhecimento das etnias transfronteiriças pelo Estado brasileiro;
- censos sobre a população indígena migrante no Brasil;
- direito às cotas indígenas na educação superior;
- flexibilidade e acessibilidade à regularização migratória e revalidação de documentos (diplomas, certidões de estudos e outros);
- direito ao ensino das línguas indígenas;
- direito ao uso das medicinas tradicionais.
Muitas das pautas levantadas pela AYNI dialogam com reivindicações das comunidades indígenas no Brasil. Nesse sentido, Fernanda aproveitou o debate para fazer um chamado de união entre as diferentes etnias também por temas ligados à questão ambiental e contra a exploração desenfreada de recursos naturais.
“A luta por Abyayala [termo usado por comunidades originárias para se referir ao continente americano] é também uma luta pelo direito de migrar”, reforçou Fernanda Quéchua, que levou para o evento uma wiphala, bandeira que representa os povos originários dos Andes e é um símbolo de resistência histórica.
Arte como conscientização sobre ser migrante e indígena
“Sempre me pus a pensar por que meus pais migraram. Nossas comunidades sempre migraram, mas não da forma como acontece hoje”, refletiu Natali Mamani, ativista e artista boliviana, indígena andina de etnia aymara, que também tomou parte no debate.
Mamani – que nasceu na Bolívia e veio para o Brasil aos 4 anos, junto com os país – citou que as comunidades originárias sempre se movimentaram pelo continente americano, realizando trocas comerciais e culturais. No entanto, essas dinâmicas foram alteradas pela colonização europeia, retirando-lhes território e fazendo dessa migração uma necessidade para questões laborais e de sobrevivência, como o trabalho em oficinas de costura em países como Argentina e Brasil.
Ela citou ainda a crescente conscientização dentro da comunidade de pessoas que passam também a se identificarem como indígenas, além de pessoas migrantes. E a arte tem sido um dos canais principais por onde tal reconhecimento tem sido expressado.
Parte desse sentimento é capturado pela série documental Ventos do Peabiru, lançada em 2023 e que faz referência a uma antiga rota indígena, que no período anterior à colonização europeia atravessava toda a América do Sul, conectando povos, culturas e territórios do Oceano Atlântico ao Pacífico.
Integrante do coletivo cultural Cholitas de Babilônia, Mamani mencionou ainda outras organizações no Brasil que são tocadas ou contam com grande presença de mulheres migrantes andinas, como a Equipe de Base Warmis – Convergência de Culturas, Rede MILBi+ e Flor de Kantuta.
Tamanho potencial da comunidade migrante indígena no Brasil
Embora não existam dados oficiais sobre indígenas migrantes no Brasil, algumas projeções extraoficiais mostram que essa comunidade deve ter números significativos.
Segundo dados de 2022 do Observatório das Migrações em São Paulo, existiam mais de 140 mil pessoas nascidas na Bolívia, migrantes no Brasil e registradas pelo Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGRA). Considerando ainda informações oficiais do governo boliviano que mais de 40% da população nacional com mais de 15 anos se autodeclarou indígena, uma estimativa possível é que 56 mil dos 140 mil bolivianos no Brasil também se considerem indígenas, caso haja espaço para tal recorte nas estatísticas brasileiras.
Há também pessoas que se identificam como indígenas em meio às comunidades peruana e equatoriana, além da migração recente de comunidades indígenas baseadas na Venezuela, como os Warao, Taurepang e Ka’riña.
ATL a caminho
O apelo de Fernanda e Natali sobre maior visibilidade para as comunidades indígenas migrantes acontece às vésperas da realização do Acampamento Terra Livre (ATL), manifestação anual em Brasília (DF) que reúne povos originários de todo o Brasil e países vizinho no mês de abril. Neste ano, o evento será entre os dias 7 e 11.
A edição de 2024 do ATL foi a primeira a contar com uma articulação oficial entre povos originários de outros países sul-americanos. A AYNI, inclusive, tem procurado mobilizar a comunidade migrante e demais pessoas simpatizantes no sentido de obter recursos para o envio de uma delegação para o ATL.
Maiores informações sobre como colaborar com a AYNI podem ser obtidas por meio deste link.
Em 2024, a participação das comunidades migrantes indígenas no ATL foi relatada neste artigo escrito especialmente para o MigraMundo.
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