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quinta-feira, março 28, 2024

As duas vidas da migração haitiana no Brasil

Em 24 horas, os haitianos no Brasil foram tema de duas notícias que vão marcar a comunidade pelo restante do ano, para o bem e para o mal

Por João Chaves

Em Vidas Paralelas, uma conhecida obra sobre a Antiguidade, o historiador grego Plutarco  escreve a biografia de 46 homens de destaque de seu tempo, gregos e romanos, associando-as em pares. A ideia seria estabelecer semelhanças e diferenças entre os povos e os biografados, como uma forma de melhor contar a proximidade entre os mundos em que viveram. Essa referência do passado parece-me agora bastante apropriada para, passados quase dois mil anos de sua escrita, entender o que foram as últimas semanas para a diáspora haitiana no Brasil.

No ano de 2022 comemoramos os dez anos da política brasileira de concessão de vistos humanitários para nacionais do Haiti, ainda com os ecos do terremoto de 2010 e da intensificação desse movimento migratório em toda a América do Sul, e especialmente no Norte do país. A Resolução Normativa nº 97 do CNIg – Conselho Nacional de Imigração permitiu que milhares de pessoas haitianas pudessem obter visto e a então chamada permanência no Brasil, e foi objeto de sucessivas prorrogações. Sem dúvidas, o CNIg e o Ministério da Justiça escreveram nos anos subsequentes uma das mais belas páginas da história da política migratória brasileira, o que nem de longe lembra o perfil atual do Conselho após sua reformulação em 2017.

A partir daí, a consolidação de uma diáspora haitiana forte por todo o Brasil e a deterioração do quadro econômico, político e social do Haiti nos anos mais recentes gerou dois movimentos inevitáveis. De um lado, o reconhecimento do direito das pessoas haitianas no Brasil à regularização e obtenção de documentos. Por outro, a necessidade de garantir vistos para que seus familiares e outras pessoas pudessem vir ao Brasil de modo regular, sem recorrer a cada vez mais perigosas jornadas por via terrestre por não possuírem o documento.

Desde 2018, com a regulamentação da Lei de Migração, os dois temas foram abrangidos pelo novo instituto jurídico da acolhida humanitária, que garantiria a emissão de vistos e a concessão de autorizações de residência às pessoas provenientes de países “em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento”.

A opção do Poder Executivo desde o início foi clara quanto à concessão do direito por nacionalidade, sendo as pessoas haitianas as primeiras beneficiadas, em portarias interministeriais sucessivas. É nesse ponto que as duas vidas da migração haitiana parecem ter motivos para comemorar e para lamentar.

Após o espanto inicial em dezembro de 2021 pela prorrogação da acolhida humanitária por apenas quatro meses, até abril deste ano, houve recomendação da Defensoria Pública da União que garantiu a renovação do direito, por nova portaria (Portaria Interministerial nº 29), até dezembro de 2022. Ou seja, uma vitória para a comunidade haitiana, que segue sendo reconhecida como titular do direito de acolhida humanitária.

Em paralelo a isso, desde 2021 trava-se uma batalha jurídica em ações individuais e coletivas para pleitear a dispensa de vistos para fins de acolhida humanitária para a viagem de pessoas haitianas, por via aérea, com destino ao Brasil. O fundamento seria o total colapso do sistema emissão de vistos no BVAC – Brazilian Visa Application Center, vinculado à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, decorrente da pouca quantidade de vagas oferecidas, da ação de hackers e despachantes e, por fim, dos fechamentos durante a pandemia.

Seguindo uma onda de liminares favoráveis e a forte pressão exercida contra a União e o Ministério das Relações Exteriores, veio a notícia: por meio da Suspensão de Liminar e de Sentença nº 3092, o Presidente do STJ – Superior Tribunal de Justiça suspendeu todas as decisões favoráveis à dispensa de visto, atuais ou futuras, em processos individuais ou coletivos. Ou seja, o STJ paralisou o tema sob o argumento de “grave lesão à ordem, à economia e à segurança públicas”. E tudo isso sem qualquer sinal concreto de melhoria do serviço de emissão de vistos, em que continua impossível o agendamento por vias normais.

Dado curioso: a decisão foi publicada no dia 25 de abril, e a portaria interministerial de renovação da acolhida humanitária no dia seguinte. Em vinte e quatro horas, duas notícias que vão marcar o ano para a diáspora haitiana no Brasil, para o bem e para o mal.

Num momento de crise, em que aumenta o risco de invisibilidade do tema e de mudanças na política brasileira para sua recepção, é preciso pensar na acolhida humanitária para os que estão no Brasil e os que ainda pretendem vir. Celebrar a portaria de renovação, e ao mesmo tempo, seguir denunciando a impossibilidade prática de obtenção dos vistos no Haiti. Essas duas vidas da migração haitiana são, na verdade, uma só, e o direito precisa ser garantido em ambas as situações.

Sobre o autor

João Chaves é defensor público federal, coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em São Paulo. Doutorando em Ciências Sociais na UFABC. Email: [email protected]

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