Duas histórias que ocorreram com cinco anos e seis meses de distância entre uma e outra. Os personagens são diferentes, mas o resultado e o contexto no qual se inserem são semelhantes. E refletem muito a forma como os migrantes são vistos em diferentes sociedades mundo afora.
Antes de prosseguir, vale a pena recordar alguns detalhes de cada uma, da mais recente para a mais antiga.
Novembro de 2023
O brasileiro Caio Benício, 43, natual do Rio de Janeiro e que trabalha como entregador de aplicativo em Dublin, (Irlanda), deixou o anonimato – ao menos por algum tempo – depois que usou o próprio capacete contra um homem que cometia um ataque com faca contra uma escola em Dublin, capital irlandesa.
Em 23 de novembro, Caio viu uma menina sendo esfaqueada por um homem que já havia atacado outras pessoas e reagiu contra o agressor. De acordo com a imprensa local, o brasileiro impediu que a tragédia fosse ainda maior. No total foram cinco feridos, sendo três crianças.
O autor do ataque seria um não-nacional, o que motivou ainda uma série de protestos em Dublin anti-migração violentos. Autoridades irlandesas reportaram que 34 pessoas foram presas nesses atos na sexta-feira (24). As motivações do crime ainda não foram esclarecidas, embora o governo irlandês descarte a hipótese de terrorismo.
Depois do ocorrido, Caio foi tema de uma vaquinha online promovida por irlandeses para ajudá-lo, com o mote de “pagar uma cerveja” para ele. O valor alcançado já passa do equivalente a R$ 1,3 milhão.
Caio, por sua vez, afirmou que vai destinar o dinheiro para custeio do tratamento da menina salva por ele. E rejeitou o título de herói que foi a ele atribuído após o ocorrido.
Um dos que felicitaram o brasileiro pela intervenção contra o ataque em Dublin foi Conor McGregor, lutador de MMA ligado ao UFC e um dos nomes mais conhecidos da Irlanda na atualidade.
Em outra postagem no X, antigo Twitter, o mesmo McGregor, no entanto, pareceu demonstrar simpatia pelos atos anti-imigração em Dublin.
Maio de 2018
Então com 22 anos, o malinês Mamadou Gassama viu sua vida mudar. Em 28 de maio de 2018, ele arriscou a própria vida para escalar um prédio em Paris (França) e salvar uma criança que estava pendurada no quarto andar.
De ilustre desconhecido e sem documentos para viver na França, Mamadou passou a ser visto como virou herói da noite para o dia – chamado inclusive de “Homem Aranha”por alguns meios de comunicação mundo afora.
O ato espontâneo se transformou em um uma onde de apelos para que sua situação fosse regularizada pelo governo. E o presidente francês, Emmanuel Macron, além de o receber no palácio presidencial, anunciou que ele receberia cidadania francesa – o que de fato ocorreu em setembro daquele ano – e que seria integrado ao Corpo de Bombeiros.
De imigrante indocumentado e passível de expulsão do território francês, Mamadou virou herói.
É preciso virar herói para ser notado e respeitado?
São cinco anos e meio de intervalo entre essas duas histórias. Apesar da distância temporal, elas estão ligadas e representam cenas de um filme que se repete, mas que costuma cair no esquecimento em pouco tempo.
Tanto Caio quanto Mamadou tiveram de virar heróis para serem notados em meio à multidão. Como migrantes, tiveram de protagonizar algo extraordinário para serem reconhecidos e valorizados como humanos.
Em 2018, em meio à repercussão do ato de Mamadou, o MigraMundo ouviu migrantes de diferentes nacionalidades sobre como viam esse episódio. Todos destacaram essa contradição cotidiana de “se virar nos 30”, em uma expressão popular no Brasil, enquanto batalham contra preconceitos que são aplicados a não-nacionais – e que podem apresentar variações de acordo com o país de origem.
E Se Caio não tivesse usado o capacete para impedir a continuidade do ataque a faca em Dublin? E se Mamadou não tivesse escalado o prédio em Paris?
Uma reflexão necessária
As duas histórias têm suas características próprias, é verdade. No caso envolvendo o brasileiro, por exemplo, o autor do ataque por ele frustrado seria um outro migrante, elemento que, numa leitura rasa e maniqueísta, pode ser levado ao debate enganoso sobre os migrantes “úteis” e os que não são enquadrados nessa classificação.
Os dois episódios, enfim, vão além do ato espontâneo de empatia e compaixão pelo próximo, independente de sua origem ou cultura.
Embora haja todo um espetáculo diante dos dois fatos, por todos os elementos presentes, tanto Caio quanto Mamadou representam oportunidades – entre tantas outras – de despir a migração dos estereótipos que em geral são associados a ela.
Ao mesmo tempo, ambos devem servir para uma importante reflexão: é preciso que o migrante vire herói para romper com os estigmas que em geral são a eles aplicados? Quantos Mamadous e Caios, em diferentes países, precisam ser verdadeiros heróis na vida cotidiana para sobreviver, sem o devido reconhecimento?
Que episódios como os de Caio e Mamadou ajudem a ver os migrante como realmente são: seres humanos, sujeitos de direitos e deveres. E que não precisariam ter de virar heróis para alcançarem tal reconhecimento.
Importante colocação. Precisamos reconhecer esse migrantes como seres humanos e que já são heróis pelo fato de deixarem sua pátria a procura de uma vida melhor, enfrentando tantos desafios.