Por Cécile Clement
Traduzido por Victória Brotto
Leia o relato original em francês
Cécile Clement, assistente social da Federação de Ajuda Protestante (FEP, em francês) responsável pelo acolhimento de refugiados na região francesa do Grand-Est, visitou o Líbano uma semana antes do confinamento, entre os dias 09 e 15 de março, para conhecer as atividades do programa Corredores Humanitários em alguns dos principais campos de refugiados do país.
Na volta, Cécile também acompanhou cinco famílias sírias, 20 pessoas no total, na viagem para a França, onde elas se instalaram enquanto refugiadas. Na chegada, as famílias foram acolhidas por diferentes associações.
O MigraMundo convidou Clément para compartilhar com as nossas leitoras e leitores as suas impressões e reflexões sobre um dos países que mais acolhem refugiados no mundo
Segunda-feira, 9 de março : imersão sonora em Beirute
Eu chego em Beirute logo depois da hora do almoço, hora local ( 1 hora de diferença da França). Faz calor na cidade ( 20 graus) , e, no ar, já se nota a poluição bem presente. Dentro do carro, a imersão sonora começa: o trânsito mal organizado, o barulho das buzinas ritimam todos os movimentos , elas vêm e vão de todo o lugar e a cada instante elas podem significar uma coisa ( bom dia/ atenção eu vou passar/ ande mais rápido!/ saí daí!/ táxi?)
A travessia do centro da cidade nos mostra que os protestos dos libaneses iniciados em outubro de 2019 deixaram suas marcas: vitrines de lojas e faixadas de agências bancárias quebradas e pixadas com mensagens de renvindicações, também presentes nas principais praças da cidade.
Os protestos começaram não apenas por causa da cobrança do serviço Whatsapp até então gratuito, mas também por causa de um contexto sócio-econômico degradado há anos, e para o qual a classe dirigente do país se mostrou incapaz de encontrar soluções duradouras.
Ausência de uma política orçamentária, corrupção da classe política, envidividamento público com o qual a população precisa arcar, com mais e mais taxações… O Líbano é, assim, um dos países mais desiguais do mundo.
A imersão sonora continua: o chamado para a oração feito das mesquitas ecoam pelos bairros mulçumanos da cidade ao mesmo tempo em que os sinos das igrejas soam nos bairros cristãos. As áreas da cidade são organizadas por confissões religiosas. Eu não esperava tanta diversidade!
Terça-feira, 10 de março : condições de vida no campo de Chatila
É preciso mergulhar em ruelas para conseguir achar o centro do campo de Chatila, que não é feito constituído de tendas nem barracas. Ao longo dos anos, pequenas casas de madeira foram substituindo as tendas. As pessoas são abrigadas – atualmente sírios e palestinos – no « duro » : alojamentos superpopulados e insalubres, aos quais nós acessamos por meio de pequenas vielas perpendiculares muito estreitas.
O Souk (feira árabe) de legumes e os numerosos habitantes ocupam o espaço. Diversos odores se confudem : esgoto a céu aberto, galinhas vivas que voam por cima de nossas cabeças! O estado das instalações elétricas nos apavoram, o sistema de evacuação de água e de escrementos nos parecem inexistentes.
Nós encontramos no campo duas famílias, para melhor conhecer a situação atual delas assim como seus históricos e para apresentá-las o programa dos Corredores Humanitários (CH) e falar sobre o acolhimento na França.
No Líbano, a presença dos refugiados são apenas toleradas. O que acontece nos campos, seja violência, problemas de higiene, de acidentes domésticos, ausência de assistência médica ou criminalidade, parecem problemas secundários.
Esse ambiente obriga as pessoas a se virarem como elas podem com suas angústias, com as situações de precariedade e com suas esperanças de talvez um dia poderem sair dali. A inveja, a discriminação, a denunciação, a corrupção são presentes em numerosas histórias de vida.
Por causa da crise global que o Líbano conhecesse há anos e das condições de higiene descritas, o país tomou rapidamente as medidas necessárias face ao Covid-19. O fechamento de lugares públicos e o confinamento foram aplicados desde o dia 10/03, porque uma crise sanitária não poderia ser absorvida pelo país.
Quarta e quinta-feira : Consulado francês e Segurança Geral
Depois de serem entrevistas nas suas casas, as famílias devem se apresentar ao Consulado da França em Beirut para fazer um pedido de visto para entrada no país, justificando a sua ida para lá. Soledad acompanha as famílias na entrevista e as ajuda na apresentação das justificativas da viagem.
Quarta-feira nós acompanhamos uma família palestina, de sete pessoas, e um senhor sírio sozinho que é perseguido em razão da sua orientação sexual e que sofre de um tumor no cérebro.
Em seguida, a etapa de regitro na Segurança Geral (um serviço estatal que cumpre diferentes funções policiais e militares) é obrigatório. Nós acompanhamos então as cinco famílias, entre quarta e quinta-feira, que estão previstas para embarcar para a França na semana seguinte. Os refugiados que participam desses programas (Corredores Humanitários, programas da OIM…) precisam esperar em um hall específico dentro do prédio, no entanto, os acompanhante devem entrar por uma outra entrada para depois encontrar as famílias no interior do prédio.
Os agentes da Segurança Geral verificam a situação de cada pessoa /família no território libanês afim de autorizar ou não a saída delas do país. Concretamente, os oficiais verificam se as pessoas cometeram alguma ilegalidade no Líbano ou se elas possuem alguma dívida e/ou contas à prestar ao Estado libanês.
Por exemplo, um grande número de sírios trabalham no Líbano sem autorização de trabalho e podem, por isso, serem bloqueados pela Segurança Geral. Uma atmosfera particular, solene e rígida, reina nesse lugar, onde as pessoas refugiadas não são bem recebidas, e elas sabem que essa etapa pode comprometer a sua partida e pode até precisar pagar multas se algo for indicado pelos agentes.
Um dos senhores acompanhados por nós não tinha um documento virgem e ele foi retido pela Segurança Geral por uma semana. Ele não pode partir com a sua esposa e filhos na viagem prevista para a França, os encontrando apenas tempos depois, quando a situação foi resolvida graças à ajuda de um advogado.
Domingo, 15 de março : o dia da viagem para a França
A viagem foi antecipada para o domingo por causa da anulação dos voos anunciada para acontecer a partir de segunda-feira, 16 de março, devido à epidemia do Covid-19. Eu me disponho a acompanhar sozinha o grupo de 20 pessoas ( cinco famílias) no voo do Líbano até o aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Para a maioria dos adultos e das crianças do grupo, é a primeira vez que eles viajam de avião.
Nós chegamos muito adiantados no aeroporto à Beirut, cada etapa tomará tempo por causa do número de pessoas : registro de bagagens, check-in, passagem pela segurança e, novamente, ida ao guichê da Segurança Geral e embarque. No hall do aeroporto, cada etapa é explicada às pessoas em árabe, um documento escrito recapitulativo lhes é dado, e nós consagramos tempo para lhes informar sobre a situação atual frente ao coronavírus e as consígnias a serem respeitadas ( lavar regularmente as mãos e manter ao menos um metro de distância).
A situação na França lhes é apresentada de forma que as pessoas possam estar informadas do porquê, na chegada, as equipes que estarão à espera deles não se aproximarão muito nem os comprimenterão com apertos de mão. Eles também foram informados sobre o fechamento das escolas e sobre as regras do confinamento, etc.
O grupo das famílias me segue ao longo das diferentes etapas, ele se mostra solidário e reativo, ajuda-se os pais que têm crianças pequenas. Nós nos comunicamos em inglês (básico) com alguns e com os outros por meio de um aplicativo de tradução árabe/francês.
As crianças comecam a se conhecer entre elas e também elas comigo. Eu imagino que elas devem estar curiosas e impacientes para saber como será quando o avião decolar. Os adultos aproveitam para passear no espaço Duty Free e os fumantes para fumar ainda alguns cigarros antes de entrarmos no aviao. Eu suponho ainda que as famílias estejam a falar de Paris, da Torre Eiffel, do metrô, e do coronavírus!
A viagem passa sem problemas. A equipe da Air France, informada pelos meus cuidados de que alguns viajantes falam árabe, dedica tempo para mostrar a eles o funcionamento de tablets assim como para instalar o melhor possível os pais com as crianças pequenas.
Na chegada, um pequeno comitê de recepção nos espera (FEP, St Egidio, capelão do aeroporto) para desejar as boas vindas às famílias, mesmo apesar da distância física. As familías dormirão, algumas, em casas de famílias em Paris por uma noite ou em um hotel para, no dia seguinte, pegar o trem até a cidade de acolhimento: Toulouse, Valence, Pau, Faremoutiers.
Impressões pessoais
A constatação sobre o abandono no qual os campos são deixados, onde os refugiados são abandonados à própria sorte, em condições de higiene desastrosas, ficará por muito tempo na minha memória.
A maneira que o Estado libanês trata os refugiados sobre o seu território me marcou de igual modo: a presença deles é apenas tolerada. Além disso, o Estado libanês pouco se preocupa com que acontece dentro dos campos, seja a violência, os problemas de higiene, os acidentes domésticos, a ausência de assistência médica ou a criminalidade.
Está longe de ser fácil ter que fugir do seu país por causa da guerra, mas o sentimento de não se sentir bem-vindo onde nós chegamos depois de tudo, é ainda uma dificuldade a mais enfrentada pelos refugiados.
O que eu quero dizer é que o que eles enfrentaram antes não parece ser levado em conta pelo país que os acollhe. Ao rever as minhas anotações e revisitar certas reflexões, eu começo a me dar conta que é o ambiente que leva essas pessoas a se virar como elas podem ( e tendo que o fazer com as angústias misturadas com as esperanças de sair de lá). E esse ambiente também pode produzir inveja, discriminação, denúncias e corrupção.
A situação continua a me interpelar : pela sua localização geográfica, o Líbano acolhe 1,5 milhões de refugiados, o que traz consequências. No entanto, o Estado quer vê-los deixando rapidamente o território, mas ao mesmo tempo, ele transforma os procedimentos de saída el algo extremamente difícil. É assim então que o Estado consegue dinheiro ao mesmo tempo que mostra estar controlando a situação.
Eu me questiono sobre esse business que tem consequências da envergadura de uma crise humanitária. Precisa-se sempre tirar proveito de todas as situações? É verdade que o Líbano passa por um período econômico ruim e isso nos deve nos questionar: nós, habitantes de países onde a economia se comporta melhor, o que estaríamos prontos a fazer se a nossa situação ficasse tão complicada quanto a desses países?
No Líbano, eu imaginava o desconforto das pessoas exiladas ao chegarem na França. Eu, no Líbano, me senti perdida e sem referência, imergida em um país que eu não entendia a língua, e onde os códigos sociais não eram os meus. Eu não me sentia capaz de ser autônoma. Muitas ações cotidianas que me era habitualmente fáceis, se transformaram extremamente difíceis, de um tipo de dificuldade nunca antes vivida.
É uma verdadeira fatiga para a mente, que passa a sermais solicitada do que o normal; torna-se necessário achar em si os recursos interiores para continuar motivado. Eu sempre pensava nas famílias que havíamos acolhido no Grand-Est e ao estatuto delas de “pessoas migrantes”, com medo de partir, obrigadas a enfrentar um lugar imposto a elas pelo país de acolhimento. Elas passam de uma sociedade ( com organizações que lhe são próprias) à outra.
No Líbano e na Síria em guerra, a relação com o direito do cidadão é muito diferente. A relação com o dinheiro, com o Estado e com a polícia, a maneira de se dirigir ao outro, o lugar da mulher, das crianças, mas também os cheiros, as vozes, os gostos…tudo é diferente.
Na França, os direitos sociais são uma herança; e o acesso a eles é algo real e efetivo para todos. Eu imagino melhor agora que não seja fácil para as pessoas exiladas entender de onde vêm todos esses direitos, como eles foram criados e porque eles existes hoje em certos países e não em outros. Nós não crescemos com a mesma História.
A nossa missão de acolhimento toma enfim um senso ainda maior. O acolhimento engloba tudo: o encontro, o abrigo, as trocas, a ajuda à subsistência, mas também o acompanhamento para ajudar a pessoa entender melhor a sociedade que a acolhe. As pessoas refugiadas, normalmente, não imaginam as dificuldades que as esperam na França no quesito “integração”.
A espera vivida nos campos sob péssimas condições, a imagem que eles fazem da França, as informações que circulam nos campos as levam a esperar escola para os filhos, atendimento médico e uma casa para a sua família. Como ser ator, quando o nosso futuro ainda nos é incerto? Como qualquer pessoa, eles também esperam uma vida melhor. E nós, como nós podemos acompanhá-los na descoberta do novo país de residência? Como podemos acompanhá-los para aliviar seus fardos, atender suas necessidades, mas também como podemos lidar com as suas desilusões quando eles percebem que a realidade não é aquilo que esperavam ?
Essas são as questões que eu me fiz – e que eu já me fazia a cada dia ; é a minha profissão (enquanto resposável pelo acolhimento de refugiados). Mas a possibilidade de visitar o Líbano, fez com que essas questões tomassem um ângulo novo.
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