MigraMundo acompanhou por cinco meses o dia a dia de Shang Sardar Magded, que após 1 ano e 7 meses de fugas e prisões, reencontrou o marido na França
Por Victória Brotto
Em Estrasburgo (França)
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Uma pequena janela despontava no alto de uma igreja, no centro da cidade francesa de Estrasburgo. De lá, via-se os telhados de todas as casas ao redor – e a lua. “Você já subiu para ver a vista daqui, Shang? É maravilhosa!”. “Não, me dá um pouco de medo de ir até a janela”, respondeu Shang a duas recém-conhecidas que depois se tornariam suas amigas.
Era noite já densa em Estrasburgo, noite de um outono que havia sido duro à Shang Sardar Magded, 21 anos, curda, nascida nos campos que circundam Erbil, capital da Região Autônoma do Curdistão.
Após anos de guerra com o Iraque, inclusive de genocídio (1986) que aniquilou quase 200 mil curdos, o Curdistão, situado ao Norte do Iraque, ganhou autonomia depois da queda do regime de Saddam Hussein, em 2003.
Há quase 4 mil quilômetros distante do Curdistão, Shang via-se sozinha naquele pequeno quarto feito todo em madeira, no centro de uma das cidades mais ricas da França. Naquela noite, ela havia comprado com o dinheiro que havia recebido do governo francês uma barra de chocolate, alguns biscoitos doces e refrigerante. Shang fazia as refeições diárias na casa do pastor da igreja que a acolhera e de sua família.
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A sua cama repousava bem no canto do quarto. No outro canto, via-se uma estante repleta de livros cristãos infantis e outras duas camas desmontadas – que eram usadas pela igreja para alojar mais pessoas em situação de emergência. No teto, uma enorme janela, de onde se via o céu de um azul-marinho profundo que pulsava em estrelas.
“Sempre que olho para o céu me dá tristeza, porque eu não sei onde o meu marido está. Vocês podem pedir para Deus trazer o meu marido de volta? Eu quero o meu marido de volta”, disse Shang, fechando os olhos. Com uma voz firme e profundamente cansada orou: “Deus, traz o Hamm de volta para mim”. Hamm é o apelido de Hemu Ismael Mohammed, 32 anos, marido de Shang.
Já se passara quase dois anos que Shang não via Mohammed e quase quatro meses que ela não tinha nenhuma notícia dele. Os dois fugiram do Curdistão no dia 29 de janeiro de 2016, depois de terem sido ameaçados de morte por terem ajudado refugiados cristãos recém-fugidos da perseguição do grupo autodenominado Estado Islâmico (chamado de Daesh no mundo árabe) em Mossul (Iraque). “Fizemos um grupo de 10 famílias para recolher alimento e roupa”, contou Shang. A perseguição a cristãos por parte do Daesh em Mossul durou entre 2014 e 2016, reduzindo a antiga comunidade cristã a 200 mil pessoas – há dez anos atrás era de 2 milhões.
Um dia, Mohammed e Shang começaram a receber ameaças via SMS. A decisão de deixar o país veio quando um grupo os parou na rua à noite e bateu na cabeça de Mohammed com um pedaço de pau e quebrou o nariz da Shang com um soco.
A chegada à Europa
Semanas depois, eles pegaram um voo de Erbil até Istambul, na Turquia, pelo preço de cerca de US$ 700 mais os gastos com os vistos. Lá, ficaram dez dias num pequeno hotel até conhecerem um homem “da máfia”, no centro de Istambul. “Ele disse que nos levaria até a Grécia de barco”. “É muito fácil encontrar esse tipo de gente, na Turquia eles estão por toda a parte. Eles se sentam nas praças com uma arma na mão e com a outra te vendem uma viagem de barco até a Grécia ou até a Itália”.
Por cerca de US$ 5.ooo, o casal curdo comprou duas passagem para a Grécia, uma viagem que demoraria três horas em um bote de 7 metros de comprimento superlotado com 35 pessoas dentro. “Era cerca de meia noite e fazia muito frio, me lembro da gente chegar numa praia, depois de uma longa viagem de ônibus, e ver muitas pessoas. Tinha mulheres, homens, mães com bebês – inclusive recém-nascidos de um mês de vida”, conta ela. “Tinha também deficientes em cadeira de roda, tinha crianças com Síndrome de Down…”. Na hora do embarque, separaram homens de mulheres. Mas depois que os homens embarcaram, a polícia chegou. O motorista do barco deu, então a partida, e foi embora. Pela lei turca, os barcos são vistos como imigração ilegal e se o motorista é pego, ele é condenado à prisão perpétua.
Após Shang ser pega pela polícia, junto com as outras mulheres, ela ficou três dias presas. Da prisão, ela ligou para uma amiga, que vivia em Istambul, pedindo ajuda. “Morei com ela um ano, lavei roupa, louça, fiz compras para a família”, afirmou Shang, que esperava seu marido Mohammed obter seus papéis de refugiado na Europa.
Na Grécia, o barco de Mohammed chegava na costa da ilha de Lesbos. “Antes de chegar na costa, avistei umas pessoas com binóculos na praia, era um pessoal da Cruz Vermelha que faziam buscas de barcos como os nossos”, conta. “Eu cheguei contando do meu caso, que eu precisava recuperar a minha esposa na Turquia. ‘Nós não temos o que fazer, senhor. A Turquia não é território europeu'”, afirmou a ele um agente da OIM (Organização Internacional para as Migrações). “Mas assim que ela chegar em qualquer país na zona europeia, ela será imediatamente encaminhada até onde o senhor estiver”, acrescentou. “É essa lei de não separação de família, sabe?”, acrescentou Mohammed à reportagem.
O marido de Shang ficou na ilha grega por cinco meses, com auxílio-moradia e comida da Cruz Vermelha aguardando qualquer país europeu aceitá-lo. “Eles me deram um documento que dizia que eu concordava em ficar em qual país me aceitasse”, afirmou. “Eu assinei, pensava em ir para a Inglaterra, Alemanha”. Cinco meses depois, Mohammed recebeu a informação de que o governo francês o aceitara.
Mohammed chegou em Lille, no norte da França, no dia seguinte. Depois foi encaminhado para um pequeno alojamento numa cidade nos arredores. “Fiquei lá esperando por mais oito meses”, afirmou. “Me lembro que a funcionária do alojamento era muito racista, ela não gostava de nós. Era muito frio dentro do alojamento, quando reclamávamos ela dizia que ou era isso ou era a rua”.
Enquanto isso, ele e Shang se comunicavam via Facebook, Whatsapp – e Mohammed enviava à sua esposa todos os seus documentos para que os dois tivessem tudo.
Após receber seu status de refugiado, Mohammed foi informado que não havia mais lugar para ficar no alojamento, ele teria que ir embora. “Para onde? Eu não tinha ideia. Não conhecia ninguém, nunca havia pisado na França antes”, afirmou.
“Decidi pedir ajuda da Cruz Vermelha. Enviei uma mensagem privada a eles por Facebook. Depois de três dias, uma mulher, Sarah, me respondeu dizendo que poderia me ajudar. Ela trabalhava no campo de Calais”.
Mohammed foi então de ônibus até Calais. “Muito sujo lá [em Calais]. Nunca vi um lugar tão terrível”, afirmou ele, com os olhos um pouco distantes, mas logo retoma a história e se antecipa à pergunta da reportagem. “Bom, daí a Sarah disse que tinha alguém que estava disposto a me ajudar, a me dar abrigo: um pastor cristão chamado Françoise* que morava numa cidade chamada Estrasburgo”.
Na mesma tarde, no ônibus das 23h, o marido de Shang estava embarcando para Estrasburgo. “O que o Pastor Françoise* fez por mim eu nunca vou poder agradecer. Ele me ajudou no momento mais difícil da minha vida”, afirma Mohammed com os olhos cheio de lágrimas. “Sabe, não é todo mundo que faz isso por um desconhecido. Ele é um homem especial. Eu não o chamo de pastor, para mim, ele é um membro da minha família”, acrescenta. “Você sabe como eu chamo o pastor? De tio. Para mim, ele é como se fosse o meu tio”” explicou Mohammed, depois de frisar a importância da família na sociedade curda.
A ausência de notícias
Hamm ficou alojado por algumas semanas no mesmo quarto que Shang ficaria também alojada pelo pastor, só que meses depois – e foi lá que a reportagem a conheceu pela primeira vez. Era o “quarto de emergência” da igreja. Mas, assim que Hamm conseguiu um apartamento para alugar – uma kitnet de sala, cozinha e quarto, só para ele – e quando Shang poderia, então vir, Shang parou de responder às mensagens. “Fiquei três meses sem notícias dela. Comecei a me desesperar”.
Shang estava incomunicável porque ela tinha achado um jeito de viajar até a França. Ela ouviu de um homem que ele levava pessoas de avião até a Europa, mas que o pagamento teria que ser em ouro. Ela, então, pegou o ouro que havia guardado do seu casamento e deu todo para o homem. “Ele então me levou para uma casa com umas 15 mulheres, onde eu vivi por três meses. No quarto, éramos em sete. Nós não podíamos sair. Eles pegaram nossos celulares, nossos documentos, passaporte, tudo”, conta Shang. “Foi horrível aquele tempo, não gosto de lembrar”. A comida era trazida pelo homem e também roupas lavadas. “Um dia dois homens invadiram a casa, não sei pra quê…”, disse reticente. “Bom…queriam dormir com a gente talvez”, disse ela com uma voz amarga.
“Eles nos bateram, e eu levei uma facada”, diz mostrando seu braço direito com uma cicatriz de uns três centímetros de largura. “Eu não gosto de lembrar”, disse ela finalizando o assunto após dizer que tudo ficou bem no final, após uma das mulheres terem contatado o homem responsável por elas por um telefone que servia para emergências desse tipo.
Shang então, depois de meses de espera, é chamada. “‘Hoje você vai para a França’. Ele me levou de carro junto com outras mulheres até o aeroporto de Istambul. Embarcamos num avião e ele me disse: ‘Você não abre a boca'”. “Me lembro que estava muito cansada e adormeci, quando acordei, ele não estava mais lá. Ele tinha desaparecido”.
“Comecei a chorar, desesperada, achando que tinha sido enganada, que eu tinha voltado para a Turquia e agora estava sem dinheiro, sem nada”, conta Shang. “Olhei pela janela e vi um avião da Turkish Airlines. Ai então que entrei em desespero. ‘Pronto, estou na Turquia mesmo’, disse a mim mesma”.
“Uma mulher me interpelou perguntando se estava tudo bem e eu perguntei a ela onde estávamos. ‘Acabamos de aterrissar em Paris'”.
Tão perto, tão longe
Quando Shang aterrissou em Paris, Mohammed, sem notícias, decidiu que iria atrás de sua esposa. Ele fechou o apartamento e pegou um ônibus até a Grécia. Quando chegou lá, depois de dois dias de viagem, foi na polícia perguntar se Shang Shadar tinha dado entrada como requerente de asilo. Eles disseram que não e, pior, não acreditaram na história de Mohammed e acharam que seus documentos eram falsos. Resultado: Mohammed foi preso. Ele ficou um mês na prisão na Grécia.
Shang, no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, passa pela imigração em um completo estado de nervosismo. Por estar sem nenhum documento, foi presa. “Eles perguntaram meu nome e eu menti, falei o primeiro nome curdo que me veio na mente. Eu não poderia deixar que eles me mandassem de volta para a Turquia”, afirmou.
Shang ficou presa por um mês no chamado Z.A.P.I, uma prisão do governo francês para migrantes sem documentos próxima do aeroporto Charles de Gaulle. “Contei a história do meu marido para o meu tradutor da Cruz Vermelha na prisão. Ele me ajudou muito. Nunca vou me esquecer dele”, afirma Shang, que pediu ajuda para saber onde Mohammed estava.
“Após algumas semanas, ele me disse que constava uma atualização nos dados do meu marido. Tinha um endereço de um tal pastor Françoise*, residente de Estrasburgo”.
Depois disso, Shang foi para julgamento três vezes. “Da terceira vez, a juíza era meio louca”, relembra ela rindo. “Ela entrou com aquele cigarro eletrônico e na sua mesa tinha umas barras de chocolate. Quando a vi eu pensei: ‘Pronto, essa mulher é louca, agora é que eu não saio daqui nunca'”.
A juíza então a interpelou. “Você diz que quando sair daqui vai atrás do seu marido. Como? A França não é um país de uma ou duas ruas, você sabia? Olha, se eu te deixar sair, para onde você vai?”
Imediatamente veio à memória de Shang o nome e o endereço do tal pastor, que ela viu nos registros do seu marido. “Eu vou para a casa desse pastor”, disse ela, contando da atualização dos dados na ficha de seu marido.
A juíza olhou receosa para a Shang e afirmou: “Eu vou então fazer a minha ação humanitária do dia e vou te deixar sair”.
Naquele exato momento, a promotora, ao lado de Shang no tribunal, começou a gritar que tudo aquilo era falso, que as suas fotos eram falsas e que não tinha marido nenhum. “Bom, eu comecei a chorar, nervosa, e perguntar para essa mulher que me acusava porque ela estava fazendo isso, porque ela dizia isso”. Shang então virou para a juíza e disse: “Eu tenho o direito de ficar com o meu marido! Ela então bateu o martelo e falou: ‘STOP!’”
Às 23h55, Shang embarcava no trem Paris-Strasbourg. O tal pastor, que havia sido contatado pela justiça francesa, a esperava, ele e a sua esposa, na estação central às 5h35 da manhã. “Eu nunca vou esquecer do pastor Françoise e de sua esposa dentro do carro me esperando. Eu nunca vou esquecer”.
O reencontro
Quatro dias depois de sua chegada à Estrasburgo, a reportagem conheceu Shang.
Ela estava esperando por seu marido Mohammed no mesmo quarto em que ele mesmo ficara antes, alojado pelo mesmo pastor, só que alguns meses antes. Mas agora, Mohammed estava muito longe de Estrasburgo, ele estava na Grécia, e tinha acabado de ser solto pela polícia que o prendera achando que seus documentos de asilo eram falsos.
“Eles checaram meus documentos e viram que estava tudo dentro da lei”. Ainda sem notícias de Shang, Mohammed decidiu partir para a Itália. “Pensava que Shang estaria lá”. Cruzou fronteiras a pé, depois de uma semana caminhando entre a Grécia e a Itália. Quando Mohammed chega à Bari (sul da Itália), ele começa a perguntar de Shang às organizações locais. Quando o seu celular toca, é o seu irmão: “Hamm, Shang está em Estrasburgo! Onde você está?”
“O que? Shang em Estrasburgo?”, gritou ao telefone. Mohammed já estava muito magro, com uma barba há um mês por fazer, há uma semana sem tomar banho e um dia sem comer. “Eu não sabia o que pensar, estava tão cansado de tudo aquilo, quando eu escutei que a minha esposa estava na minha casa, tudo explodiu dentro de mim; emoção, cansaço, alegria”, afirma.
Shang estava almoçando na casa do pastor Francçoise* quando o seu celular recebeu uma mensagem do seu cunhado. “Conseguimos contato com Hamm, ele está voltando!”. “Quando eu vi aquilo meu coração explodiu no meu peito”, conta Shang. “Eu fiquei que nem louca tentando ligar para o irmão dele, saber o que era aquela mensagem, se era verdade, mas ele não ficou mais online”. Depois de conseguir ligar, Shang soube da história toda e que seu marido estava, enfim, voltando.
Um ano e sete meses depois da separação na Turquia, eles se veriam de novo, marido e mulher. O MigraMundo presenciou o reencontro deles junto com o pastor. A reportagem aguardava na sala de estar de Françoise* quando Shang subiu abraçada com um homem franzino, com uma barba cobrindo o queixo e o rosto inteiros, vestindo uma roupa surrada e com os olhos fundos repletos de cansaço, alegria e gratidão.
“Prazer, Mohammed”, disse ele, estendendo as mãos à reportagem. Shang deu uma risada longa e disse: “Você ainda quer conversar? Podemos sim, mas depois! Depois! Agora quero ficar com o meu marido”, disse abraçando Hamm. “Françoise*, muito obrigada, o que o senhor fez não tem preço”, disse Mohammed ao pastor dando um largo sorriso que foi seguido de lágrimas escorrendo no rosto. “Que Deus os abençoe, Hamm! É uma alegria ver vocês juntos. Agora tudo isso terminou”, disse o pastor.
O pastor fechou, então, a porta depois de abraços, lágrimas e oração. Ele olhou para a reportagem e disse: “É incrível o que Deus faz, não é?”.
Em meados de fevereiro o MigraMundo foi à casa de Shang e Mohammed para uma entrevista e um jantar, feito por Shang, “tipicamente curdo”. Shang descascava cenoura, pepino e comia limão com sal enquanto contava a sua bela história. Hoje, Shang espera um menino – ela está grávida de cinco meses. O nome não decidiram ainda, mas querem que seja compreensível em francês e em curdo.
O MigraMundo pergunta se eles contariam a história deles para o seu filho. “Claro!”, disseram os dois juntos. “É o que somos, a nossa história de como chegamos aqui faz parte do que somos. E o nosso filho vai saber quem somos e pelo que passamos”, afirmou Shang, em sua casa, com seu marido, a descascar cenouras e a comer limão com sal. “Eu falo para a Shang que não é normal ela comer essa quantidade de limão que ela come”, diz Hamm rindo e levando Shang também ao riso. Era um riso fácil, solto, como se eles nunca tivessem atravessado mais de três países, um oceano e vencido prisões e julgamentos para estarem ali a descascar cenoura e a discutir sobre limões.
*Françoise é um pseudônimo. O nome real do pastor foi omitido, a pedido dele próprio
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