Por Raíssa Maria Londero
Em tempos onde nos encontramos todos – migrantes, membros da sociedade civil brasileira, representantes de organismos internacionais e do poder público, pesquisadores e demais interessado no tema das migrações refúgio e apatridia discutindo e problematizando de ponta a ponta do Brasil as propostas para o encaminhamento de políticas migratórias nacionais no âmbito da 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar)[1], este artigo serve de relato e manifesto de indignação acerca de um ato de xenofobia materializado no último dia 21 de março de 2024, durante um evento cultural ancestral da comunidade boliviana residente em São Paulo conhecido por Awti Pacha, no Café Colombiano.
O Awti pacha é um rito ancestral celebrado principalmente pelos povos indígenas originários da Bolívia conhecido por Aymaras e Quíchuas[2] e celebra a transição entre as chuvas para o vento e a entrada da seca no altiplano e nos vales centrais dos Andes. Como muitas das manifestações culturais bolivianas, alguns rituais se apoiam em uma visão cosmológica andina de que o mundo é concebido em três níveis, sendo que a Pachamama é aquela que provê os recursos necessários à reprodução da vida, exerce um papel mediador entre o mundo de cima (Alaxpacha) e o mundo de baixo (Manqhapacha) (SILVA, 1997).
Durante a celebração com danças e músicas autóctonas andinas, pessoas não identificadas arremessaram de prédios ovos contra os imigrantes que se quebraram sobre os pés dos artistas bolivianos, em uma tradução clara de hostilidade e ódio cumulada com covardia. Atos de xenofobia são manifestações de contraposição de um grupo considerado superior contra outro considerado inferior, ou bárbaro. Isto é, uma aversão ao “estrangeiro”, ao “estranho”, e sua manifestação passou a ser uma das principais fontes de racismo. Levi-Strauss, em 1970, sobre a tensão entre os nacionais e aquele que vem de fora e o modus operandi da xenofobia observou que“…chegam muitas vezes a privar o estrangeiro deste último degrau de humanidade, convertendo-o num fantasma, ou numa aparição…”.
No entanto, os insultos de xenofobia não são novidades no Brasil, basta voltarmos séculos de história das normas e das políticas migratórias para compreendermos os fundamentos (violentos!) com que foram formuladas as políticas aos imigrantes no país. As migrações internacionais para o Brasil desde o século XVIII até o século XX foram muito motivadas pelas conjunturas internacionais, como conflitos internacionais, regionais e locais, crise econômica de 1930, guerras mundiais e, principalmente, pela influência dos meios de produção internacional, que se colocavam como uma espécie de combustível na movimentação e na circulação de pessoas pelo mundo, agindo de uma forma violenta através de seus instrumentos hegemônicos de dominação. Também, a dicotomia entre amizade e inimizade influenciou as bases teóricas jurídicas e políticas de construção de duas categorias de inimigo para o Estado brasileiro durante o período da ditadura militar: a primeira delas foi o imigrante como inimigo externo e, a segunda, o opositor político como inimigo interno.
Mesmo após a nova ordem democrática de 1988, segundo a qual todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade – o Brasil continuou, em certa medida, seguindo este viés da inimizade, tanto no Estatuto do Estrangeiro de 1980 e que vigorou até 2017, quanto na Lei de Segurança Nacional, tratando os imigrantes como “caso de polícia” e negando-lhes o direito de manifestação política e sindical.
Assim, em que pese a urgência da abertura e fomento à discussão de tantas pautas que interferem diretamente na inserção social dos imigrantes e na proteção aos seus direitos, avaliamos importante também resgatarmos a influência histórica da dicotomia entre amizade e inimizade na análise de formulação das políticas migratórias nacionais, pois nos parece importante não apenas para compreendermos que a migração internacional para o Brasil esteve por séculos inserida em um contexto de violência (visão da inimizade), mas também para considerar ter sido esta a ideologia fundante para desenvolver na população nacional sentimentos antagônicos que perduram até os dias de hoje e variam, no geral, entre o acolhimento, a hospitalidade, a inclusão, a hostilidade, a rejeição e a exclusão.
É hora de se repensar toda uma cultura de violência contra este populacional, mas, também, de se traçar políticas efetivas em que a cultura do outro e sua liberdade de expressão posam ser expressas sem risco, como garante nossa constituição e normas de direito internacional. Também, é necessário que nesta construção se pense em políticas voltadas a integração entre os povos, sendo que conforme já se tem expressado em diferentes locais e momentos, os imigrantes clamam por uma política onde os nacionais do Brasil incorporem um conhecimento mínimo sobre os direitos dos imigrantes, para que superem uma cultura arcaica, violenta e discriminatória. Assim, registra-se a fala de um imigrante que reside há mais de 10 anos no Brasil e já havia participado da primeira Comigrar: “tudo isto que estamos falando hoje, sobre estas necessidades de igualdade de tratamento entre nacionais e imigrantes, já havíamos abordado há 10 anos atrás na 1ª Comigrar e o problema continua”.
Desde a década de 1940 o Brasil tem acolhido imigrantes bolivianos, quando vinham para estudar, trabalhar ou até mesmo buscando uma alternativa às instabilidades políticas que emergiam naquela época no país andino. A migração desta comunidade foi se intensificar a partir dos anos 1980, quando se instalou no país uma crise econômica e social. Desde então, muitos destes imigrantes ingressaram no setor têxtil, sendo este o setor que mais emprega bolivianos no Brasil. Se observarmos os dados estatísticos, os bolivianos se inserem em uma das maiores comunidades de latinos no Brasil. Somente no estado de São Paulo eles totalizam mais de 75 mil. É imperioso que se respeite os diferentes cultos e manifestações etnoculturais das comunidades migrantes, bem como a sua existência.
Por isto, espera-se que a nova política migratória nacional que já se manifesta nas etapas preparatórias da 2ª Comigrar percorrendo todo o território nacional[3] e apresentando avanços significativos, extraordinários, uma vez que está pautada por uma principiologia inclusiva e protetiva dos direitos humanos – mantenha na execução de suas ações o mesmo comprometimento, por ser um tema de alta relevância no cenário nacional e com impactos importantes para a construção e o desenvolvimento humano das sociedades.
Sobre a autora
Raíssa Maria Londero é Doutora e Mestra em ciências para a integração da América Latina pelo PROLAM/USP. É pesquisadora, advogada, e possui mais de dez anos de experiência de atuação nas áreas de direito migratório, direitos sociais, direitos da infância e América Latina. É parecerista de revistas científica e participou de diversas comissões públicas municipais em defesa dos direitos dos imigrantes, refugiados e sua família com foco para discussão e implementação da legislação municipal de São Paulo e legislação nacional (2014-2017).
Notas
[1] A 2ª COMIGRAR é uma iniciativa de mobilização nacional dos diversos atores sociais, políticos e institucionais interessados no tema das migrações, refúgio e apatridia, com objetivos de: I – aprofundar o debate sobre migrações, refúgio e apatridia; II – propor e discutir diretrizes e recomendações para políticas públicas para pessoas migrantes, refugiadas e apátridas; III – promover a participação social e política de pessoas migrantes, refugiadas e apátridas; IV – fomentar a integração entre os entes federativos, organizações da sociedade civil e associações e coletivos de pessoas migrantes, refugiadas e apátridas que atuam no tema. (Portaria SENAJUS/MJSP nº 81, de 20 de setembro de 2023).
[2] A população boliviana é multiétnica e possui 12 milhões de habitantes, sendo que dos 38 povos indígenas originários, os dois maiores em número de habitantes são os quíchuas (38%) e os aymaras (25%).
[3] Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública Nacional, dados atualizados até o dia 22 de março de 2024, foram inscritas 73 conferências livres locais, 22 conferências livres estaduais e 38 conferências livres nacionais.
Parabéns pela atividade e força por todos imigrantes