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quinta-feira, março 28, 2024

CEM inicia mesas-redondas sobre migrações e refúgio no Brasil

Por Paulo Hebmüller

A primeira edição das mesas-redondas promovidas pelo Centro de Estudos Migratórios (CEM), na sede da Missão Paz, em São Paulo, teve quase três horas de duração, refletindo a riqueza das exposições das palestrantes e da participação do público. Realizado na quarta-feira (13), o encontro abordou o tema Migração e refúgio: qual o lugar do Brasil? As palestrantes foram a advogada Larissa Leite, coordenadora de proteção do Centro de Referência para Refugiados da Caritas Arquidiocesana de São Paulo, e Julia Bertino Moreira, professora adjunta do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). A mediação coube ao sociólogo José Carlos Pereira, editor da revista Travessia, publicada pelo CEM.

Larissa Leite iniciou sua fala lembrando que há muitas possibilidades de abordar o assunto, que vem se tornando mais sensível aos brasileiros num momento em que também ocupa o debate no mundo – “ou pelo menos ao mundo eurocentrista”, ressalvou. “Todos nos já fizemos a reflexão sobre a migração e o refúgio serem tratados pela grande imprensa internacional como a crise da migração europeia. Mas por que se torna europeia? De novo aparece a questão do lugar de quem fala e de quem tem poder para dizer qual é o problema.”

Se há quatro ou cinco anos havia dificuldade para “emplacar” reportagens sobre refúgio na imprensa brasileira, hoje a realidade é oposta. “Na Caritas falamos até para os jornalistas pararem de nos pedir ‘personagens’ para as matérias”, relata. Há muitas visões equivocadas que geram exemplos como uma reportagem que a Folha de S. Paulo publicou no ano passado, intitulada “Invasão estrangeira”. O texto aponta uma suposta “cooptação” de imigrantes e refugiados para movimentos de moradia em São Paulo.

Um título como esse demonstra que a sensibilidade pública em relação ao tema é muito diferente da realidade, considera Larissa. Mesmo não sendo exatamente confiáveis – diferentes fontes oficiais apresentam números bastante díspares –, os dados disponíveis expressam essa dicotomia. O número de brasileiros residentes no exterior varia (dependendo da fonte) de 1 milhão a 3,5 milhões. De acordo com a Polícia Federal (PF), em março de 2015 havia 1,8 milhão de estrangeiros no Brasil, 1,1 milhão deles já permanentes. A PF também contabilizava 4.824 refugiados vivendo no Brasil. Já de acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), esse número era de 8.400 (em agosto de 2015).

Mesmo com essas discrepâncias, os dados mostram que há mais brasileiros fora do país do que estrangeiros em nosso território, e que o total de refugiados acolhidos por aqui é ínfimo em relação à população brasileira e aos 59,5 milhões de deslocados forçados existentes no mundo.

Imagem e realidade

A partir dessas informações, Larissa Leite discutiu algumas das visões difundidas a respeito de migração e refúgio no Brasil sob cinco pontos de vista: o da história, segundo o qual somos um país de imigrantes, “aberto e hospitaleiro”; o da legislação, em que o Brasil seria referência e liderança regional em termos de avanços; o da prática, que exalta a capacidade do país de “adaptação a novos modelos”; o da política, em que um dos pontos fortes seria uma “coragem humanista”; e o da cultura social, enfatizando “engajamento e abertura à diferença”.

Para a advogada, cada um desses itens comporta diferenças importantes entre os enunciados do discurso ou do imaginário e a prática concreta. Em relação à história, por exemplo, omite-se o massacre dos povos indígenas e a migração forçada dos africanos escravizados. O Brasil também demonstrou em vários momentos uma seletividade e um tratamento diferenciado aos imigrantes em função da cor da pele, e vem oferecendo “pacotes” complementares de proteção à la carte, dependendo da origem das pessoas que chegam ao país.

“Estabelecemos um sistema para os haitianos (que recebem um visto humanitário), mas não nos comprometemos a fazer isso com os angolanos, com os ganeses ou com tantos outros fluxos que vêm ocorrendo na realidade da migração”, enfatiza. Para Larissa, também é preciso lembrar que tem ocorrido por aqui a exploração do imigrante tanto no âmbito do trabalho quanto no da imagem, contribuindo para uma folclorização desses contingentes.

A advogada concluiu sua apresentação com a fotografia de uma criança percorrendo uma trilha em campo aberto. “Em que lugar estamos? É como essa criança esperançosa, com um caminho muito longo, com bastante espaço. O Brasil tem uma oportunidade de fazer coisas belíssimas no âmbito da imigração e do refúgio porque temos vantagens culturais em relação a países que precisam quebrar outras barreiras para receber imigrantes”, diz.

Complexidade

A professora Julia Bertino também citou a dificuldade para obtenção de dados confiáveis sobre a situação dos refugiados no Brasil. Ela só conseguiu que o Conare lhe enviasse os números de pedidos de refúgio utilizando a Lei de Acesso à Informação. De acordo com o comitê, esses pedidos vêm crescendo ano a ano: 322 em 2009; 631 em 2010; 1.131 em 2011; 2.064 em 2012; 6.016 em 2013; e 11.967 em 2014.

A docente da UFABC apontou a multiplicidade de atores e dimensões envolvidas no tratamento de imigrantes e refugiados no Brasil para chamar a atenção sobre a complexidade do cenário. Esses atores vão desde as muitas instâncias estatais, não só do Executivo nas suas esferas municipal, estadual e federal, mas também do Judiciário e do Legislativo, até as entidades da sociedade civil e a academia.

Mesmo no nível estatal, há diferentes abordagens e práticas. Para permanecer no Brasil, um haitiano, por exemplo, aciona o Conare, que é vinculado ao Ministério da Justiça, mas sua solicitação é redirecionada ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg), por sua vez vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego. “Portanto, é uma situação encarada como migração voluntária relacionada a questões econômicas”, diz.

A legislação nacional define que o refúgio pode ser concedido em caso de violação grave e generalizada de direitos humanos. No entanto, a interpretação legislativa não considera que os haitianos estariam sofrendo esse tipo de violação por fatores socioeconômicos e questões políticas associadas às questões ambientais do terremoto de 2010. A complexidade dessas relações fica evidente porque entram em cena outras questões da política do Estado brasileiro.

“No meu modo de entender, a política externa é fundamental para compreender esse quadro. Nós liderávamos uma missão da ONU, a Minustah, no Haiti. Como iríamos reconhecer refugiados fugindo do Haiti enquanto o governo brasileiro envia tropas para garantir a estabilização, a paz e a segurança daquele país?”, pergunta Julia Bertino. A política externa é tão importante, continua, que a vice-presidência do Conare é ocupada por um representante do Ministério das Relações Exteriores.

Para a professora, há duas questões que não podem ser dissociadas quando se pensa em ações com respeito aos refugiados: uma política de recepção no sentido de admissão e uma política de integração, ou acolhimento. “Não dá para projetar a imagem de um país generoso, humanitário, cooperativo e defensor de direitos humanos, mas internamente sem esse processo de integração dos estrangeiros ingressando no nosso país”, afirma.

Por mais que se defenda a ideia de uma cidadania global, ainda é preciso considerar a existência dos Estados nacionais com fronteiras definidas. “Temos livre circulação de bens e de capitais, mas não a livre circulação de pessoas no mundo globalizado. Ainda estamos trabalhando no eixo da soberania nacional, e isso tem que ficar muito claro para que se compreendam os fluxos migratórios no Mediterrâneo”, lembra.

Quem tem assumindo preponderantemente os papéis de recepção e integração no Brasil são os atores da sociedade civil, considera Julia. A academia, por exemplo, vem contribuindo na formação e na pesquisa, embora ainda haja muito caminho a percorrer no acesso aos dados e na discussão sobre a forma como eles são produzidos. As universidades também podem avançar bastante nos serviços de extensão, propiciando assistência jurídica, psicológica, social etc. a partir dos seus cursos.

“A integração local deve ser vista como uma política em desdobramento de uma política em relação aos refugiados no Brasil, não apenas na conexão com as questões externas, mas em termos domésticos, tentando integrar os diversos atores”, diz. “E sobretudo é necessário um diálogo mais próximo com os imigrantes e refugiados. Isso é fundamental principalmente em relação ao governo e ao Conare. Falta esse diálogo com quem de fato vivencia as experiências do processo migratório.”

Diálogos continuam

Após a fala das palestrantes, houve um debate com intensa participação da plateia, na qual era grande a presença de pesquisadores ligados ao tema e de pessoas que trabalham com migrantes e refugiados em entidades estatais, privadas ou religiosas. Vários estados brasileiros e outros países estavam representados no grupo.

Entre os muitos temas relevantes abordados pelos participantes estavam o papel que as questões culturais podem ter para além da folclorização da realidade de imigrantes e refugiados; os problemas na tramitação da nova lei de migração no Congresso; racismo e seletividade no acolhimento de imigrantes; a necessidade de capacitação dos agentes públicos que lidam com imigrantes e refugiados desde as fronteiras do país até o encaminhamento dos mais diferentes processos burocráticos; a busca para incluir os aspectos globais das relações de capital e trabalho na análise das realidades locais; e a urgência em unificar esforços dos diferentes setores e organizações para evitar o retrabalho tanto na frente de auxílio direto quanto na incidência política.

As próximas edições dos diálogos já estão agendadas. No dia 13 de maio, o padre Gelmino Costa vai falar sobre a memória da imigração haitiana em Manaus entre 2010 e 2014. No dia 10 de junho, a irmã Inês Facioli abordará o caso dos migrantes temporários internos – trabalhadores em diversos setores do agronegócio, por exemplo – e suas interfaces com as migrações contemporâneas.

Os encontros começam às 14h, na Missão Paz (Rua do Glicério, 225, São Paulo). Mais informações podem ser obtidas no site www.missaonspaz.org e pelo e-mail [email protected].

 

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