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quarta-feira, outubro 30, 2024

Com autonomia e sem tutela: o desafio de garantir o direito à saúde para as populações migrantes

As populações migrantes também têm direito a exercer o controle social do SUS e a participar da feitura das políticas que irão impactar seu acesso à saúde. No entanto, são inúmeras as desigualdades enfrentadas por essas populações no acesso ao sistema

Por Alexandre Branco Pereira*

A problematização da imagem do Brasil enquanto um país pacífico, inclusivo e democrático é assunto frequentemente revisitado nos debates sobre a constituição do país. Não são poucos os estudos que demonstraram que foi precisamente por meio do discurso do apreço à diversidade e à multirracialidade presente na formação nacional brasileira, plasmado à ideia de que as diferenças existem, mas que ignorá-las era necessário para evitar rupturas à nação, que o Brasil historicamente escamoteou a constituição racista e excludente de sua sociedade.

Assim, concorrendo com a narrativa de que há no país uma democracia – racial, cultural, econômica, ou de qualquer outra sorte -, há também a ideia de que mapear, nomear e apontar as diferenças e as desigualdades serve simultaneamente ao propósito de discriminar determinados grupos historicamente marginalizados – por exemplo, mapear e identificar a existência do racismo seria sua própria causa, e não sua consequência, já que seria a identificação do fenômeno a responsável por sua existência – e de dividir o país.

Este é um mecanismo frequentemente atualizado, e que encontra novas formas de apresentação. Estudos mais recentes, por exemplo, argumentam que o questionamento por parte dos migrantes da forma como o auxílio prestado a elas se dá é motivo para rupturas entre os serviços que os ofertam e aqueles que os buscam. A prestação de serviços é, assim, considerada como dádiva, e a recusa em recebê-los quieta e silenciosamente é considerado um exercício de ingratidão raramente tolerado.

O falso dilema aqui colocado é entre a oferta de serviços a título de caridade, como regularização migratória, acesso à saúde, à educação, à moradia digna e ao trabalho decente, e a garantia de direitos por meio de escuta das comunidades e de seu engajamento político desprovido de tutela. Não existe zona cinzenta no que tange a isso: embora as organizações, sejam elas ligadas ao Estado ou não, que ofertam tais serviços assim o considerem, essas ações não se articulam enquanto dádiva de uma população caridosa, mas enquanto efetivação de um direito, e a escuta das demandas das populações migrantes não possui caráter facultativo.

Garantia do direito à saúde

Assim, é importante ressaltar que as iniciativas que propõem a articulação em rede como instrumento de garantia de direitos são cada vez mais importantes e necessárias. Quando nos voltamos especificamente para o direito à saúde, algo consideravelmente mais amplo e mais complexo do que falar de direito de acesso ao sistema de saúde, é importante pontuar o papel fundamental exercido pela participação popular e pelo controle social na construção do Sistema Único de Saúde. Ela é responsável, entre outras coisas, pela universalização do sistema – antes restrito a trabalhadores com carteira assinada e de assistência exclusivamente hospitalar -, por garantir que a assistência prestada pelo SUS não se resumiria à ideia biomédica de saúde , por assegurar que as políticas de promoção de saúde seriam transversais e se conectariam com políticas de moradia, de trabalho, de assistência social e de igualdade racial e de gênero, e por outros inúmeros avanços importantes que tornam o SUS o maior e mais abrangente sistema de saúde no mundo, ainda que com inúmeras falhas a serem sanadas.

As populações migrantes também têm direito a exercer o controle social do SUS e a participar da feitura das políticas que irão impactar seu acesso à saúde. São inúmeras as desigualdades enfrentadas por essas populações no acesso a um sistema que se auto proclama universal, mas que falha em produzir equidade em um contexto de diversidade social, cultural, econômica, política e étnico-racial. A 1ª Plenária Nacional Saúde e Migração, realizada em 2021, foi o primeiro espaço de escuta e sistematização das demandas de saúde dessas populações na história do Brasil – enquanto o país já realizava Conferências Nacionais de Saúde desde o governo Getúlio Vargas. A 2ª Plenária, prevista para ocorrer neste ano, ocorrerá na forma de uma Conferência Nacional Livre de Saúde, que ocorrerá no dia 20/05, como forma de integrar o calendário da 17ª Conferência Nacional de Saúde.

Se a 1ª Plenária foi o primeiro evento a realizar a escuta sistemática e o registro das demandas das populações migrantes para garantir seu acesso à saúde no país, esta será a primeira vez que uma Conferência Nacional de Saúde precisará considerar as demandas colocadas pelas populações migrantes e seus aliados para formular políticas públicas de saúde. Esse é um passo fundamental para garantir que os migrantes efetivamente realizem o controle social das políticas de saúde e tenham direito a participar do desenho das ações que afetam sua vida. Criar e consolidar espaços para que isso aconteça é fundamental para que o exercício dos direitos pelas populações migrantes seja efetivo.

Sobre o autor

*Alexandre Branco-Pereira é coordenador da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes e do Observatório Saúde e Migração. É também doutorando em antropologia pela UFSCar e integrante do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia. É autor do livro “Viajantes do Tempo: Imigrantes-refugiadas, saúde mental, cultura e racismo na cidade de São Paulo” (Editora CRV, 2020).

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