Com Géssica Brandino e Lya Maeda
O fim de semana de 30 de maio a 1º de junho de 2014 foi histórico para o debate das migrações no Brasil. Nele aconteceu a primeira Comigrar (Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio), realizada em São Paulo, e que reuniu cerca de 800 pessoas – entre imigrantes, militantes, especialistas e autoridades envolvidas com o tema.
Organizada pelo Ministério da Justiça, a Comigrar foi carregada de expectativa por parte de seus participantes quanto aos resultados que poderia apresentar. Ela foi precedida por cerca de 200 conferências prévias no Brasil e no exterior, que reuniram em torno de 5.000 pessoas direta ou indiretamente, de acordo com a própria organização. Todas elas elaboraram centenas de propostas que foram debatidas e sintetizadas durante a conferência, e mais tarde reunidas em um caderno de propostas direcionado ao governo federal – clique aqui para acessar.
Mas passado mais de um ano depois, o que se pode avaliar da Comigrar e de todo o processo que ela desencadeou? Quais foram os avanços obtidos a partir da conferência e os legados que deixou? Haverá uma nova conferência no futuro? O evento em si foi subestimado ou superestimado? São perguntas para as quais é impossível dar uma resposta simples.
Dimensões surpreendentes
A Comigrar foi uma conferência consultiva, e não deliberativa, não sendo possível sair dela com respostas prontas sobre temas de primeira necessidade para a população migrante, como a revisão da legislação migratória e o direito ao voto do imigrante. Mesmo assim, o processo de mobilização gerado a partir das conferências prévias surpreendeu a organização do evento.
“Estávamos pouco ambiciosos em relação ao processo, ao volume da participação. E a diversidade foi surpreendente, assim como o engajamento”, afirmou João Guilherme Granja, diretor do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça (vinculada ao Ministério da Justiça), em entrevista ao MigraMundo ainda em abril de 2014, quase dois meses antes da conferência.
A primeira dessas etapas preparatórias foi a Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes, também ocorrida em São Paulo, ainda em novembro de 2013. Nela já era possível ter uma ideia do tamanho do desafio que seria exposto meses mais tarde, na etapa nacional, acrescido das demandas de outros Estados brasileiros e do exterior.
A Conferência e encaminhamentos
Além da expectativa sobre o evento, vale lembrar que a Comigrar coincidiu ainda com a polêmica gerada em torno do envio de imigrantes do Acre para São Paulo, acirrada pelo ambiente eleitoral que já ganhava corpo naquele momento.
Logo na abertura, a Comigrar foi palco da assinatura de um termo de compromisso entre o governo federal, a Prefeitura de São Paulo e o governo paulista com medidas para gerenciar a vinda de imigrantes do Acre e melhorar as condições dos já estabelecidos em São Paulo – ato que pode ser considerado um dos principais legados do evento.
Até dezembro de 2014 tinham sido inaugurados: o Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI), administrado pela Prefeitura de São Paulo em parceria com o Sefras (Serviço Franciscano de Solidariedade); a Casa de Passagem Terra Nova, sob responsabilidade do governo de São Paulo; e o Centro de Integração e Cidadania do Imigrante (mais conhecido como CIC do Imigrante), também no âmbito estadual.
O segundo dia foi marcado pelas oficinas que debateram e sintetizaram as propostas elaboradas ao longo das etapas prévias – e que foram depois para o caderno da conferência. Já o terceiro dia, além do encerramento, teve como principal ato a ampliação do CASC-Migrante (Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil sobre ações de Migração e Refúgio) da Secretaria Nacional de Justiça e a atribuição dele para acompanhar o processo pós-conferência. Mas apesar da ampliação, o conselho não foi chamado a se reunir desde o final da Comigrar.
Por se tratar de um tema complexo e com grande complexidade de atores envolvidos, a falta de tempo para se analisar as propostas foi um dos pontos criticados pelos participantes da Comigrar. Mesmo assim, a oportunidade de discutir a questão migratória com atores de todo o Brasil se sobrepunha às queixas.
“A Comigrar trouxe à tona o debate sobre o processo migratório e a possibilidade de garantir um espaço ao tema. Foi muito interessante poder reunir os imigrantes de rostos recentes”, pondera Sandra Bordignon, pesquisadora da UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul) e integrante da Comissão ProHaiti, programa de ingresso de haitianos nas graduações da instituição.
“Muito o que caminhar” e “é preciso retomar a agenda”
A Comigrar jogou luz tanto sobre as diferentes demandas e avanços relacionadas às migrações no Brasil como expôs os entraves, lacunas e necessidades a serem trabalhadas.
“Percebemos que os problemas com imigração eram ainda maiores do que se imaginava, vimos que havia muita discordância da teoria com prática. O maior ensinamento é que temos muito ainda o que caminhar”, opina Cássio Martin, integrante do Gaire (Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados no Rio Grande do Sul) e eleito membro do CASC.
Para a professora Carolina Abreu Claro, atualmente consultora do ICMPD (International Centre for Migration Policy Development) e que participou da organização da conferência, o ganho mais imediato da Comigrar foi consagrar a participação popular nas políticas públicas e contribuir para que todas as esferas do governo conheçam as reais necessidades e obstáculos enfrentados pela população migrante no Brasil.
“A Comigrar contribuiu para consolidar o papel da sociedade civil no processo consultivo da democracia participativa e abriu espaço para que os atores não governamentais pudessem se fortalecer enquanto provedores de atenção aos migrantes no país em todas as áreas de atuação e conhecimento. E, mais importante, foi um espaço em que os migrantes, independentemente do seu status migratório, pudessem ser ouvidos e colocassem suas reivindicações na pauta das políticas públicas”.
Embora tenha sido um grande marco por permitir um maior grau de participação da sociedade civil e dos migrantes, a Comigrar ainda deixa uma sensação de que algo mais poderia ter sido feito. “Há exatamente um ano, acreditava em mudanças. Houve sim, mas todo dia assistimos ainda a situações com os imigrantes que levam a repensar no que acreditei”, desabafa a advogada boliviana Ruth Camacho sobre o antes e o depois da Comigrar.
Para a peruana Tania Bernuy, diretora-executiva do CDHIC (Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante), é preciso que a Comigrar retome sua agenda. “O avanço que ela trouxe foi que ela existiu, e as suas demandas, a serem aprimoradas para uma próxima, bem como também a sua discussão para fazer pressão social, pela instituição da nova lei de migração, que é uma demanda muito urgente para a realidade migratória que o Brasil vive”.
A necessidade de usar as propostas da Comigrar para um plano formal de migrações e refúgio para o Brasil também é lembrada por Carolina. “Essa Política e esse Plano Nacional precisam ser elaborados de imediato pelo Poder Executivo para que sigam para tramitação no Legislativo, respeitando a perspectiva dos direitos humanos dos migrantes e de acordo com as reais necessidades e obstáculos enfrentados pelos migrantes no país”.
Atualmente tramita no Congresso o PLS 288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que visa a criação de uma Lei de Migrações no Brasil. Ele recebeu contribuições do Anteprojeto de Lei de Migrações – entregue em agosto de 2014 ao Ministério da Justiça – e foi recentemente aprovado pelo Senado. Agora, terá pela frente a Câmara dos Deputados, onde será novamente debatido e votado pelos parlamentares da Casa – um longo caminho ainda a ser percorrido.
Embora existam ressalvas ao projeto elaborado por Aloysio, muitas das entidades e pessoas envolvidas com a temática migratória enxergam nele a alternativa mais viável para substituir o quanto antes o Estatuto do Estrangeiro ainda em vigor.
Uma nova conferência? Quando?
Além dos debates sobre o que mudou ou não após a Comigrar, também fica no ar uma possível continuação da conferência. E enquanto a resposta oficial não chega, quem está envolvido diretamente na temática migratória dá sua opinião.
Para o jornalista e militante chileno Miguel Ahumada, que destaca a participação social e cidadã na Comigrar, uma nova edição é necessária. “É fundamental outra conferência para continuar discutindo o processo migratório”.
Já para Tania, do CDHIC, uma nova conferência não só é necessária como precisaria ir além do âmbito nacional. “Lidamos com o tema de maneira transnacional, e esse deveria ser o enfoque que uma nova Comigrar deveria permear; considerar os avanços a partir dos instrumentos e acordos internacionais de integração regional que o Brasil faz parte, promover a ampliação e instituição de estes acordos para facilitar o livre trânsito e residência e o aceso a cidadania das pessoas indiferente de sua nacionalidade e/ou se vem de outros continentes”.
Mesmo quem não vê necessidade em uma nova edição ainda este ano também cobra a abertura de novos canais entre sociedade e poder público. “Ainda temos muito que avançar, sem dúvida. Entretanto, seria essencial que o processo da Comigrar não acabasse em 2014 e que mais e mais espaços fossem abertos – não somente no Executivo, mas também no Legislativo – para buscar melhorias tanto nas políticas públicas quanto nas leis”, opina Martin, do Gaire.
Um maior envolvimento das autoridades – seja da esfera municipal, estadual ou federal – também é citado como ponto a ser revisto e melhorado para uma próxima edição da Comigrar. “Não entendo como falha, mas na próxima compreendo que deve existir mais divulgação e convocação do poder público. De nada adianta a sociedade civil discutir se o poder público não está implicado”, lembra Ana Risson, também docente da UFFS.
Até o fechamento desta reportagem, o Ministério da Justiça ainda não havia se manifestado sobre a Comigrar. A posição da pasta será divulgada caso e assim que ela se pronunciar.
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