Neste segundo artigo da série Deslocados e Descartáveis, Bruna Kadletz encontra redes de solidariedade e ações inclusivas que abraçam milhares de refugiados na ilha de Lesbos, na Grécia. Tais redes e ações nos ensinam que “o outro” não precisa ser recebido com hostilidade
Por Bruna Kadletz
De Lesbos, Grécia
Publicado originalmente em inglês, no site Refugees Deeply (acesse aqui)
Ao redor do mundo, da Europa as Américas, existe uma prevalente retórica que reduz refugiados ao status de “convidados indesejados”.
Muitos países e seus governos restringem pessoas que tiveram suas vidas despedaçadas por guerra e violência de seus direitos humanos básicos, caso não possuam documentos válidos. Esta retórica previne refugiados de obterem passagem segura e de terem liberdade de movimento assegurada. Ao invés de garantir a proteção de populações vulneráveis, a resposta global para pessoas forçadas a se deslocar tem na realidade amplificado vulnerabilidade e sofrimento.
Enquanto que restrições legais e políticas têm paralisado a vida de milhões de refugiados, diversas organizações e voluntários têm criado formas inclusivas de responder às necessidades dos refugiados: redes de solidariedade e aceitação que prestam assistência humanitária.
Durante uma viagem recente a Lesbos, na Grécia, os residentes locais me ensinaram uma poderosa lição: quando nós nos enxergamos “no outro”, assim como muitos gregos que são descendentes de famílias refugiadas se enxergam, nós podemos manter uma atitude inclusiva, enxergando “convidados indesejados” como seres humanos que merecem apoio.
O influxo de refugiados, que começou no verão europeu passado e continuou pelos meses de inverno – com mais de um milhão de pessoas atravessando da Turquia para a Grécia – transformou nossa percepção coletiva das ilhas gregas. De destino turístico ao centro de uma crise humanitária, a Grécia tornou-se o principal portal para refugiados e migrantes que sonhavam com segurança e direitos humanos em solo europeu.
Cartões postais com visuais de férias e tranquilidade no azul turquesa do Mar Mediterrâneo foram substituídos por retratos de sofrimento humano, barcos afundados e cemitérios de coletes salva-vidas. Imagens de botes de borracha cheios de crianças, mulheres e homens apavorados dominaram a primeira página de vários jornais em 2015. A mídia alertava: a Europa está sendo invadida por “convidados indesejados” que irão destruir prosperidade e estabilidade social e, fatalmente, corroer valores liberais europeus.
Devido à importância da Grécia para a crise dos refugiados, eu também fiz a travessia da costa turca para Lesbos de balsa. Ao atravessar o Mar Egeu, eu tentei imaginar qual o sentimento de ser sistematicamente destituída, indesejada e ter todas as passagens seguras fechadas para mim. Mas, o privilégio de carregar um passaporte válido e ser aceita não me permitiu compreender a sensação de ser descartada.
Assim que a balsa motorizada se aproximou do porto de Mitilini, eu fiquei encantada com a beleza da costa da ilha e sua silhueta. Minha chegada foi tranquila e segura, contrastando com o caos enfrentado pelos refugiados que aportam em costões rochosos e afundam na água gélida.
Assim que comecei a explorar as estradas montanhosas da ilha e suas vilas remotas, outro contraste chocante surgiu.
Em Lesbos, os remanescentes de coletes salva-vidas, pedaços de barcos nas praias e centros de detenções cercados por arame farpado silenciosamente confirmam como que determinadas vidas são percebidas como descartáveis e sem valor. É desconfortável contemplar a beleza encantadora e exuberante da ilha grega ao testemunhar o custo humano de uma abordagem política descartável a sobreviventes de guerra. A noção normalizada de que determinadas populações e grupos raciais possuem menos valor intrínseco que outros tem legitimado autoridades a abandonar refugiados no Mediterrâneo, permitindo que pessoas morram afogadas sem que nenhuma medida definitiva seja tomada.
Sobrecarregados e sem soluções sustentáveis, as mesmas autoridades aprisionam os convidados indesejáveis em centros de detenções, onde eles permanecem invisíveis a comunidade internacional.
Enquanto isso, a falta de consenso entre as nações europeias com relação ao destino dos solicitantes de asilo acrescenta mais um desafio aos milhares de refugiados e imigrantes vivendo em Lesbos. A falta de consenso prende refugiados e imigrantes na ilha, paralisando o presente e futuro deles. Eles devem esperar por procedimentos legais morosos e incertos para seus futuros precários possam ser definidos. Lesbos tornou-se uma prisão para aqueles que buscavam liberdade a qualquer preço. Sem um destino certo ou ocupação, refugiados e imigrantes caminham sem propósito pelas estradas da ilha ou se reúnem na frente dos centros de detenção e campos de refugiados.
Diante do aumento de instabilidade global e mobilidade humana, como nós podemos sustentar uma atitude receptiva com relação ao outro, aqueles que são vistos como convidados indesejáveis? O sociólogo polonês Zygmunt Bauman ilumina essa questão ao afirmar que a crise dos refugiados é na realidade uma crise da humanidade. Em suas recentes análises, Bauman argumenta que a única resposta para o nosso predicamento global se encontra no reconhecimento da interdependência da humanidade. Seguindo este reconhecimento, o cultivo de comunidades com diversidade cultural, religiosa e étnica, aliado com a cooperação entre diferentes culturas e sistemas de valores formam uma possibilidade latente.
Instintivamente, os residentes de Lesbos compartilham a mesma visão. Ao promover redes de solidariedade e solidificar ações de apoio, os residentes da ilha recebem “o outro” ancorados no reconhecimento da interconexão da humanidade. Eu me hospedei em um hotel cujos donos haviam aberto suas portas para uma família sírio-palestina de sete membros. O casal grego cuidava das crianças refugiadas como se elas fizessem parte da sua própria família. A esposa me contou que, por causa do influxo de refugiados na ilha, o turismo estava em baixa esse ano e que os moradores locais estavam passando por dificuldades econômicas. Ainda assim, apesar das adversidades, o casal estava hospedando e cuidando de uma família que poderia facilmente ser vista como indesejada. Para o casal grego, hospedar e cuidar da família era a resposta mais natural e imaginável.
Durante nossas longas conversas sobre o influxo de refugiados e situação econômica da ilha, eu não senti em momento algum um pingo de ressentimento direcionado aos refugiados.
Em um mundo onde mobilidade humana caminho lado a lado com a lógica dos descartáveis e intolerância institucionalizada, os gregos nos mostram que é possível manter um coração aberto ao outro, mesmo sob condições hostis. Embora o turismo esteja em baixa e a economia local ferida pelo receio de um novo influxo de refugiados, muitos residentes locais continuam a personificar o que era conhecido na Grécia antiga como philoxenia, a tradição de ser hospitaleiro com estranhos, demonstrando amor e amizade.
Após presenciar a generosidade de indivíduos e grupos de solidariedade que permanecem a apoiar populações presas na ilha, é difícil compreender como que traficantes, políticos e outros envolvidos na crise dos refugiados possam explorar e obter vantagem de populações vulneráveis. Ao testemunhar tanta exploração e sofrimento, é tentador tornar-se cínico ou cair em ciclos de frustração e raiva. Consciente desse perigo, eu sempre busco por ações de solidariedade que possam restaurar minha fé na humanidade, e eu geralmente encontro as histórias mais inspiradoras em locais desprovidos de agenda política ou organizacional.
A próxima parada da jornada é em Calais, França, onde resposta militarizada tem sido utilizada como única alternativa contra pessoas que buscam refúgio no Reino Unido.