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segunda-feira, dezembro 23, 2024

Confrontos após vitória do Marrocos na Copa do Mundo alimentam xenofobia da extrema-direita na Bélgica

Extrema-direita belga apontou o ocorrido como resultado do “fracasso do multiculturalismo” e a ameaça de uma “Grande Substituição” dos belgas por populações migrantes

Por Dolores Guerra

Os efeitos da vitória do Marrocos por 2 a 0 sobre a Bélgica, em jogo válido pela primeira fase da Copa do Mundo, não ficaram restritos ao futebol. Incidentes nas ruas de cidades belgas envolvendo a significativa comunidade marroquina durante e após a partida têm sido usados por políticos de extrema-direita no país, que abriga a sede da União Europeia, para alimentar xenofobia e defender pautas anti-migração.

As comemorações dos marroquinos tomaram as ruas, causando alguns congestionamentos – alguns torcedores usavam sinalizadores e soltavam fogos de artifício em cidades como Bruxelas, Liége e Anvers. A anulação do primeiro gol marcado por Hakim Ziyech para o Marrocos teria levado a alguns torcedores estourarem bombinhas em latas de lixo em Boulevard Lemonnier, região central da capital belga. Porém, não há registros de que a escalada da violência tenha começado antes ou depois da presença da polícia.

Alguns vídeos que circulavam pelas redes sociais foram compilados pelo portal Les News 24, em um deles, vê-se apenas um fragmento das comemorações na presença da polícia, mas sem nenhum excesso sendo cometido por parte da torcida marroquina. Já em um outro vídeo, agora de Bruxelas, há torcedores derrubando mobiliário urbano enquanto uma multidão corre na direção contrária ao gás lacrimogêneo disparado pelos uniformizados. Logo, não é possível afirmar se as depredações são uma reação á ação da polícia ou a razão de sua intervenção.

Em Liège, cerca de cinquenta pessoas quebraram janelas de uma delegacia e danificaram duas patrulhas, sendo reprimidas com o uso de canhão de água. Já em Antuérpia, houve depredação de vitrines e de um ponto de ônibus, resultando na prisão de cerca de dez pessoas.

Philippe Close, prefeito de Bruxelas pelo partido socialista, declarou à RTBF que “prevíamos que poderiam ocorrer incidentes. Nossa estratégia era confiná-los a uma única via de 200 a 300 metros. Funcionou, eles não puderam ir às áreas comerciais e ao mercado de Natal e esse era realmente o nosso objetivo”.  Cerca de dez prisões administrativas e uma prisão judicial aconteceram em Bruxelas.

Reação da extrema-direita belga

No entanto, quem tem feito barulho nas redes sociais sobre o tema é a extrema-direita belga, apontando o ocorrido como resultado do “fracasso do multiculturalismo” e a ameaça de uma “Grande Substituição” dos belgas por populações migrantes.

Os conflitos registrados na Bélgica movimentaram as redes sociais daquele país levando termos relacionados aos trend topics – em grande parte expressando discursos da extrema direita e supremacia branca. Entre as palavras-chaves mais postadas estava Molenbeek, o bairro periférico majoritariamente marroquino e turco. Ainda que não se tenham notícias de distúrbios acontecidos nesta parte da cidade, todo um discurso de ódio foi criado sobre estas localidades formarem um ambiente de criminosos que não compartilham os valores europeus – e que não deveriam estar vivendo na Bélgica.

O primeiro-ministro Alexander de Croo Open Vld apenas havia retornado de uma visita à Ucrânia, mas deixou claro seu rechaço aos “agitadores” responsáveis pelas “rebeliões”. “Tolerância zero absoluta para a violência contra a polícia. Esta tem sido a minha mensagem aos sindicatos da polícia”, disse ele no Twitter. Os ministros do Interior e da Justiça propuseram um plano de ação que inclui a implementação acelerada de sanções mais duras, também para rebeliões

Assita Kanko, uma eurodeputada pelo partido N-VA e conhecida defensora de uma política linha dura quanto à migração, teceu comentários sobre os confrontos. Nascida em Burkina Faso, Kanko chegou aos Países Baixos para seus estudos universitários e se estabeleceu em Bruxelas.

“Marrocos contra Bélgica e isto e o que se vê na rua. Acabo de ver ondear bandeiras marroquinas em Vilvoorde com carros tocando suas buzinas. Os jovens que nasceram aqui gritam “Marrocos, Marrocos”. Que tão pouco se identificam com Flandres ou Bélgica. Enquanto isso, distúrbios em Bruxelas”.

“Marrocos está localizado no Marrocos. Estamos na Europa em Rotterdam, Haia ou Bruxelas. Eles não sabem? Eles mesmos escolheram. Mas para alguns, nossa identidade é apenas uma questão de direitos e nunca de responsabilidade. Não há outra maneira de explicar isso”.

Já desde o partido de extrema-direita Vlaams Belang, o vereador de Antuérpia Filip Dewriter desatou uma série de ataques à comunidade marroquina, apontando que estas cenas refletiam uma suposta impossibilidade de integração. “Integração cívica, integração… nunca ouvi falar. Dupla nacionalidade = dupla lealdade” disse em um de seus tweets.

Em nota, o Vlaams Belang apoiou-se em Dewinter para responsabilizar a comunidade marroquina pelos acontecimentos afirmando que “Antuérpia tem um problema marroquino”. O vereador elogiou a atuação da polícia de sua região, que a seu ver atuou de maneira mais firme e exigirá respostas do prefeito que não sejam mediadas pelo “politicamente correto”. Para ele, não se trata apenas de manutenção da ordem pública, mas de um “comportamento cultural e socialmente inadequado, apoiado por uma parte significativa da comunidade marroquina, da falha de política de imigração e da tomada violenta dos bairros”. O informe de 28 de novembro conclui que “A resposta não é apenas mais policiamento, penalidades mais rígidas e uma abordagem firme, mas uma política de adaptação ou depuração.”

Ascensão da extrema-direita na Bélgica

A Bélgica é um país criado no final do século XIX e funciona como a junção de Flandres, que onde se fala flamengo, parecido ao holandês, e a Valônia, francófona. Até princípio do século XXI, o pilar da economia do país era no sul francófono, sendo finalmente substituído pelo norte flamengo, inflamando o discurso e organização política nacionalista. Um dos principais alvos desses movimentos é a política migratória, alimentando a teoria conspiratória de “Grande substituição”, em que povos não-brancos estariam sendo coordenados mundialmente a substituir povos brancos do Norte Global.

Em 2018, a política migratória foi crucial para uma forte mudança na política nacional belga. Ao aprovar a adesão do país ao Pacto Global para a Migração, o então primeiro-ministro Charles Michel viu sua coalizão desmoronar com a saída do Executivo dos nacionalistas flamengos do N-VA, afundando o país em uma crise nos seis meses que antecediam as eleições. Na qualidade de bancada majoritária na Câmara, o N-VA acreditava que o acordo sobre a migração da ONU facilitaria a perda de soberania para definir a política migratória dos Estados signatários e a “imigração ilegal”.

Dois dias antes da Conferência Intergovernamental da ONU que celebraria o Pacto Global para a Migração, em Marrakech (Marrocos), o partido de ultra-direita Vlaams Belangs convidou a Steve Bannon, estrategista da campanha presidencial de Donald Trump e Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita da França União Nacional para participarem de uma manifestação de oposição. Esta atividade fazia parte da agenda da campanha lançada pelo Movimento Europa das Nações e das Liberdades, que agrupava diversos partidos ultranacionalistas e de extrema-direita europeus.

Aquela que ficou conhecida como “Marcha contra Marrakech” reuniu 5,5 mil manifestantes. Houve confronto com as forças policiais que utilizaram canhões de água contra as barricadas e fogos de artifícios lançados, gerando 97 prisões. Além do Vlaams Belang, estavam na organização do protesto a Associação Flamenga de Estudantes Católicos (KVHV) e da Associação dos Estudantes Nacionalistas (NSV).

Desde de seu surgimento em 2004, o Vlaams Belang defende a política nacionalista anti-migratória e islamofóbica, sendo associada a diversos atos de violência e assassinatos contra jovens belgas e franceses oriundos das comunidades marroquinas e turcas. A região de Antuérpia é considerada o bastião desse partido, atingindo cerca de um terço do eleitorado; esta também é uma cidade com massiva presença de comunidades marroquinas.

Durante a campanha de 2019, Filip Dewinter liderou uma campanha chamada “Pare a islamização da Europa”, em que os participantes colavam cartazes em frente aos estabelecimentos da comunidade muçulmana. Além disso, o político já promoveu debates sobre começar a proibir o hijab (véu islâmico) e as comidas halal e kosher (específicas para muçulmanos e judeus, respectivamente).

O rei Filipe se encontrou com o líder Vlaams Belang, Tom Van Grieken em 2019, encerrando o jejum em que um monarca belga recebia um representante da extrema-direita iniciado em 1936. O partido havia passado de registrar apenas 3,67% das intenções de voto em 2014 a angariar 19% dos votos para os cargos legislativos em 2019. Na época, os analistas políticos avaliaram como um mal necessário, considerando que esse partido seria fundamental para a formação de um governo, algo que já carecia e era demandado pela sociedade belga. Entre as principais bandeiras do Vlaams Belang está o fim da monarquia belga e a independência da região flamenga.

Marroquinos na Bélgica

Segundo o CIA World Factbook, os marroquinos são o maior grupo de imigrantes não europeus na Bélgica, somando 3.7% da população total e colocando-os como terceiro maior grupo étnico do país.

A partir de 1912, uma parcela dos trabalhadores recrutados pela França de sua colônia do norte da África foi permitida a ingressar na Bélgica.  Após a Segunda Guerra, a escassez de mão-de-obra europeia levou a Bélgica a trazer trabalhadores do Marrocos para operar nas minas da Valônia, principalmente após o desastre da mina de Marinelle (1956). O primeiro acordo assinado entre ambos os países para facilitar a emigração do país africano surgiu em 1964, permitindo a entrada de marroquinos como trabalhadores convidados. Com a decadência do setor mineiro, muitos começaram a trabalhar na metalurgia, química, construção e transporte público.

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