Por Anna Paula Ramos
Do ProMigra
“Nenhuma nação deve assumir essa responsabilidade sozinha”. Com essas palavras, o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, apresentou a Declaração de Los Angeles sobre Migração e Proteção, firmada pelos líderes americanos na última edição da Cúpula das Américas ocorrida no início de junho, para tornar a migração no continente segura e ordenada.
A pauta migratória era tida como um dos assuntos mais relevantes da Cúpula, já que os padrões migratórios da região vêm se alterando. As crises econômicas, convulsões políticas, insegurança alimentar, violência, desestruturação dos sistemas básicos e desastres naturais dos últimos anos, trouxeram o caráter de deslocamento forçado para um contexto migratório que antes era entendido, predominantemente, por impulsos laborais.
Neste enquadramento, a Declaração de Los Angeles é um avanço significativo para se criar uma linguagem comum aos movimentos migratórios nas Américas, já que não havia um instrumento jurídico que contemplasse toda a região e que envolvesse diretamente os EUA.
Apesar de ser uma iniciativa inédita e grandiosa, a sombra do ceticismo paira sobre a Declaração. Primeiramente, por não ser vinculativa e não prever mecanismos de verificação dos resultados. Em segundo lugar, a coesão desse documento foi abalado com as ausências dos chefes de Estado do México e dos países do Triângulo Norte, formado por El Salvador, Guatemala e Honduras, que são atores-chave na gestão migratória estadunidense, mesmo que representantes desses países tenham assinado o documento.
Além disso, o forte viés econômico das obrigações assumidas pelo governo Biden na Declaração para lidar com os imigrantes centro-americanos, que, nos últimos anos, apresenta-se como a maior parcela de deslocados para os EUA, gera incerteza se as medidas desse país irão impulsionar respostas duradouras e sustentáveis a essa conjuntura.
Contextualizando a migração centro-americana
Ponderar a migração advinda da América Central somente com a motivação sendo econômica é insuficiente. Apesar da região não presenciar, em dias atuais, uma guerra ou conflito civil armado, há outros fatores que degradam a situação nessas localidades, além da escassez empregatícia.
No presente, há três rotas principais de deslocamento misto, contemplando migração forçada e laboral. O trânsito intra-regional da Nicarágua à Costa Rica; o fluxo caribenho, advindos do Haiti e o Cuba, para os Estados Unidos; e do Triângulo Norte também à nação estadunidense, conhecido como as caravanas migratórias.
A violência generalizada por gangues de narcotraficantes é uma das razões de expulsão em comum entre o fluxo nicaraguense e do Triângulo Norte. As gangues são responsáveis por gerar um ambiente violento com elevado grau de feminicídio, aliciamento de jovens e agressividade contra àqueles que discordam de suas condutas.
Anos de guerras civis e interferência dos Estados Unidos também causaram uma profunda instabilidade política. Governos fracos e os altos índices de corrupção impossibilitam a formação de um sistema democrático seguro e confiável. Devido a esse cenário, há carência de políticas públicas, com defasagem nas estruturas de educação e de saúde, e, em muitos casos, as únicas alternativas são integrar as gangues ou migrar.
Os movimentos migratórios originários da área insular centro-americana, conhecida como Caribe, especificamente de Cuba e do Haiti, também são expressivos para os EUA. Semelhante ao panorama da região continental, a fragilidade política provoca, além da repressão contra à população, insuficiência de perspectivas econômicas e sociais.
Além desses fatores, tanto a região continental quanto a insular centro-americana estão localizadas numa superfície propícia a fenômenos naturais, como terremotos e furacões. Como as economias são enfraquecidas, esses países não possuem condições para construir uma infraestrutura, que minimize as consequências dessas catástrofes, como também para auxiliar os habitantes na reestruturação pós-desastre. À vista disso, uma porcentagem da população é forçada a migrar, tornando-se refugiados climáticos.
Os compromissos estadunidenses
No âmbito da Declaração, embora Biden tenha se comprometido a retornar o programa de reunificação familiar para haitianos e cubanos, a maioria das iniciativas para conter a migração centro-americana foram formuladas para atender demandas por mão-de-obra. Os EUA prometeram fornecer 11.500 vistos para trabalhadores sazonais não-agrícolas e beneficiar com 65 milhões dólares as empresas estadunidenses, que contratassem imigrantes temporários. O que reforça a percepção de que esse governo responde a essa situação, principalmente, sob a noção de ser uma migração laboral.
Por se tratar de um fluxo migratório misto, sabe-se que essas medidas irão auxiliar muitos imigrantes, que estão em busca de emprego. Entretanto, o perfil da migração centro-americana é heterogêneo. Nos últimos anos, há elevados números de crianças desacompanhadas, mulheres grávidas ou com filhos pequenos e idosos transitando para os EUA e que não poderão ser contemplados por essa categoria de visto.
Em paralelo, o democrata prometeu conceder, no período dos próximos dois anos, refúgio a 20 mil centro-americanos. Todavia, essa quantidade, bem como a dos vistos de trabalho, não condiz com a dimensão de deslocados da região. A título de ilustração, somente no ano passado, foram 1,7 milhões imigrantes apreendidos na fronteira estadunidense com o México, sendo 684 mil centro-americanos do Triângulo Norte. Logo, a proporção de instrumentos legais à entrada de centro-americanos prometidos pelo governo estadunidense é incompatível com a realidade vista nas zonas fronteiriças.
Hesitação sobre a postura dos EUA
Embora a Declaração de Los Angeles tenha sido proposta pelos EUA, que relutava em discutir regionalmente uma cooperação migratória, há dúvidas sobre as intenções desse país e o quão eficaz poderá ser esse documento para o corredor migratório América Central – Estados Unidos.
Em primeiro lugar, ao trazer a noção de responsabilidade compartilhada como motor, Biden transfere, disfarçadamente, os encargos de administrar e fiscalizar os fluxos, que iriam originalmente para seu território, a outros governos da região. Como, por exemplo, a agenda do México, fomentada pelo governo estadunidense, de lançar um programa de trabalho temporário a 20 mil guatemaltecos e prometer expandi-lo, em médio prazo, para nacionais de El Salvador e Honduras.
O segundo ponto se refere ao posicionamento estadunidense frente às zonas fronteiriças. Enquanto Biden pede à América a partilha do ônus migratório e defende a Declaração a partir do olhar de uma migração segura, ordenada, humana e regular, as deploráveis condições dos imigrantes na fronteira com México se perpetuam.
Com o fim da gestão Trump, esperava-se que dias melhores viriam. Contudo, o governo democrata continua a implementar posturas abusivas, como o Título 42, que determina o fechamento das fronteiras terrestres em nome da saúde pública nacional, e o programa Migrant Protocols Protection, em que obriga os imigrantes a aguardarem suas audiências de asilo no México.
Apesar de ser cedo para afirmar se a Declaração de Los Angeles trará melhorias aos imigrantes centro-americanos, se o governo estadunidense não mudar as suas políticas migratórias domésticas e não levar em consideração o aspecto humanitário em sua gestão, somente os compromissos desse documento não serão suficientes.
Sobre a autora
Anna Paula Ramos é mestranda no Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, Unicamp, PUC-SP), bacharela em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Álvares Penteado (FECAP) e membra do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP.