Tradução de artigo de opinião escrito por Mike Sholars
Texto traduzido do inglês para o português por Giselle Rodrigues Ribeiro
Se há uma questão que assombra todas as pessoas não-brancas que vivem na América do Norte é essa: “Então, de onde você é?”. Eu passei toda a minha vida lidando com ela.
Quando uma pessoa branca faz essa pergunta a outra pessoa branca, ela é apreendida em sentido literal. Então quando me lançam a mesma pergunta, eu respondo sem rodeios: “Sou de Toronto.” E se a pessoa que pergunta insiste, admito que, na verdade, sou de Mississauga, Ontário.
Já suportei várias versões dessa conversa, todas com pessoas brancas que se sentem confortáveis o suficiente comigo (ou consigo mesmas, ou com ambos) para buscar uma resposta para o que realmente querem saber: “Como você veio parar aqui? E por que você não é branco?”
É dessa forma que o privilégio branco se instala nos tipos mais básicos de conversa que permitem conhecer alguém, mesmo que a pessoa que esteja (me) fazendo o interrogatório não tenha más intenções. Um dos aspectos centrais do privilégio branco é o de nunca, jamais ter que se perguntar se você pertence a seu país de origem. Por outro lado, um dos aspectos centrais de não se ser branco é o de ter que oferecer uma resposta para o fato de você existir em um espaço presumivelmente destinado a pessoas brancas. Lenta, mas indubitavelmente, isto pode estilhaçar sua identidade.
Quando me perguntam de onde sou, estão me perguntando como alguém com a minha aparência veio parar no Canadá — um país branco. Este é o raciocínio subjacente toda vez que pessoas brancas perguntam animadamente sobre o histórico familiar ou a etnicidade de alguém. Quer elas percebam, quer não, estão buscando uma explicação para como algo do tipo ocorreu. Pessoas brancas, por outro lado, não precisam se explicar.
Se pessoas brancas (por planejamento ou presunção) são os anfitriões do nosso país, isto faz do restante de nós convidados. E convidados podem ser expulsos a critério do anfitrião.
Considere a história de imigração de minha família, por exemplo. Meus avós se mudaram para Quebec nos anos 1970 e viveram lá até o governo se tornar hostil com todos que não falavam a língua francesa, o que provocou um êxodo de imigrantes rumo a Ontário. No final da década de 1980, minha mãe e meu pai se mudaram para Dallas, onde meu irmão mais novo nasceu. Eles moraram lá até os locais começarem a se comportar de forma antipática com o casal de pele escura que ampliava a família por ali. Nós não fomos enxotados para fora da cidade com forcados ou nada do tipo, o que havia era uma sensação generalizada de que estávamos nos arriscando a viver no limite de um processo de acolhimento desgastado.
Isto sem nem contar o tempo que passamos em São Francisco, em Ottawa e em um punhado de outras cidades. Cada lar e cada mudança foram definidos por quanto tempo pessoas brancas, quer por meio de políticas governamentais e culturais explícitas, quer por meio de sinais sociais implícitos, permitiram à minha família permanecer nesses lugares. Eu sempre achei que a história da minha família fosse perfeitamente canadense. Nós rodamos o mundo em busca de um lugar ao qual pudéssemos pertencer antes de finalmente desembarcar em Mississauga. Nós literalmente “viemos de longe”.
A maior parte das nossas mudanças e realocações aconteceram antes de eu nascer; para todos os efeitos, o Canadá é o único lar que eu reconheço efetivamente ou de que me lembro. Mas nada disso importa se minha aparência pode sugerir que eu não pertenço a este país, e essa pergunta, especificamente “de onde você é?”, deixa isto muito claro toda vez que é feita.
Então, se você é branco e já perguntou porque alguém não tem sotaque, se você já encenou uma conversa em vários atos para delimitar as circunstâncias do nascimento de uma pessoa ou se tratou a história da vida de alguém como se estivesse em um safari particular, lembre-se disto: nós nunca temos como saber com certeza se você está tentando se comportar como um “anfitrião gracioso”, se está nos submetendo a um teste de pureza secreto ou se está se preparando para nos expulsar por completo.
Todas as gerações da minha família foram abaladas por pessoas brancas que, como maioria autoproclamada, exerciam as prerrogativas de definir quem eram os forasteiros e de expulsá-los. E das reformas imigratórias radicais sendo lançadas em Ontário às políticas xenofóbicas dos Estados Unidos de Trump, minha geração está confrontando a mesma aterradora e desumanizadora verdade: estamos todos aqui, mas à mercê de pessoas brancas.
Sobre o texto
Em fevereiro de 2019, este texto foi publicado em língua inglesa pela revista “The United Church Observer” com o título “So, where are you from?”. No mesmo mês, ele foi republicado pelas revistas Broadview e ByBlacks com os títulos “White people need to stop asking, ‘where are you from?” e “White People Need To Stop Asking Us This Question”, respectivamente. [Nota da tradutora].
Sholars faz uso da expressão “viemos de longe”, no original “Come From Away”, para aludir a um musical de
grande sucesso produzido pelos canadenses Irene Sankoff e David Klein a partir de um evento histórico: a
recepção, pela população de Gander, na província de Terra Nova e Labrador, de passageiros e tripulantes de 38
aviões redirecionados para ali em decorrência do atentado ocorrido nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. Veja detalhes sobre a peça no site da The Canadian Encyclopedia e no site que divulga suas exibições
(acesso em: 28 de abril de 2024; nota da tradutora).
Referências
SHOLARS, M. Mike Sholars: Creative Human. Disponível em: https://www.mike-sholars.com/. Acesso em: 15 maio 2022.
SHOLARS, M. White people need to stop asking, “where are you from?”. Broadview, Toronto, Canadá, 5 fev. 2019. Vida ética. Ponto de vista. Disponível em: https://broadview.org/why-white-people-need-to-stop-asking-where-are-you-from/. Acesso em: 16. maio. 2022
Sobre o autor
Mike Sholars já trabalhou como jornalista para empresas como HuffPost, Daily Hive, Polygon e Vice, seja integrando equipes, seja como freelancer. No âmbito do Marketing de Conteúdo, atuou como escritor, consultor e gerente executivo para empresas como Warner Bros. Canada, Chevrolet, McDonald’s e Ebay. Também fez parte do time que produziu o podcast “Critics vs. Fans”.
Tradutora do texto, Giselle Rodrigues Ribeiro é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e licenciada em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Estadual de Maringá (Brasil). É autora do livro “Subalternidades em perspectiva teórica: pela descolonização dos estudos literários” (EDUFBA, 2017), é líder do grupo de pesquisa “Migrantes na literatura e nas histórias em quadrinhos (DGP) e coordenadora do “Leituras dos girassóis”, um clube de leitura de textos literários. Atualmente, dedica-se a um estágio pós-doutoral na Johannes Gutenberg-Universität Mainz (Alemanha) no âmbito dos estudos literários e da tradução.