ONU quer banir Apatridia até 2024; especialista diz que focar nas crianças apátridas e facilitar naturalização ou cidadania são “remédios completos”
Por Victoria Brotto
De Estrasburgo (França)
Há 25 anos (mais exatamente em 18 de dezembro de 1992), 193 países do globo assinavam a Declaração dos Direitos das Minorias (47/135), na Assembleia Geral das Nações Unidas, conferindo às minorias o direito – entre outros tantos – à cidadania e ao pertencer a uma nação. Passados esse período, não se sabe ainda quantas pessoas vivem hoje no mundo sem “pertencer a lugar nenhum”– não se sabe não pode ser poucas, mas por serem muitas.
“Apesar de não existir um registro oficial de quantas pessoas são hoje apátridas no mundo, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados estima que milhões de pessoas hoje não tenham qualquer nacionalidade”, afirma o ACNUR em seu novo relatório sobre Apatridia, “I Belong”, publicado neste mês de Novembro (confira a versão inglês do relatório aqui). Junto com o relatório, o órgão lembrou da sua campanha #IBelong, lançada em 2014 para promover o fim da apatridia até 2024 – apatridia é o “não ter um país, não ter uma nacionalidade” e quem não a possui é chamado de “apátrida”.
De acordo com as Convenções de 1954 e 1961 para Refugiados e Apátridas, existem dez razões pelas quais uma pessoa se torna apátrida: conflito de leis, transferência de território, leis concernentes ao casamento, práticas administrativas, descriminação, leis sobre registro de nascimento, juris sanguinis (do latim, direito pelo sangue), desnacionalização, renúncia da cidadania e perda automática de tal por meio de um processo jurídico.
Mas, de acordo com o ACNUR, dessas dez razões, a que mais pressiona os milhões de pessoas cada vez mais para dentro da apatridia e, consequentemente, da exclusão social e econômica é a descriminação. Segundo a agência, os apátridas continuam apátridas porque são “discriminados, excluídos e perseguidos” por sua fé, por sua etnia, língua, características físicas ou por serem migrantes.
“Essa é a terrível realidade de milhões de pessoas no mundo. A discriminação é a raiz dessas pessoas não terem uma nacionalidade. Se quisermos acabar com a apatridia, temos que combater a discriminação e garantir a igualdade entre todos os seres humanos”, afirma Fillippo Grandi, chefe do ACNUR.
De acordo com as Nações Unidas e com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), de todos os apátridas do planeta, 75% fazem parte de minorias étnicas, linguísticas ou religiosas. Dentre eles, estão: a minoria Rohingya (600 mil pessoas), em constante fuga de uma perseguição étnica em seu próprio país, Myanmar; os Roma (54 mil pessoas, segundo o governo da Macedônia, mas que de acordo com estimativas internacionais eles figuram entre 110 e 260 mil pessoas) na ex-república iugoslava; os da tribo Pemba (3,5 mil pessoas, no Quênia); e os Karana (mais de 20 mil pessoas), em Madagascar.
“Três remédios”
Para David Weissbrodt, professor emérito da Universidade de Minnessota, Columbia University e Universidade de Berkeley, na Califórnia, focar na criança é também um passo eficaz para acabar com a apatridia. “São medidas essenciais, porque, quando propriamente implementadas, se tornam remédios que impede o desenvolvimento dos danos de uma “apatridia de longo prazo” . Weissbrodt é professor de Direito Internacional Humanitário, Direito Administrativo e de Imigração na Universidade do Minessotta atualmente e, entre 1995 e 2003, foi membro da Sub-Comissão das Nações Unidas para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos. Ele também fez parte do quadro de membros de órgãos como Anistia Internacional.
Em seu artigo “Os Direitos Humanos dos Apátridas” publicado pela Universidade de Minnessota, Weissbrodt fala em três “remédios” para assistir, proteger os apátridas e para por fim à sua condição de apátrida. O primeiro remédio é o de prevenção, com ações que foquem principalmente as crianças – a nova geração, os nascidos de pais apátridas – para romper com o ciclo de apatridia. O segundo remédio seria o “paliativo”, para assistir os já apátridas, dando-lhe condições necessárias para se movimentarem, terem emprego, casa, direito à propriedade enquanto estão aplicando para a cidadania. E o terceiro remédio, que Weissbrodt não trata mais como remédio, mas sim como solução, seria a cidadania em si. “Enquanto a apatridia existir, os três tipos de remédios serão necessários. Mas, mais uma vez, a naturalização ou a cidadania é único remédio completo e completamente eficaz no combate à apatridia”, afirma o especialista.
Os Rohingya
No mapa, um filete de água separa Myanmar de Bangladesh – e é por esse filete que 600 mil Rohingyas já fugiram de de Myanmar, para não serem mortos pelo governo local. Uma lei de cidadania foi aprovada em 1982 para algumas minorias no país, mas, pela forma com que foi redigida e como ela é aplicada hoje, os Rohingyas não conseguem aplicar para serem cidadãos de Myanmar.
Em pequenos botes, que chegam às dezenas, essas pessoas chegam quietas durante a madrugada às fronteiras de Bangladesh depois de terem perdido filhos, marido, mães, esposas ou degoladas ou queimadas vivas. O governo de Myanmar, país onde a etnia vive há pelo menos dois séculos desde que imigraram de Bangladesh, não os reconhece como cidadãos. Mas quando chegam à Bangladesh o governo não os quer também – “eles nos falam para voltarmos para nosso país”, afirma um membro da etnia. “Poucos grupos étnicos na Terra têm sido tão lançados em uma lógica de terror e desesperança, colocados num limbo entre duas fronteiras, desesperadamente apátridas, como eles [os rohingya]”, afirmou o jornalista Jeffrey Gettleman, correspondente do jornal The New York Times em Bangladesh. E acrescenta: “Um povo fragilizado, traumatizado, desesperado, repudiado por duas nações e com a sua própria origem sendo colocada em xeque”.
“Os Rohingya são a escória da Terra”, afirmou Leonard Doyle, porta-voz da OIM. “Ninguém os quer. Eu estou falando de crianças de sete anos de idade que viram seus pais sendo degolados e que agora estão entre duas fronteiras, presos numa condição de abandono, se perguntando: “O que vai acontecer comigo?’”
Não se sabe com exatidão quantas pessoas fazem parte da minoria Rohingya hoje no mundo – estima-se mais de 600 mil – mas a ONU já os chama de “a mais numerosa população de apátridas do planeta”.
Apatridia: um ciclo de pobreza e exclusão
“Eles (as autoridades) não nos explicam nada. Eles apenas me pedem documentos que eu não tenho”, diz Haidar Osmani, 54 anos, membro da minoria étnica Roma na Macedônia. Após a desintegração da Iugoslávia, foram excluídos da população macedônia, onde viviam como minoria étnica, pelo novo governo não os ter informado que eles precisariam aplicar para uma cidadania na então recém-independente república.
Pelos pais não terem se tornado cidadãos, seus filhos não puderam ser registrados – nem os filhos de seus filhos. E assim uma geração inteira de Romas estão presos num ciclo de exclusão social, pobreza e descriminação. Hoje a maioria dos Roma vive em tendas feitas de saco de lixo nas periferias das cidades macedônicas e sobrevive de recolher garrafas plásticas – uma família ganha entre 100 a 200 dinares ao dia, o equivalente a R$ 15.
“A discriminação contra nós está em todo o lugar, nós somos ignorados pelas autoridades, pelos médicos, pelos professores. Se você vai a um posto policial requerer qualquer coisa, eles falam para você ir embora, porque você não pertence à Macedônia, para você ir para qualquer outro lugar”, afirma Sherafedin Sejfula, 54 anos. “Mas não somos de qualquer outro lugar, nós nascemos aqui, na Macedônia.”
Bajramsha Esad, 42 anos, foi a um cartório tentar registrar seu filho. “A funcionária já me olhou torto e mandou eu ir embora”, afirmou. “Eles sempre dizem: ‘Vai embora, gypsy (palavra é usada como um termo pejorativo para cigano)”. Pela Declaração Universal dos Direitos Humanas, de 1948, toda a discriminação contra a criança por conta da situação social de seus pais é proibida. “A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”, afirma o Artigo 25, parágrafo 2º.
“Eles dizem que eu preciso comprovar que não nasci em Kosovo para obter meus documentos. Mas como vou viajar para Kosovo sem documentos?”, afirma uma das milhares de mulheres da etnia Roma. Os números oficiais dizem que são 54 mil Romas hoje na Macedônia, mas a ONU acredita que o número pode variar de 110 mil a 260 mil pessoas.
Outra população que vive à margem da sociedade é a comunidade Karana, em Madagascar. Apesar de estarem no país por mais de um século, desde que emigraram da Índia, eles não são reconhecidos como nacionais pelo governo da ilha de Madagascar. Desde a independência, em 1960, da França, o grupo não foi considerado “etnicamente” de Madagascar. Com isso, sem nacionalidade, eles não podem ir à escola, nem aplicar para universidade, nem ter bens, nem conseguir um emprego formal.
“As pessoas nos mandam voltar para Mumbai, mas nós não somos de Mumbai. Nós nascemos aqui”, afirmou Nassir Hassan, de 48 anos, um dos membros da comunidade Karana.
Ismael Ramjanali, um senhor da etnia Karana, conta que quando jovem ele não pode se alistar no serviço militar e por isso não teve direito a ingressar numa faculdade. “Para ir à universidade, você precisava fazer serviço militar. Mas sem cidadania, eu não podia me alistar. E então eu lutei a minha vida inteira para sobreviver sem ter tido estudo.”
Os “brasileirinhos apátridas”
Nem o Brasil fica à parte quando o assunto é apatridia. Pelo contrário, quase gerou uma geração de apátridas mundo afora. Isso porque uma emenda constitucional aprovada em 1994 pelo Senado Federal não conferia cidadania brasileira a filhos de brasileiros nascidos em outro país. Só podia ser brasileiro quem nascia dentro do Brasil ou quem, aos 18 anos, se mudasse para lá e requeresse, perante um juiz, a cidadania. Isso afetava diretamente a população emigrada brasileira e deixava mais de 200 mil filhos de brasileiros nascidos no exterior sem cidadania.
Ainda nos anos 1990 começou o Movimento dos Brasileirinhos Apátridas, que por mais de uma década se mobilizou por meio de comitês no Brasil e no exterior para que a Carta Magna voltasse a reconhecer o direito à nacionalidade dos brasileiros nascidos em outros países.
Os pais brasileiros que viviam na Suíça e na Alemanha estavam ainda em uma situação mais delicada, pois seus filhos não podiam nem aplicar para cidadania do país em que nasceram por conta de trâmites próprios destes países. E por causa da Emenda, também não eram considerados brasileiros. Na época, o movimento de pais dos “brasileirinhos apátridas” entregou um manifesto pressionando pela votação da anulação da Emenda pela Câmera a Carlos Alfredo Lazary Teixeira, então ministro-conselheiro da Embaixada brasileira em Washington.
Apenas na década seguinte, já em 2007, o Congresso Nacional aprovou uma emenda constitucional (PEC 95/2007) que suspendeu a exigência de viver no Brasil para receber a nacionalidade. Hoje, filhos de brasileiros que vivem fora do país automaticamente recebem a nacionalidade brasileira ao nascer e o movimento é considerado um exemplo de mobilização realizada pela diáspora brasileira na luta por seus direitos.
A nova Lei de Migração brasileira, que deve entrar em vigor no próximo dia 21 de novembro, prevê mecanismo de proteção para os apátridas e também a opção pelo desejo de obter a cidadania brasileira como forma de facilitar a integração dessas pessoas à sociedade (artigo 26).