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domingo, novembro 24, 2024

Dia Nacional da Visibilidade Lésbica: o relato de uma refugiada LGBT no Brasil

Além de lutarem contra a lesbofobia, mulheres lésbicas e bissexuais são também atingidas pelo machismo e misoginia a que todas as mulheres estão sujeitas cotidianamente

Por Lya Amanda Rossa
Coluna Fronteira Aberta
Em São Paulo (SP)

Como é ser uma pessoa refugiada LGBT* nos dias de hoje? E, especialmente, uma mulher lésbica refugiada? Criado em 1996 pelo Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro durante o seu 1º Seminário Nacional, 29 de agosto foi a data escolhida para se lembrar o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica no Brasil.

Além de lutarem contra a lesbofobia, forma de preconceito homofóbico direcionado a mulheres homossexuais, as mulheres lésbicas e bissexuais são também atingidas pelo machismo e misoginia a que todas as mulheres estão sujeitas cotidianamente, o que as expõe a diferentes formas de violência que sofrem homens gays, pessoas trans e outros grupos que se identificam dentro do conceito de LGBTIs.

Leia também: ACNUR no Brasil lança cartilha sobre direitos de refugiados e solicitantes de refúgio LGBTI

Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (ILGA), a criminalização de grupos LGBT ocorre em 86 países do mundo. E apesar do Brasil ser um dos locais em que as uniões entre pessoas do mesmo sexo são garantidas por lei, ainda são muitos os casos de violência contra mulheres lésbicas, que se intensificam conforme a classe social e elementos étnicos-raciais. Mulheres negras, lésbicas e periféricas são expostas a riscos maiores, e constam duplamente como vítimas de estatísticas diferentes: de crimes contra as mulheres e de crimes contra LGBTs. Apesar do Brasil não prever qualquer tipo de criminalização a grupos LGBTs, ter a Lei Maria da Penha que objetiva proteger mulheres de violência doméstica e tenha a previsão constitucional de que ninguém será discriminado por motivos de origem, raça, sexo (ou gênero) e idade (artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal de 1988), a realidade é bastante diferente.

Campanha da ORAM (Organization for Asylum and Migration) sobre a situação de refugiadas LGBT.
Crédito: Reprodução/ORAM

O Brasil tem um dos maiores índices de feminicídio no mundo, sendo o quinto país onde mais morrem mulheres dentre 83 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2015 (Cebela/Flacso) – uma taxa de 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres. Além disso, a cada 25 horas uma pessoa LGBT é morta no Brasil. Mesmo assim, o país é buscado por pessoas que fogem de violências e perseguição motivada por identidade sexual e de gênero.

As inúmeras violações de direito praticadas contra mulheres lésbicas – estupros corretivos, casamentos e planejamento familiar forçados, condenações criminais com pena de morte e assassinatos – fazem com que esse grupo esteja sob a tutela do sistema de refúgio internacional, sendo reconhecido dentro do conceito de refugiados LGBTI. O Direito Internacional dos Refugiados, consagrado pela Convenção de Genebra de 1951 e pelo Protocolo de 1967, que inicialmente não previam situações de perseguição baseadas em gênero como uma das causas de refúgio, foi complementado por diversos instrumentos jurídicos e diretrizes internacionais, como as diretrizes “Position Paper on Gender Related Persecution” (Posicionamento do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados-ACNUR sobre perseguições fundadas em gênero), do ano 2000 e complementadas em 2002, reforçadas pelos Princípios de Yogakarta, de 2006. Desde 2007, os documentos do ACNUR fazem referência direta aos refugiados LGBT.

Apesar dos poucos registros públicos a que se têm acesso pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), o posicionamento internacional tem sido aplicado no Brasil pelo Estatuto do Refugiado, a Lei 9.474 de 1997, ainda que não constem na lei menções diretas a perseguições específicas em razão de identidade sexual e de gênero. A lei de refúgio no Brasil prevê que serão reconhecidas como refugiadas pessoas que necessitem sair de seus países em função de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertencimento a grupo social, sendo interpretado nesse último item que as pessoas LGBT são um grupo social sujeito a violações de direitos. As violências e perseguições podem ocorrer motivadas pelas suas práticas pessoais, como a expressão de sua identidade de gênero e sexualidade, ou por sua mobilização política como ativistas do movimento LGBT.

Bandeira atual do Orgulho LGBT, que tem seis cores: vermelho (fogo, vivacidade), laranja (cura, poder).
amarelo (Sol, claridade, da vida), verde (natureza), azul (arte, amor artístico) e roxo (Espírito, vontade e luta).
Crédito: ParadaSP.org

“Só quero que você me respeite”

O MigraMundo traz o relato da o relato da refugiada africana lésbica, Ana**, para visibilizar o quanto ainda é preciso avançar e discutir sobre as violências a que são expostas mulheres lésbicas e bissexuais no Brasil e no mundo, e expor que, mais do que números ou vítimas, são mulheres reais que lutam pelo direito de expressar suas identidades, sexualidades e ter direitos sobre seus corpos.

MigraMundo: Como é ser uma refugiada LGBTT?
Ana: Eu sou LGBTT. Quanto ao meu país é péssimo, eu não tenho a quem recorrer, mas com relação a minha vida como pessoa, beleza. Mas vou procurar um emprego e não encontro. É uma sociedade machista, uma sociedade em que o fator homossexualidade é coisa de espíritos, é coisa dos brancos. Lá tem todo o tipo de justificativa, ou é o espírito, ou é doença. O que eu não fazia no meu país, eu faço no Brasil. Mas quando eu digo “eu faço” não quer dizer que eu invado o respeito, ou falto com o respeito, invado o espaço dos outros. Dar um beijo, demonstração de carinho é uma coisa. Agora, eu penso o seguinte: eu não quero que você me aceite como eu sou, só quero que você me respeite. É a única coisa que eu exijo, é a única coisa que eu penso que eu tenho por direito, exigir o respeito do outro. Agora no meu país é difícil você exigir respeito, você é agredida, você é assassinada. Eu já perdi duas amigas por serem o que elas são, só por isso. Aí eu pergunto: será que as coisas boas prevalecem no meio de tanta brutalidade, para alguém querer viver aquilo que ela é, querer ser aquilo que ela é, por gostar daquilo que lhe faz bem?

MigraMundo: Mas você se sente confortável no Brasil para assumir essa identidade abertamente? Porque mesmo aqui há uma certa dificuldade para algumas pessoas em “sair do armário”, de ter uma aceitação da família, ou até publicamente, às vezes até nas relações de trabalho…
Ana:
Uma coisa que nós africanos temos é que somos muito privados. É difícil você encontrar um africano que vai contar da sua vida pessoal, e eu sou uma dessas pessoas. Eu muitas vezes, se alguém me faz uma pergunta pessoal, eu tenho que desviar, não é assim perguntou, respondi. Porque é uma coisa que a gente aprendeu lá [em África]. Você nunca sabe o que o outro quer, na verdade, quando te pergunta algo. Então você tem que ser o máximo de discreto com as coisas que você faz e com aquilo que você é. Aqui sim eu me sinto mais aberta para vestir aquilo que eu gosto, andar do jeito que eu gosto. Mas nunca falto o respeito com aquele que não aceita, ou não gosta da minha orientação sexual. Mas também não admito que a pessoa me falte com respeito. Mas que eu me sinto à vontade para viver a minha vida, como eu sou, para viver daquilo que eu gosto, ah… isso eu me sinto. Isso o Brasil me deu, de braços abertos, o Brasil tem lei, cumprindo ou não, tem lei. É difícil viver num país que não tem uma lei que te protege. Lá tem uma ONG que está há dez anos tentando se legalizar, essa ONG é voltada para proteger as minorias. Dez anos tentando se legalizar e nada. E de uma forma expressa, direta, isso está claro, pra eles isso é uma coisa abominável. Tem certos países que você nem pode falar sobre isso. Que você tem que estar dentro do armário mesmo, porque se você sai, você morre, se você sai, você é violentada. Aí é complicado. Então, a mulher acaba sofrendo um pouco nisso, porque ela é frágil, tanto dentro da comunidade LGBT quanto fora. Ela é mais frágil que o homem, o homem ainda tem a capacidade de se virar, mas e a mulher?

MigraMundo: Mas e uma mulher que não tiver condições de sair do seu país, de pedir refúgio?
Ana:
Eu tenho uma amiga que hoje está aqui no Brasil fazendo mestrado. Ela teve que se envolver com um cara porque os pais disseram que se ela vivesse do jeito que ela gosta, que esquecesse que eles eram os pais. Beleza, ela aceitou. Envolveu-se com esse cara, mas chegou um tempo que não dava mais, ela já não aguentava. Nesse período ela acabou ficando grávida, teve filho. Quando ela teve um filho ela decidiu, que “não, eu vou viver a minha vida. Eu não gosto, eu quero ser eu”.  E quando ela decidiu, o que é que a família fez? Virou-lhe as costas.

A única opção que nós, africanas, temos, é a escola. Quando você tem a escola, o respeito é obrigatório. Agora se você não tem escola, é difícil. Por isso que muitas pessoas, principalmente a comunidade LGBT, primam por isso. Estudar, ser alguém. Porque sendo alguém, quem vai te apontar? Se eu sou formada, trabalho, tenho meu nível superior, quem vai te apontar? Agora se você não tem nada, se você não fez nada, e ainda é da comunidade LGBT… Ah… Aí é esquecer.

*A sigla LGBT, que se refere a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, é o conceito atualmente adotado pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), ainda que existam variações nos grupos contemplados em diferentes movimentos sociais nacionais e internacionais, como por exemplo pessoas transexuais, intersexo e queer, o que faz com que o movimento também seja identificado como LGBTQ ou LGBTTI.

**Para preservação da identidade da entrevistada, usamos um nome fictício e ocultamos o país de origem, apenas indicando sua origem continental.

Para saber mais:

FRANÇA, Isadora Lins; OLIVEIRA, Maria Paula. “Refugiados LGBTI”: gênero e sexualidade na articulação com refúgio no contexto internacional de direitos. Travessia, Revista do Migrante, nº 79, julho-dez/2016.

 

 

 

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