Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
Isso mesmo, todo encontro abre um poço e, neste, água e sede se cruzam e se complementam. Revelam que ninguém é só água e ninguém só sede. Todos somos uma mistura de ambas, com lacunas e possibilidades desconhecidas. Tais poços, quando realizados entre migrantes de várias etnias, mantêm determinada natureza privilegiada. Onde se encontram eles? Pode ser na hora da partida, pelas encruzilhadas dos caminhos, nos territórios fronteiriços, nas numerosas Casas e/ou Centros de acolhida para Migrantes ou no momento da chegada. Em qualquer lugar onde eles possam se encontrar, carregam consigo os “mil rostos do outro”. Mas não é só isso! Carregam igualmente distintas visões de mundo, ideias plurais e valores mesclados. Professam outras formas de credo, entoam hinos diversos, honram bandeiras de cores múltiplas. Se é verdade que “no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura residem sementes do Verbo” – como diz a Doutrina Social da Igreja – todo migrante, implícita ou explicitamente, é portador de um grande potencial de vívida evangelização em termos de experiências diferenciadas do sobrenatural.
No intercâmbio de semelhantes experiências, água e sede emergem de cada pessoa, de cada povo e de cada cultura. As estradas percorridas representam extensões geográficas que, para o sucesso ou para o fracasso, acabarão por convergir para esses poços ou oásis. Verdadeiros igarapés que formam a gigantesca bacia de um rio imaginário. Ademais, de encruzilhada em encruzilhada, tecem também uma rede de conhecimentos extremamente rica e colorida. Os obstáculos e superações de cada travessia, o intercâmbio das experiências plurais e diferenciadas costuram novos saberes. As informações sobre veredas e atalhos, riscos e armadilhas, passando por bocas ávidas e ouvidos atentos, vão ganhando terreno, espalhando-se com a velocidade da Internet. Sim, porque para todo o migrante, o telefone celular converteu-se num instrumento indispensável na bagagem. Rede de caminhos batidos, rede de entrepostos livres ou minados e rede de informações são uma e mesma coisa. E, neste caso, ao serem intercambiados, os saberes não se somam; se multiplicam. Esse tipo de aprendizado do caminho cresce de forma geométrica, não apenas aritmética.
Ocorre lembrar que essa forma de sabedoria, tecida pelos passos sinuosos e tortuosos do deserto, da floresta ou da fronteira, bem como pelas ondas do mar e a correnteza dos rios, permanece viva e dinâmica. Passa de geração em geração como um saber rico, essencial e fundamental. Com efeito, as experiências migratórias, adquiridas por bem ou por mal, se fundem e enriquecem simultaneamente a memória pessoal e coletiva. Tal fusão de conhecimentos, tecida com as “aventuras e desventuras” do passado, termina por fecundar o porvir, descortinando novas janelas para o futuro. Em outras palavras, a experiência retrospectiva da migração traz em sua bagagem um potencial prospectivo, denominada pelo filósofo alemão Hans-Georg Gadamer como “fusão de horizontes”. Potencial com coragem suficiente para se lançar por “mares nunca dantes navegados”, na expressão do poeta português Luís de Camões. Dizem os migrantes que, depois de ter arrancado as raízes pela primeira vez e partido, torna-se mais fácil efetuar novas repartidas. A operação mais dolorosa é cortar os laços com a terra que nos viu nascer e crescer.
A partir dos parágrafos precedentes, não será difícil concluir que cada parada, cada poço ou cada encontro, nesse terreno minado dos deslocamentos humanos de massa, serve de oportunidade para novo aprendizado. Certo, toda oportunidade arrasta a sombra de um oportunismo. E não faltam oportunistas, chamem-se eles “gatos, coiotes ou traficantes”, para roubar do migrante dólar a dólar, centavo a centavo. Mas é justamente a troca de saberes entre os viajantes que lhes vai blindando contra os perigos que rondam as estradas inóspitas. Nesse mesmo intercâmbio, através das experiências contadas e recontadas, o próprio migrante saberá como discernir uma rede de apoio de uma rede de exploração. Coisa que já é uma boa lição, pois às vezes ambas costumam trabalhar de maneira tão inextrincável, que a diferença é muito tênue e sutil. A má-fé sabe como imitar a boa-fé, mas facilmente se trai no trato direto e transparente.
De poço em poço, de encontro em encontro, a cada etapa do caminho, o migrante é igual e ao mesmo tempo diferente daquele que um dia deixou a própria pátria. Igual, porque sempre se reportará à tradição primordial de seu povo/nação; diferente, porque foi capaz de colher e ampliar seu saber com outras experiências dos desenraizados que a história colocou no seu caminho. Uns e outros, no exercício de uma recíproca fusão do passado poderão projetar a fusão de um futuro menos amargo.
Sobre o autor
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é assessor do SPM
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