Por Ricardo Rossetto
Muitas das grandes cidades do mundo foram construídas por imigrantes. São Paulo também. Lá em 1922, quando a capital paulista passava por profundas mudanças demográficas e econômicas com a chegada dos imigrantes europeus, Mário de Andrade escreveu em seu livro Paulicéia Desvairada que a cidade era “um resumo do mundo”. Àquela época mais de um terço da população era formada por negros – libertados da escravidão – e as autoridades brasileiras estavam eufóricas com a possibilidade de embranquecer o país a partir dessa vinda subsidiada de cidadãos do “Velho Mundo”.
Nos dias de hoje, esse grande influxo de estrangeiros continua, com milhares de pessoas vindo principalmente de países da África e Oriente Médio. Entretanto, com aquela tentativa, no começo do século XX, de estabelecer uma estética racial eugênica no país, cristalizou-se no imaginário popular um tipo de estrangeiro desejável: branco, europeu ou norte-americano e “civilizado”. Assim, homens, mulheres e crianças negras, indígenas e de ascendência árabe que chegam em terras brasileiras – em sua maioria destituídos de grandes quantidades de capital econômico – sofrem preconceito e segregação da sociedade, limitando a plena garantia dos seus direitos civis.
São Paulo, um dos estados mais conservadores da federação, não escapa a essa lógica. Na verdade, nas relações sociais do dia a dia, a replica e a reforça. Com o objetivo de reverter essa cultura que viola os direitos humanos desses imigrantes, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) criou, no dia 27 de maio de 2013, a Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMIg), um pequeno departamento responsável por articular políticas públicas migratórias que garantam aos latinos, africanos, árabes, asiáticos e europeus (entre tantos outros) o fim da criminalização da sua permanência em território brasileiro e a sua plena integração na sociedade paulistana transformando-os em sujeitos autodeterminados, dotados de direitos e donos do próprio destino.
Na última quarta-feira (06/05), a SMDHC realizou um evento na Sala Olido, no Centro da cidade, que reuniu autoridades e 250 imigrantes de 20 nacionalidades para fazer um balanço das ações já realizadas pela CPMig e apresentar os futuros planos de atuação da coordenadoria. Os imigrantes, por sua vez, apresentaram suas demandas e cobraram ações do poder público, especialmente em relação a cursos de português, documentação e acesso ao mercado de trabalho.
Resultados
Uma das marcas mais significativos da gestão do prefeito Fernando Haddad foi garantir aos imigrantes o direito de integrar os Conselhos Participativos Municipais, órgãos consultivos composto só por membros da sociedade civil e que existem nas 32 subprefeituras da cidade. Foram 20 imigrantes eleitos de 13 nacionalidades diferentes em 19 subprefeituras pelos seus compatriotas – eleitos em março de 2014 e empossados no mês seguinte – e que já participam do planejamento das políticas públicas do governo, sugerem ações e fiscalizam os gastos públicos.
“Em uma iniciativa inédita, demos aos imigrantes a legitimidade de votar e ser votado, de modo que os conselheiros eleitos requeiram a elaboração de determinadas políticas públicas que sejam benéficas para a sua comunidade”, disse o secretário-adjunto da SMDHC, Rogério Sottili, durante o evento.
Sottili falou ainda de outras ações fortalecidas nos últimos dois anos e que visam promover a integração e o bem-estar dos imigrantes, como a ampliação dos cursos de português (em uma parceria da prefeitura com o Senac), a capacitação de 750 profissionais da saúde para atendimento exclusivo a essas pessoas, a bancarização do estrangeiro – dando-lhe mais segurança – e a regularização de diversas feiras culturais na cidade, como a da rua Coimbra.
“Tudo isso são sinalizações simbólicas de acolhida. É muito importante para nós que essas pessoas se expressem e se afirmem culturalmente em São Paulo”, afirmou Sottili. Para ele, os imigrantes são muito importantes para o desenvolvimento da cidade e essas ações permitem que eles se sintam verdadeiramente “paulistanos”.
Desafios para o futuro
De acordo com o Sistema Nacional de Cadastramento e Registro da Polícia Federal, existem hoje na capital paulista cerca de 600 mil imigrantes de mais de 80 nacionalidades. Desse total, cerca de 185 mil estrangeiros estão indocumentados na cidade, informa a SMDHC.
A cidade nunca esteve suficientemente preparada para receber e acolher adequadamente milhares de estrangeiros, fossem eles imigrantes econômicos ou solicitantes de refúgio. Quando ondas ou crises migratórias irrompiam de tempos em tempos – como a anistia aos bolivianos em 2009 e a chegada dos desesperados haitianos em grande número desde 2012 – quem sempre atuou na linha de frente prestando assistência foram as entidades católicas como a Missão Paz e a Cáritas e instituições como a Cruz Vermelha e o ACNUR (Alto Comissariado da ONU para refugiados). Se não fossem por eles, os governos municipal e estadual teriam passado uma baita vergonha e enfrentado crises humanitárias sem precedentes.
Para tentar resolver esse problema, a Prefeitura de São Paulo, junto com a SMDHC e a Secretaria de Assistência Social, inaugurou em agosto do ano passado o chamado Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI) no bairro da Bela Vista. O local tem estrutura para oferecer orientação jurídica, apoio psicológico e qualificação profissional para estrangeiros, além de possuir 110 vagas temporárias de hospedagem.
“Queremos fortalecer o CRAI e ampliar o seu atendimento para outras regiões da cidade”, explicou o coordenador do CPMig, Paulo Illes.
Mas o número de vagas de hospedagem ainda é pequeno. Mesmo somadas as 110 camas do CRAI com outras 120 da Casa do Migrante (gerida pela Missão Paz) e a possibilidade – refutada por muitos imigrantes – de procurar os albergues para moradores de rua, a oferta fica muito aquém da demanda. Em toda a região central da cidade é possível ver centenas de imigrantes se espremendo em cortiços imundos e pouco seguros, com aluguéis que lhes fogem da realidade.
Outra enorme dor de cabeça para os imigrantes é com a documentação. No Brasil, a situação jurídica de todos os estrangeiros é definida pelo Estatuto do Estrangeiro, uma lei de 1980 que é um entulho autoritário defasado historicamente. Devido a ela, até hoje a concessão dos vistos é condicionada aos interesses nacionais – aquela ideia dita anteriormente do imigrante desejável – e não é difícil encontrar solicitantes de refúgio da África ou Ásia que esperam a liberação do seu Registro Nacional do Estrangeiro (RNE) há mais de um ano.
Para combater essa letargia, a coordenadoria propõe que haja uma interlocução maior com o Ministério da Justiça, de modo que a pasta possa conceder vistos suficientes para todos. “E também multiplicar os Centros de Atendimento ao Trabalhador (CAT), para que todos consigam ter sua carteira de trabalho e se estabeleçam em uma profissão de uma forma digna e legal”, completou Illes.
Aos poucos, e ainda com muitas dificuldades – sejam elas financeiras ou mesmo inerentes à burocracia do Estado – a cidade de São Paulo se organiza para gerir as suas diferenças. A disposição dos gestores públicos em ouvir as demandas dos imigrantes é louvável uma vez que não se constrói política pública eficaz sem a participação social. Mas o caminho para se estabelecer uma equidade de direitos entre brasileiros e estrangeiros ainda é longo e deve ser trilhado por ambos – e prefiro não acreditar que seja uma mera utopia. O direito de imigrar é o primo pobre dos direitos humanos. Paradoxalmente, o Brasil não tem consciência dessa importância. Ao mesmo tempo que cobramos a efetivação desse direito em outros países, não o cumprimos aqui.