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quinta-feira, março 28, 2024

Entenda a guerra de ações civis e judiciais sobre os venezuelanos em Roraima

Episódios deixaram evidentes mais uma vez a falta de diálogo entre as esferas de governo sobre a questão migratória e a situação frágil dos migrantes nesse contexto

Por Rodrigo Passoni
Em São Paulo (SP)

Em menos de uma semana, pelo menos três acontecimentos em Roraima transformaram a questão dos venezuelanos no Brasil em uma guerra de ações civis e judiciais que chegaram a levar ao fechamento temporário da fronteira com a Venezuela.

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Ao mesmo tempo, esses casos mostraram mais uma vez o caráter de incerteza vivido pelos venezuelanos no Brasil, enquanto o governo federal e as demais esferas da administração pública não se entendem sobre a condução da política migratória brasileira.

Marco da fronteira entre Brasil e Venezuela, entre Pacaraima e Santa Elena de Uairén.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

Em tópicos, entenda o que aconteceu nos últimos dias:

1 – O decreto estadual

O governo de Roraima alega estar sobrecarregado pelo fluxo migratório e tenta restringir a entrada dos venezuelanos no Estado. Em abril passado, entrou com uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) pedindo o fechamento da fronteira do Estado com o país vizinho – o caso ficou sob responsabilidade da ministra Rosa Weber e foi alvo de pelo menos duas audiências de conciliação entre os governos estadual e federal.

Nesse contexto, a governadora Suely Campos (PP) baixou o Decreto Estadual 25.681-E, assinado na última quarta-feira (1º). Ele restringiu o atendimento aos venezuelanos nos sistemas públicos de saúde e educação – apenas mediante apresentação de passaporte válido, o que na prática exclui o acesso dos migrantes a esses serviço. Além disso, o decreto determinou a atuação das forças de segurança pública para deportação dos migrantes sem documentos.

A medida foi questionada logo em seguida por órgãos jurídicos federais – Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal, que consideraram o decreto inconstitucional e discriminatório, apontando que ele ia contra os termos dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

 

2. O fechamento temporário da fronteira

A ação do MPF e DPU foi distribuída ao juízo da 1ª Vara Federal de Roraima. E no último dia 5 de agosto, o juiz Hélder Girão Barreto determinou o fim da restrição no atendimento dos migrantes nos serviços públicos, mas também a suspensão da admissão e ingresso no Brasil de migrantes venezuelanos.

A suspensão do ingresso de venezuelanos foi fundamentada pelo juiz no pacto federativo, em que as atribuições entre os entes federativos devem ser compartilhadas e não simplesmente impostas da União para os outros entes federativos sem respeitar o princípio da autonomia.

A decisão chegou a ser comemorada pela governadora Suely Campos, que viu nela a expressão “dos anseios da população” do Estado. “É uma decisão que respeita o sentimento de todo um Estado. Somos nós que estamos lidando com as consequências de uma tragédia social nas nossas fronteiras”.

O próprio juiz, em sua decisão, destaca que o decreto da governadora poderia ter um viés aparentemente eleitoreiro, já que Roraima assumiu ainda atribuições que não são de sua alçada, apesar de concordar com o governo estadual que os serviços públicos, principalmente o sistema de saúde, estão sobrecarregados pelo fluxo de migrantes.

Entre os dias 6 e 7 de agosto, a fronteira Brasil-Venezuela, entre as cidades de Pacaraima e Santa Elena de Uairém chegou a ficar fechada por cerca de 15 horas.

3. A suspensão do fechamento e do decreto

Já na última terça-feira (07), a ministra Rosa Weber, que ficou com a ação levada ao Supremo pelo governo de Roraima, proibiu o fechamento da fronteira com a Venezuela.

Assim como a DPU e MPF sobre o decreto da governadora de Roraima, Rosa considerou o pedido de fechamento da fronteira contrário a fundamentos da Constituição Federal, de leis brasileiras e de tratados ratificados pelo Brasil.

“A utilização indiscriminada de medidas voltadas a restringir migrações irregulares pode acabar privando indivíduos não apenas do acesso ao território, mas do acesso ao próprio procedimento de obtenção de refúgio no Estado de destino, o que poderia, a depender da situação, configurar, além de descumprimento do dever de proteção assumido internacionalmente, ofensa à cláusula constitucional asseguradora do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF)”, apontou a magistrada.

Já o decreto estadual que restringia o acesso dos migrantes aos serviços públicos foi parcialmente revertida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, também no dia 7 de agosto. De acordo com o i. Desembargador Relator Kassio Marques, os pedidos formulados na ação civil pública pela DPU e MPF visam “ampliar o acesso dos imigrantes venezuelanos à vasta gama de serviços públicos brasileiros, o que, por óbvio, não é compatível com a ideia de lhe impedir até mesmo o ingresso no território nacional”, conforme pretendeu o juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Roraima.

Mãe e filho cruzam ponte que liga a Venezuela a Cucuta, na Colômbia.
Crédito: Boris Heger/ACNUR

Segundo nota da DPU, “diante disso, encontra-se normalizada a entrada de migrantes venezuelanos no território nacional e, razão dos pedidos da ação civil pública proposta pela Defensoria Pública da União e pelo Ministério Público Federal, estão suspensos os efeitos dos arts. 2º, 3º, parágrafo único, e 5º do Decreto Estadual n. 25.681-E naquilo que implique discriminação negativa em relação aos migrantes venezuelanos, ou sua deportação e expulsão”.

Por uma real coordenação entre governos

Para a advogada Carla Mustafa, membro da Comissão de Relações Internacionais da OAB/SP, os episódios da última semana mostram uma vulnerabilidade dupla – dos migrantes e da política migratória nacional.

“Sabemos da situação de vulnerabilidade da região e que os atritos entre a população local e os migrantes são frequentes. O problema é mais uma vez alegar questões de segurança em detrimento de questões humanitárias e a falta de articulação entre as esferas de poder (União, Estados e Municípios) para acolher de maneira digna os migrantes”.

Em reportagem publicada em abril, especialistas consultados pelo MigraMundo indicaram outras saídas para administrar o fluxo de migrantes em Roraima. A principal delas é que somente uma real coordenação entre os governos e a combinação de políticas públicas de curto, médio e longo prazo é capaz de responder ao tema com qualidade – algo que ainda não vem acontecendo, apesar de medidas como a interiorização dos venezuelanos.

Situação tensa

Em meio ao vaivém judicial sobre a fronteira em Roraima e as disputas em torno da política migratória nacional, os venezuelanos que vivem no Estado vem sofrendo com ofensas nas ruas.

Em Boa Vista, os migrantes são orientados a se resguardarem por medida de segurança, segundo integrantes de ONGs na cidade que falaram ao MigraMundo na condição de anonimato. As ONGs, inclusive, também vem sofrendo os efeitos da tensão cada vez maior no Estado.

Um exemplo foi o caso envolvendo o SJMR (Serviço Jesuíta para Migrantes e Refugiados). O motivo foi um vídeo no qual um dos integrantes da entidade orienta os venezuelanos a como proceder em casos de reintegração de posse de terrenos abandonados que foram ocupados pelos migrantes.

O vídeo foi divulgado nas redes sociais como uma instrução para que os venezuelanos invadissem propriedades particulares quaisquer e gerou manifestações ofensivas contra a ONG. Um de seus integrantes chegou a ser ameaçado de morte.

Em nota conjunta, 40 instituições de todo o Brasil e do exterior repudiaram as ameaças ao trabalho do SJMR em Roraima e do representante que sofreu as ameaças. Também reafirmou apoio e continuidade do trabalho junto aos migrantes venezuelanos.

Esse quadro de tensão em Roraima tende a crescer a com a aproximação das eleições – e a persistência da crise na Venezuela e do fluxo de migrantes em direção ao Estado, que deve ser um dos assuntos principais na campanha.

Venezuelanos no Brasil e em diáspora

Estimativas apontam entre 40 mil e 60 mil o total de venezuelanos que entraram no Brasil. Levantamento feito em maio pelo Prefeitura de Boa Vista indicou, na época, 25 mil venezuelanos na cidade.

O ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, chegou a anunciar que mais da metade (54%) dos 128 mil venezuelanos que entraram no Brasil nos últimos 18 meses já haviam saído do país. Esses números, no entanto, são vistos com desconfiança por especialistas.

No cenário global, dados do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) indicam que pelo menos 1 milhão de venezuelanos deixaram a Venezuela entre 2014 e 2017. O principal destino é a vizinha Colômbia, que já recebeu pelo menos 500 mil.

Com informações de DPU, STF, Folha de Boa Vista e Nexo

1 COMENTÁRIO

  1. […] O principal ponto de entrada dos venezuelanos no Brasil é a fronteira com o Estado de Roraima, entre as cidades de Santa Elena de Uairén (Venezuela) e Pacaraima (Brasil). A maioria segue para Boa Vista, cerca de 200 km ao sul e onde está a maior parte dessa migração – dados de junho indicam cerca de pelo menos 25 mil pessoas. Embora sejam motivo de uma série de ações humanitárias organizadas por entidades não governamentais do Brasil e internacionais, os venezuelanos são transformados em “bodes expiatórios”  – vistos por parte da sociedade local e pelo poder público como responsáveis pelos problemas em serviços como saúde e educação, embora eles sejam anteriores à migração. Esse discurso, reforçado por uma cobertura negativa que o fenômeno recebe da maioria dos meios de comunicação, cria um terreno fértil para ações como as de agosto deste ano, quando a população de Pacaraima expulsou e queimou os pertences de um grupo de venezuelanos que estavam acampados nas ruas. Tal situação também já levou o governo de Roraima a pedir o fechamento da fronteira do Estado com a Venezuela, o que é considerado inconstitucional e viola acordos internacionais firmados pelo Brasil e já foi negado pelo Supremo Tribunal Federal. […]

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