Este é a primeira parte do Especial Anônimas, uma série de cinco perfis de mulheres refugiadas que vivem em São Paulo. Os textos foram feitos pela jornalista Lu Sudré, mais nova colaboradora do MigraMundo, para o livro “Anônimas”, publicado por ela como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Jornalismo da PUC-SP, em 2015. As histórias e imagens foram cedidas com exclusividade para o MigraMundo.
Nas próximas semanas a série vai trazer outras histórias de mulheres refugiadas que lutam para reconstruir as próprias vidas longe da terra natal. Os nomes das personagens são fictícios, para preservar a identidade de cada uma delas, ao mesmo tempo em que é possível abrir um pouco a mais a mente sobre as migrações a partir de seus relatos, dramas e superações.
Samira*: O amor por um país e o ódio por um ditador
Por Lu Sudré (texto e fotos)
Quem olha de longe, pelo portão, não tem a visão completa da cena e pode até achar que ela está impaciente, se movimentando de um lado para o outro. Mas, na verdade, está balançando um carrinho de neném. Arriscou parar algumas vezes, mas quando acontecia, em segundos o choramingo recomeçava. Com o balançar, não dava conta de segurar também as compras de supermercado. Falou algo para a pequena criatura em árabe e apesar de ninguém por ali entender o que foi dito, o tom maternal e carinhoso de sua voz foi decifrável em qualquer língua.
Espera chamarem seu nome na parte externa da Cáritas. Quer ajuda para saber como proceder para pedir permanência no país por filho brasileiro. Larga as sacolas entre as cadeiras de plásticos vermelhas – primeiro lugar que muitos refugiados descansam quando chegam por aqui. Sorri e diz bom dia para todos que entram, desde os funcionários aos refugiados africanos.
Sua roupa é diferente das outras mulheres do ambiente. Samira usa o hijab, vestimenta muçulmana, conhecida como véu pelos brasileiros. Não é possível ver seu cabelo, apenas sua pele branca e seus olhos castanhos, puxados na lateral e contornados com lápis de olho preto. A mulher, que está no país há um ano e quatro meses, já aprendeu bem o português. Entende e fala bem, mesmo com seu sotaque forte.
Ela e sua família estão entre os cerca de 2.000 sírios reconhecidos como refugiados que chegaram ao Brasil no período entre 2011 e segundo semestre de 2015, de acordo com dados do Conare. Quando começa a falar, faz a seguinte pergunta, quase automática, como um protocolo de apresentação: “Síria tem muita guerra, você sabe? Saí da guerra”.
Há mais de 5 anos o mundo está atento às atrocidades que ocorrem na Síria. Durante a insurreição da Primavera Árabe, em 2011, período em que populações de países árabes como Egito, Líbia e Tunísia saíram às ruas para protestar contra os governos ditatoriais de seus países, o povo sírio foi protagonista de um levante contra o regime de Bashar Al-Assad. Sucessor de seu pai, Hafez Al-Assad, que governou a Síria por 30 anos até sua morte, Assad assumiu o governo nos anos 2000.
Pacífico nos primeiros meses, o levante sírio foi duramente reprimido pelos militares do governo. Muitos passaram a recorrer à luta armada, diante das milhares de mortes de civis e da repressão ditatorial de Assad. Bombardeios, ataques aéreos, torturas e assassinatos. A violência das forças de segurança levou a uma militarização gradual do conflito, que se intensificou ainda mais com o avanço da atuação do grupo extremista Daesh (que se autoproclamo Estado Islâmico), que cresce gradualmente no Oriente Médio a partir do recrutamento de jovens muçulmanos.
Temido mundialmente pela violência de seus métodos, o Daesh teve sua ascensão entre 2013 e 2014. Estabelecia relações com a organização terrorista Al-Qaeda, no Iraque, mas no início de 2015, os dois grupos romperam laços. Em junho do mesmo ano, os extremistas declararam um califado – forma islâmica monárquica de governo – e mudaram de nome para o Estado Islâmico (EI ou Isis, na sigla em inglês). De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (OSDH), desde que o país entrou em guerra civil, com rebeldes lutando contra as tropas governamentais e a ascensão de grupos extremistas islâmicos, o conflito já deixou mais de 240 mil mortos, incluindo mulheres e crianças.
A intervenção de forças militares da França, Rússia e Estados Unidos tornaram mais grave a situação. A perseguição destes países ao Estado Islâmico também deixa vítimas, igualmente à repressão ditatorial de Assad e aos atentados do Daesh. Em dezembro de 2015, a Agência France Presse, reconhecida internacionalmente, noticiou que as grandes potências em questão testavam armas bélicas no território sírio. A guerra contra o terrorismo, terrorismo fomentado pelos mesmos países que bombardeiam o país, é algo sem precedentes. Samira é muçulmana, mas não concorda com os princípios do Daesh, como o grupo é conhecido em árabe.
“Eles querem matar. São Daesh, não muçulmanos. Eles matam mulheres como eu. Matam crianças. Matam mulheres que não rezam, homens que não fazem jejum”. Intrigada, abre o navegador de pesquisas de internet no celular e mostra imagens do grupo extremista armado, pra ficar bem clara sua diferenciação em relação a eles.
Se recusa a falar sobre Bashar Al Assad. Fica em silêncio. Não tem confiança para falar sobre os traumas que ele lhe causou. Diz, repetidamente, que a luta do povo sírio é por liberdade e é isso que todo o mundo deve saber. Morava em Daraa, cidade do sudoeste da Síria, próxima das fronteiras com a Jordânia, Líbano e Israel. As primeiras grandes manifestações antigoverno aconteceram em Damasco, capital da Síria, Aleppo e no sul da cidade de Samira, onde foram registrados os primeiros confrontos violentos entre manifestantes e milícias pró-governo.
“Não tem mais nada na Síria. Não tem trabalho, não tem casa, não tem paz. O povo está sofrendo”, diz com pesar. O sotaque árabe pesa as palavras ainda mais, que às vezes precisam ser repetidas em português para serem melhor compreendidas. Daraa se tornou uma cidade sitiada, em que as forças do governo confiscou suprimentos vitais, como água e eletricidade.
Todos os dias Samira ia até a cidade de Damasco de carro com seu marido. Ele trabalhava como designer gráfico. Ela, professora de inglês e de computação para crianças. O casal tem duas filhas, uma de cinco anos e uma bebê que nasceu aqui no Brasil, em junho de 2015. Lá, moravam o casal e sua filha mais velha, mas o resto da família, como seus pais, ambos com 80 anos, moram em Damasco. A família, outrora tão perto, agora está mais distante do que nunca.
Samira, sua filha e seu marido, fazem parte dos milhares de pessoas que perderam suas casas por conta da guerra, considerada pela ONU a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial. “Estávamos dentro da casa quando ela foi bombardeada. Era umas oito horas da noite. A bomba caiu no quintal, mas a casa foi totalmente destruída. Fugimos para a rua”. Cômodo por cômodo, a casa desmoronou.
Milhões de pessoas deslocaram-se forçadamente do território Sírio para os países vizinhos. Segundo o Acnur, nos últimos quatro anos, cerca de 1.9 milhão de sírios chegaram à Turquia. No Líbano foram 1,1 milhão, e na Jordânia, 629,6 mil. Junto com seu marido e sua filha, que na época tinha dois anos, se refugiou na Jordânia. Passou um ano e oito meses no campo de Zaatari, a menos de vinte quilômetros da fronteira com a Síria.
De acordo com a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), mais de cem mil sírios vivem neste local e as situações são precárias, o que Samira confirma enquanto põe sua filha recém-nascida para dormir em seus braços. “Tínhamos muito pouca comida e nenhum dinheiro. Os sírios não podem trabalhar na Jordânia. Não pode comprar uma casa, não pode fazer nada. Os policiais dizem: ‘Você é síria? Então fora, não pode trabalhar’. Os países árabes não falam ‘‘sejam bem-vindos’’ para os refugiados, só o Brasil.”
A família de Samira continua na Síria. Suas três irmãs e seu irmão estão casados e moram em Damasco, próximo aos pais. Sempre que pode, manda foto da nova integrante da família, a primeira brasileira, para que todos acompanhem seu desenvolvimento. Ela sabe que eles não estão bem. Mesmo com o perigo eminente, não querem sair do país. Seus pais, já de idade, é quem mais preocupa Samira. Eles não aguentariam viver no campo de refugiados e passar por todas as dificuldades até chegarem a um território seguro. Dizem que enquanto tiverem uma casa, não sairão. Claro que se negar a sair da Síria não é apenas sobre a casa, e sim abrir mão de uma vida inteira, algo muito mais complexo do que apenas um imóvel.
Em Damasco, a eletricidade é fornecida duas horas por dia. O Daesh bombardeia as centrais de energia e quando não, o governo Assad corta o fornecimento. Samira é interrompida enquanto fala sobre a felicidade que seria ter seus pais por perto. Mas não é interrompida por alguém ou por algum barulho externo, e sim pela sua própria voz embargada. Não consegue terminar suas frases, não conjuga os verbos. O choro entalado é mais potente do que sua vontade de falar. “O Brasil é bom, mas minha família é tudo. Minha família. Minha casa. Meu país. Eu gosto de tudo. Eu não vou conseguir falar. Todo mundo amor seu país. Eu amor Síria!”
Precisa de alguns segundos para se recompor. Pede para sua filha Maria que busque um lenço. Seca suas lágrimas, compostas por uma mistura entre saudade e sofrimento. “Eu amo a Síria, muito, mas não vou voltar. Odeio Bashar Al Assad. Odeio tudo que ele fez com a Síria. Se ele estiver fora da Síria, eu volto.”
Enquanto estava em Zaatari, seu marido decidiu solicitar refúgio no Brasil. A primeira coisa que fez foi ir até a Mesquita do Brás, pedir ajuda à comunidade muçulmana. Foi um grande alívio encontrar outras pessoas que falavam árabe. Em cinco dias conseguiu emprego com uma libanesa que mora no Brasil há dez anos. Depois de um mês, Samira e sua filha também vieram. Chegaram dia 20 de fevereiro, em 2014.
Atualmente moram no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo. Sobrevivem dos trabalhos do homem da casa como design de etiquetas de pequenas fábricas de roupa. No tempo livre, produz flyers e cartões de visita como freelancer, material que Maria mostra com orgulho. Moram de aluguel em um apartamento antigo, com dois quartos, sala, banheiro e cozinha pequena. São poucos móveis. Na sala, uma rack com televisão, uma mesa de quatro lugares e um sofá.
Os brinquedos de Maria, espalhados pela casa, passam a fazer parte da decoração. A pequena senta na cadeira enquanto a mãe fica na cozinha e o cheiro de café se espalha pelo ambiente. Logo as xícaras estão em cima da mesa e dentro delas só resta o pó de café que não fora coado, como é feito na Síria. Forte e sem açúcar.
O dia a dia de Samira, com 34 anos, se resume a cuidar da casa e de suas filhas. Uma vez por semana ela e sua família vão à Mesquita. Sente saudades das aulas de português que frequentava no Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado), a quem é muito grata por ter aprendido a língua, maior dificuldade quando chegou aqui.
Engravidou após quatro meses no Brasil. Deu a luz no Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouveia, na Rua Juventus, também no bairro da Mooca. Tudo correu bem, tirando o fato que as enfermeiras não sabiam falar inglês, o que dificultou a comunicação. Mas Samira não reclama. Sabe de outras mulheres sírias que não sabem falar inglês, o que piora muito a situação de refúgio.
Pelo menos durante um ano não poderá procurar emprego para cuidar da filha. É difícil achar vaga em creche pública e já teve sorte suficiente para encontrar uma vaga para Maria em uma escola municipal. Tem planos de procurar emprego como professora. Quer ensinar inglês para crianças árabes, assim como o português que sabe. Infelizmente, não poderá pedir a renovação de seu diploma porque ele se perdeu quando a bomba atingiu sua casa.
Além do Adus, participa de ações da organização não-governamental Eu Conheço Meus Direitos (I Know My Rights – INMR), que trabalha especificamente com crianças refugiadas. Troca expressões em árabes com Maria, pede para que ela se comporte enquanto sua irmã está dormindo. A menina, que acabara de perder um dente de leite mais cedo naquela manhã, aprendeu a fazer colares e pulseiras de miçangas na escola. Vai fazer um estoque de bijuterias para irmã brasileira, faz questão de enfatizar, usar quando crescer.
Em casa, Samira não usa a jihab. Foi um choque quando chegou ao país e viu a diferença de comportamento e vestimentas das mulheres ocidentais com as mulheres do oriente, mas já se acostumou. Explica que principalmente durante o período menstrual as muçulmanas devem usá-lo. “Se não usamos os homens ficam olhando. Isto não é uma coisa boa para meu Deus. Eu gosto de usar. Mas não tenho nada contra quem não usa. Minha professora do Adus, por exemplo, é evangélica e somos amigas até hoje.”
Além da visita semanal à Mesquita, a família tem também um passeio obrigatório: Todos os domingos vão à feira. Maria ama maracujá, mamão e outras frutas típicas de países tropicais. Mas a comida brasileira preferida é o pão de queijo e o brigadeiro. “Muito delícia!”, diz a menina, animada. Samira tem o costume de cozinhar comida síria. No Brás tem muitos restaurantes libaneses e sírios onde ela pode comprar os ingredientes. “De vez em quando vamos ao centro. Aí comemos Shawarma, minha comida preferida. É um pão sírio com carne e legumes. Eu amo.”
Apesar da situação de solicitante de refúgio, Samira e Maria demonstram carinho pelo Brasil. A menina assiste desenhos em português e Samira tenta acompanhar a novela à noite, enquanto o marido não chega. O hobby preferido de mãe e filha é escutar músicas brasileiras. “Mas são músicas antigas”, explica Samira. Antes da mãe terminar a frase, Maria já havia começado a dar uma palhinha de sua música preferida. As vozes das duas se juntam. Erram o ritmo, erram a letra, mas aos poucos, a melodia sai. “Não posso ficar nem mais um minuto com você. Sinto muito amor, mas não pode ser”. A continuação da música dos Demônios da Garoa, que seria “Moro em Jaçanã”, é substituída por uma crise de riso das duas. E um pouco de vergonha também.
Pela televisão, conheceram as praias de Santa Catarina e do Rio de Janeiro. O sonho de Samira é poder viajar para esses dois lugares. Já foram para Santos e para o parque que Maria chama de Parapuera (Ibirapuera). Conversavam descontraídas, fazendo planos e pensando em lugares para conhecer, quando barulhos de fogos de artifício começaram a estourar, prática comum em São Paulo, principalmente em dia de jogo, como era aquele sábado.
Não seria nada demais, caso não fosse a reação de Maria. Instantaneamente, se agachou no chão. Suas pequenas mãos tamparam seus ouvidos. Samira a chamou. No segundo “Maria!”, levantou-se e foi até o colo da mãe. “Maria tem medo do barulho dos fogos. É igual ao da bomba, é o mesmo som. Ela só tinha dois anos quando saímos da Síria”, conta a mãe, enquanto afaga e acalma a filha.
A cena é de cortar o coração. Samira diz que vai procurar ajuda psicológica para a filha, mas que ela está bem na escola, só não se acostumou com os barulhos dos fogos por ainda ser pequena para entender que não são bombas. Para esta família, assim como tantas outras, a Síria pode estar longe, mas, ao mesmo tempo, está muito perto. “Eu tenho fé que a guerra na Síria vai cessar. Eu não sei quando, é imprevisível. Os outros países não ajudam. Israel, por exemplo, gosta de Bashar Al Assad. Sinto que perco alguém da minha família toda vez que um sírio morre.”
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