Por Júlia Dolce Ribeiro (texto e foto)
As crianças do Espaço MAIS Vida ficam sob a competência do Estado até os 17 anos e 364 dias de vida, depois disso estão sozinhas por lei. É difícil reconhecer que diferentemente das crianças que vivem em outros abrigos visitados para este trabalho, estas estão completamente desprovidas de figura adulta. Isso porque há um imaginário social muito forte em que crianças são sempre acompanhadas de uma figura familiar responsável. Mas desta vez não há mãe, pai, tio, tia, avô ou avó ao redor; são somente crianças, algumas de poucos meses de idade, outras às vésperas da maioridade, vivendo juntas apesar de terem pouco em comum a não ser a guarda da Vara da Infância e da Juventude e do Conselho Tutelar.
Ao caminhar pelas três casas que formam o abrigo, separando os menores de idade por faixa etária, foi possível notar a semelhança do lugar com um ambiente escolar. O próprio prédio, localizado próximo à estação de metrô Guilhermina-Esperança, na zona leste paulistana, foi construído originalmente como um projeto de creche pela prefeitura. Com entradas de círculos coloridos recortados das paredes, parquinhos de plástico e caixas de doações – com roupas amassadas e brinquedos – espalhadas por vários cantos, era difícil manter na cabeça que as crianças chamavam aquele lugar de lar e que não seriam buscadas por ninguém no final da tarde.
A Casa III, em reforma, encontrava-se vazia no momento da visita. Na Casa II, crianças corriam e brincavam na terra da área externa como se estivessem em horário cronometrado de recreio. Um menino que aparentava ter cinco anos e microcefalia cavava um buraco no jardim, curioso. Na parte interna, cerca de cinco bebês eram entretidos em roda por desenhos animados na televisão, enquanto uma funcionária atenta cuidava deles. Atrás de uma porta, aproximadamente dez berços aglomeravam-se em um quarto pequeno. Após todas as histórias ouvidas até então, os pequenos berços reunidos materializaram os maus tratos, violência e abandono das crianças e adolescentes sem nenhuma poesia, levantando indignação e questionamentos sobre como seres tão frágeis cresceriam sozinhos e juntos, aos cuidados de alguns poucos funcionários e educadores.
A Casa I, por sua vez, respondia algumas dessas perguntas, com sua dezena de adolescentes esticados em um grande sofá, assistindo a um filme de terror bastante forte e conversando em tom de voz alto. A grande porta de vidro da sala dava de frente para o portão entreaberto e a rua, sem saída e tranquila. O clima era de total descontração mesmo com as assistentes sociais percorrendo o aposento em intervalos de tempo. Parte daqueles jovens, que somavam a rebeldia própria da adolescência à revolta pela injustiça de sua situação, chegara ao abrigo quando pequenos e já haviam vivido nas demais casas, esperando os anos passarem enquanto entendiam que a possibilidade de uma adoção diminuía a cada centímetro que cresciam e idade que completavam.
‘’Todos podem ser adotados, mas é bem mais difícil adotarem os adolescentes. Às vezes já é bem difícil adotarem crianças com 7 ou 8 anos até, porque as pessoas têm a expectativa de adotar bebês, mas não sabem que na verdade esse é o perfil mais difícil de ser adotado, que exige mais. A gente sabe também que a maior parte das crianças para adoção são negras, e as pessoas querem muitas vezes um bebezinho branco. Acontece bastante, é uma fantasia dos pais de adoção. Antes eu ficava na Casa II, a rotatividade lá é muito maior, tem criança que vem, fica quatro ou cinco meses e vai embora, ou é adotada ou volta para a família, que pode ter se recuperado e reconquistado a guarda. Daí as crianças que ficam fazem comparações, né”, contou Igor Lima, psicólogo do abrigo que me guiou pelos aposentos.
O psicólogo explicou ainda que o processo de adoção é lento e envolve várias etapas de aproximação da nova família com a criança, após a família participar de um curso obrigatório de preparação psico-social e descrever o “perfil” da criança desejada. “Mesmo após a adoção há um período de adaptação em que a gente acompanha a família para ver como está, durante seis meses. Pode ser que a criança fale que não quer ficar na família, e ela tem esse direito e prioridade. Mas tem casos também da família querer devolver a criança, infelizmente acontece. Eles acham que estavam preparados e não estavam. Nos casos em que a criança já foi recusada pela família e é recusada de novo por outra família é muito forte para elas, por isso o processo é lento”.
Segundo Igor, as crianças são acolhidas pelo MAIS Vida por diferentes razões. “Tem de tudo: dificuldade financeira, dependência química dos pais, maus tratos, abuso sexual. Tentamos fazer um acompanhamento do desenvolvimento delas, com psicólogos, assistentes sociais e educadores. Eu já trabalhei em outro abrigo e era um ambiente ruim e pesado; aqui não, eu percebo que elas têm acesso a passeios, vão em museus e cinemas. Mas para elas o ambiente ainda é pesado, apesar de tudo isso, porque criança quer ficar com a família’’, opinou.
Uma parte dos adolescentes da Casa I, no entanto, foi abrigada por um motivo em comum e destoava dos demais com uma timidez relutante. São alguns dos adolescentes africanos que chegaram desacompanhados a São Paulo nos últimos meses. Sob tutela do juiz responsável pelo setor anexo da Vara da Infância e Juventude que cuida de crianças refugiadas e vítimas de tráfico, os oito adolescentes estrangeiros do MAIS Vida, na sua maioria angolanos, aguardam a decisão do CONARE sobre a solicitação de refúgio feita pelo juiz. Enquanto são matriculados em escolas públicas, procuram empregos de aprendiz e tentam se adaptar à realidade nova.
Enos
“Já faz certo tempo que especialmente a Casa I tem se tornado referência em receber refugiados, cerca de quatro ou cinco anos”, contou Igor, no início da visita, enquanto, para meu desconforto, acordava alguns dos adolescentes refugiados de sua sesta para conversarem comigo. Um garoto sonolento com cabelos raspados e expressão preocupada veio em minha direção, saindo do quarto mais próximo e esfregando os olhos. Ele acenou com a cabeça, acanhado, e apontou para a comprida mesa de refeições que ficava na própria sala de estar, dizendo, com o sotaque chiado que já estava se tornando familiar, que poderíamos nos sentar lá.
Os demais adolescentes brasileiros que haviam me medido com fundamentado desdém quando cheguei ao abrigo, perderam o interesse rapidamente, voltando a atenção para o filme que esporadicamente causava gritos de susto. O adolescente angolano, que se apresentou como Enos, tinha um olhar triste e distante quando me contou que está no Brasil há cinco meses, tendo vindo para o país com a irmã mais velha, que também vive no abrigo. “Fiquei em outro abrigo por dois meses e vim pra cá. Tô gostando mesmo. Vou para a escola e tô tentando procurar um emprego também. Tô no sétimo ano da escola e queria trabalhar com qualquer coisa mesmo, como ser uma pessoa que vende as coisas. Qualquer emprego que encontrar, vou pegar”, disse.
Para minha surpresa, o menino me revelou que tinha apenas 13 anos, o que contrastava tanto com sua fisionomia adulta e maturidade, quanto com os dados sobre adolescentes refugiados desacompanhados. No Brasil, a maioria dessa população chega com idades mais próximas à maioridade.
“Chegamos de avião, estávamos fugindo das pessoas que queriam matar a gente. Eram nossos pais adotivos e nós fugimos deles porque eles estavam fazendo sofrer a gente muito, batiam em nós, essas coisas. A gente morava com eles desde que éramos pequenininhos mesmo, não conhecemos nossa mãe e nosso pai. Viemos com uma tia, ela que teve a ideia, mas ela deixou a gente no aeroporto aqui, disse que ia comprar uma coisa, mas abandonou a gente. Eu não sabia nada do Brasil, só tinha ouvido falar de futebol, mas imaginava que era um país legal, que todo mundo tem o mesmo direito, né”.
Enos gosta de viver no abrigo, onde divide o quarto com mais quatro brasileiros. Ele estuda de manhã em um colégio público próximo à estação Patriarca do metrô. O lugar que mais gosta em São Paulo é a Praça da República. “Acho que o adolescente não pode viver fora do abrigo mesmo, tem que nos encaminhar para mostrarem pra gente como nos ajudar. Quando a gente chegou foi difícil mesmo, a gente ficou na rua por uma semana, até que procuramos uma instituição que chama Cáritas, e o juiz da Penha mandou a gente aqui. Na Cáritas explicaram tudo. Foi difícil mesmo ficar sozinho sem conhecer nada, mas como a gente estamos aqui foi legal, agora tô me acostumando mesmo com as coisas daqui. Aqui você volta da escola, come e pode dar uma volta ou visitar um amigo se quiser”, continuou.
Para Enos, a comida brasileira e os próprios brasileiros são bem diferentes do que estava acostumado. Ele sente falta da comida angolana e dos amigos que ficaram no país de origem, com quem ainda conversa através das redes sociais. Um pouco mais descontraído após alguns minutos de entrevista, o menino contou que sonha, ele próprio, em ser juiz. “Um juiz supremo mesmo. Eu já queria quando eu tava mesmo na Angola, porque muitas pessoas estavam falando do Joaquim Barbosa daqui. Negro. Por isso eu também queria ser como o Joaquim Barbosa”, confessou, com orgulho.
O menino, que já havia sido entrevistado por outro jornalista no abrigo, admitiu que tem vontade de contar para todos os brasileiros como a Angola “é legal”. Envolvido com suas ideias e falando com rapidez, ele explicou que se incomoda com a visão que as pessoas têm da África. “Isso que tá acontecendo na Angola é um pouco difícil, por isso que a gente tá vindo pra cá no Brasil mesmo, mas meu país é muito legal. As pessoas acham que a África é como um só país e que as pessoas não tem possibilidade e… como chama? Valor. Falam isso pra mim. Eu não fico bravo, eles compreendem agora. Mas tem preconceito porque eu sou negro, os negros sofrem preconceito no Brasil, racismo mesmo, já percebi. Quando a gente morava na rua aqui, a polícia chegava e falava que iam fazer a gente voltar para o nosso país, ficavam ameaçando”, denunciou Enos, balançando a cabeça em um misto de indignação e conformismo.
Naomi
Cansado, e parecendo satisfeito com sua fala sobre a xenofobia e racismo do país que conhecia há tão pouco tempo, mas mais do que muitos brasileiros que nem mesmo reconhecem essa realidade, Enos se juntou aos demais jovens em frente à TV. Uma menina com cara amarrada, cabelos trançados e unhas pintadas de cor-de-rosa, se sentou na cadeira que o menino acabara de deixar e me fitou, desconfiada, puxando os fones de ouvido da orelha.
Ela me cumprimentou vagamente, disse que era a irmã de Enos e respondeu grande parte das perguntas levantando os ombros. “Aqui é normal, o Brasil é um país normal. Foi difícil morar na rua e o mais difícil foi chegar em um país que todo mundo fala outra língua, você tenta ficar em um lugar e não deixam. Um país estranho, todo mundo branco, ninguém negro…”. Em um país em que mais da metade da população se reconhece como negra – preta ou parda – a solidão e falta de identificação e representatividade racial expressada pela menina ganha proporções ainda mais sérias.
Extremamente cética e forte, ela negava todas as dificuldades que contava ter passado com um tom seco de realidade, como se quisesse varrer qualquer sinal de pena do interlocutor.
“Tudo na vida tem que aguentar, para ter uma coisa boa no futuro. Aqui eu estudo no nono ano, tenho 16 anos e no meu país eu estudava em outra série, mas tô me acostumando com a língua ainda, porque estudava em uma escola francesa. Tenho que tentar e fazer o melhor para o futuro”. E o que ela quer para o futuro? “Nada demais.. Quero uma vida tranquila, não muito especial, não ficar rica; uma vida calma, trabalhar, ter família. Só isso… Ah, e estudar. Quero estudar psicologia e ciência política. Eu faço terapia aqui, o psicólogo vem pessoalmente e me ajuda a conversar. Eu não gosto muito de conversar não, mas eu tento pra desabafar”.
Naomi afirmou gostar muito de política, embora não entenda ainda o contexto político confuso de seu novo país. “Eu sei que na Angola são pessoas querendo o poder. Um quer o poder, outro quer o poder, todos lutando para ficar presidentes mas não pensando no povo que também quer ter poder, pensando só neles”. Impassível, contou rapidamente que sente falta da sua escola e das amigas, com quem nunca mais falou, antes de reiterar mais uma vez a inconstância natural da vida. “Nada na vida é fácil, nada na vida é difícil, tudo tem que tentar. Ninguém é legal na vida também, mas a gente conquista as pessoas para ficarem legais. Morar em um abrigo não é feio nem legal também, é normal”.
O relativismo, entretanto, deu uma trégua quando comentei sobre as experiências racistas vividas pelo irmão. “Isso eu acho que posso compartilhar com ele. Mas eu tento ficar na minha, não vai mudar nada na minha vida, tô olhando para frente…” disse, emendando um silêncio profundo que tentei quebrar com algumas perguntas mais leves sobre o que ela gostava de fazer quando não estudava. “Quando eu saio da escola eu durmo porque não tem nada para fazer. Eu gostaria muito de trabalhar como jovem aprendiz, mas até agora nada apareceu… Gosto muito de ler também, livros em francês, acho que você não vai conhecer”.
A menina checou o celular com impaciência e eu agradeci a conversa, me desculpando por qualquer pergunta que a tivesse incomodado. Ela abriu um sorriso pela primeira vez e balançou a cabeça. “Não, não. Eu gostei também”, respondeu, levantando-se e juntando-se ao irmão.
Safira
Depois de conhecer as demais casas acompanhada por Igor, engolindo meu ingênuo choque com as crianças pequenas e bebês do abrigo, voltei para a Casa III e encontrei Safira sozinha, sentada em um banco atrás do sofá onde os adolescentes brasileiros gritavam e riam. Ela olhava para eles sem se intimidar, com uma postura perfeita e olhos apertados de ressentimento. Tinha cabelo bem curto e um rosto e corpo que se enquadravam em múltiplos padrões de beleza, o que provavelmente facilitaria seu sonho, depois revelado, de se tornar modelo.
Com fisionomia triste, a garota, também angolana e nascida na capital, Luanda, assumiu, suspirando, não gostar nem um pouco do abrigo.
“Ninguém aqui gosta de mim, não gosto deles também. Ficam me xingando o tempo todo. Principalmente aquele ali, ó”, disse, destemida, apontando para um garoto alto e forte. “Os brasileiros são difíceis…”.
Ela preferiu não falar sobre os motivos de ter vindo para o Brasil, e ficou ligeiramente introspectiva com a pergunta.
Aos 16 anos, Safira parecia ansiar muito pela maioridade. “Eu quero muito sair daqui. Eu tenho um namorado, ele é do Congo e vive aqui também, mas não deixam eu ir encontrá-lo nunca. Ele pode vir aqui às vezes. Eu achei que poderia ficar sozinha no Brasil, mas não dá. Aqui não tem nada para fazer”, continuou, agitada, completando que já tinha pedido para conversar com o juiz várias vezes, mas não conseguia retorno.
Durante a curta conversa com Safira, um dos adolescentes da casa, um menino magrelo que perambulava inquieto durante todo o tempo em que estive lá, teve uma crise de raiva e tentou bater em uma das funcionárias, que rapidamente o deitou no chão e ajoelhou em cima dele. O menino gritava desesperadamente e a mulher, incisiva, tentava controlá-lo. Safira olhou assustada para a cena e explicou, impaciente: “Ele é louco, faz isso o tempo todo…”. O menino vomitou no chão e repetia, nervoso, que havia um bebê na sua barriga. Alguns dos adolescentes riam, Enos e outro menino tentavam ajudar a controlá-lo. A maioria ignorava a cena como se fosse realmente corriqueira, o que a tornava ainda mais impactante.
De repente o menino se acalmou, voltou para o seu quarto cabisbaixo e um lanche da tarde foi servido na mesa de refeições para os jovens da Casa I, que pularam do sofá animados. Safira pediu licença e se afastou para comer, se aproximando de Enos e Naomi e parecendo ainda bastante deslocada entre os colegas do abrigo, alisando a barra da saia enquanto comia um pedaço de bolo.
A preocupação em sair do abrigo e ganhar controle sobre suas vidas parecia constante entre ela e Naomi, o que exemplifica o paradigma da necessidade de proteger as crianças e adolescentes solicitantes de refúgio, em paralelo com a importância de sua participação nas decisões que concernem o próprio destino. É muito difícil imaginar adolescentes vítimas de violência, vivendo em um país desconhecido sem a assistência e guarda do Estado. Ao mesmo tempo, a frustração em não ter suas opiniões, vontades ou até mesmo dúvidas atendidas, é muito legítima.
Segundo Igor, há um programa de conscientização para os adolescentes do abrigo que se aproximam da maioridade, no qual são incentivados a guardar dinheiro para conseguirem se sustentar após saírem. “Temos uma parceria com uma instituição que aluga apartamentos a preço simbólico para os adolescentes que saem daqui, dessa forma eles ganham um tempo para se adaptar ao mundo lá fora, já que eles têm que ser desacolhidos aos 18 anos”.
Aniso
Minha última entrevista no Espaço MAIS Vida foi com Aniso, uma jovem adulta da Somália. Era a primeira pessoa do país que eu conhecia e quando entrou pelo portão acompanhada de uma assistente social, me surpreendi por um momento com o véu roxo que escondia seus cabelos. Ela vestia uma bata preta que cobria todo seu corpo e deixava apenas os pés e as mãos para fora, ambos com unhas descascadas de esmalte vermelho. Usava óculos e tinha um rosto redondo e infantil. Sua aparência, mais do que a de qualquer um dos angolanos, tornava impossível ignorar que era estrangeira.
Perguntei se Aniso gostaria de conversar comigo sobre sua história e ela automaticamente se surpreendeu com a comunicação em inglês. Espantada, me contou que ninguém no abrigo sabia falar sua língua materna, que por sua vez, era a única em que sabia se comunicar. “Eu não falo com ninguém aqui. Entendo um pouco de português, mas não sei falar”, confessou. Ela me contou que tem 21 anos, mas ainda vive no abrigo porque não sabe o que fazer no país.
“Eu estou aqui há dois anos e meio. É okay aqui, nunca tinha ouvido falar do Brasil antes e terminei aqui… É uma longa história. Eu tinha uma família na Somália, mas não sei onde estão. Lá algumas pessoas são boas, outras são ruins. Elas matam e estupram outras pessoas. Meu pai trabalhava lá e as pessoas pediam dinheiro para ele, mas ele não podia dar porque tinha a nossa família para criar. Então, mataram ele. Mataram ele e machucaram a minha mãe. Quando isso aconteceu eu estava na escola e tinha sete anos. Eu e meu irmão corremos para a nossa casa, vimos meu pai morto e nos contaram que minha mãe tinha desaparecido e eu não poderia achá-la. Então eu perguntei como poderia sair de lá e um homem disse que poderíamos viver com ele. Eu tinha a opção, ele nos convidou para sua casa. Mas em 2012 meu irmão foi morto e eu fiquei sozinha”, contou a menina, despejando as palavras sem pausa, como se realmente não conversasse com ninguém há muito tempo.
Aniso continuou sua história e as palavras se tornavam cada vez mais incompreensíveis, engolidas umas pelas outras. “Eu não ia para a escola porque não tinha dinheiro. Lá não tem ensino e saúde pública, então a vida é difícil. Eu era tão nova naquela época. O problema é que o homem me obrigou a trabalhar na sua casa, todos os dias, dia e noite. Algumas vezes ele me forçava a casar com alguém. Eu não estava feliz e eu me recusava a casar porque dizia que isso tinha que ser feliz. Eu só queria ver a minha mãe. Então ele me disse que iríamos viajar. Perguntei para onde e ele não me dizia. Quando estávamos no aeroporto da Somália muitas pessoas me perguntaram onde eu estava indo e se eu estava presa com ele. Ele respondia que eu estava doente e que não deveriam me fazer perguntas, mas eu não estava doente, eu estava normal. Eu não tinha nenhuma opção. No avião, ele me disse que estávamos indo para o Brasil”.
Sua voz transmitia muita angústia, o que era acentuado pelo fato de ela constantemente reiterar que não teve culpa no que aconteceu. Eu não tinha certeza se por “casamento” ela se referia à instituição matrimonial ou se era sua forma de dizer que havia sido forçada e violentada sexualmente. De qualquer forma, o fato de ter sido trazida para o país por um adulto sem autorização, quando era menor de idade, a classifica como vítima de tráfico humano – como muitas outras crianças e adolescentes refugiados que se apoiam em coiotes para cruzar as fronteiras e acabam sendo enganados e sequestrados.
“Eu não sei o que ele estava pensando, se ia me fazer eu casar com alguém aqui, mas ele disse que não iríamos parar a jornada aqui, que iríamos continuar. Mas quando chegamos eu estava morrendo de medo, ouvia as pessoas falando português e não entendia. Aqui ninguém fala inglês, nem as outras crianças aqui nem os funcionários. Quando cheguei no aeroporto eu corri para a polícia. Eu tinha quase 18 anos quando cheguei. Então eu fiquei aqui… É tudo tão diferente, as pessoas, os lugares. Eu chorei por um mês seguido quando cheguei. Mas os brasileiros são legais. Agora eu tenho mais quatro meses aqui no abrigo e não sei o que vou fazer. Eu preciso viver a minha vida, trabalhar e ir para a escola, mas não sei falar português ainda e não aceitaram meu protocolo de refúgio, não sei porque. Eu quero estudar medicina”, completou.
“Aqui eu não faço nada. Eu acordo e fico sentada. Não gosto de assistir os filmes porque não entendo e nunca deixam colocar em inglês, os jovens são malvados aqui no abrigo”. Aniso revelou que o que sente mais falta da Somália é de sua mãe e contou que já deu seu nome para diversas organizações tentarem encontrá-la. “Mas ainda não encontraram… Lá é tão diferente, não tem metrô, trem, prédios. E aqui é tão frio”.
Apertando as têmporas com uma careta, ela disse que estava no médico até então, por causa de uma dor de cabeça que acredita ser causada pelo grau irregular do óculos ou pela dieta que estava adotando. “É por causa da minha religião, tenho que ficar sem comer durante o dia por 7 dias. Mas já tá acabando, faltam três dias. Não é o Ramadan, mas é parecido”, respondeu, desconfiada com o fato de alguém do Brasil saber sobre o mês de jejum islâmico. “Não é difícil ser muçulmana aqui. As pessoas fazem perguntas, mas tudo bem. Eles só acham diferente…”, completou, com um último suspiro solitário antes de nos despedirmos.
Ela parecia aliviada em ter conversado com alguém, e desejei ter tocado em assuntos mais banais. Eram quatro horas da tarde e duas jovens universitárias descoladas haviam chegado ao abrigo para realizar uma oficina de biblioteconomia com os adolescentes. Enquanto eu guardava minhas coisas na mochila, observei que eles reviravam os olhos do sofá onde ainda estavam esparramados e reclamavam com um “Aaaah não” insurgente.
Abaixei a cabeça e dei um sorriso pensando que as duas provavelmente se sentiam tão desconfortáveis quanto eu no local, em nosso ímpeto prepotente de ajudá-los. Deixei o abrigo caminhando ao lado de seu muro grafitado na rua deserta. O sol começava a baixar no horizonte e os gritos dos adolescentes do abrigo iam se esvaindo à distância, misturando-se com outros choros, gritos e risadas infantis, enquanto eu percorria a vizinhança.
*Esta é a quinta e última parte do especial Infância e Refúgio, sobre crianças refugiadas na cidade de São Paulo. Nele, as crianças entrevistadas usam desenhos e outros elementos lúdicos para falar sobre o que já viveram em tão pouco tempo de vida. Os perfis são do livro Por um Pedaço de Terra ou de Paz, trabalho de conclusão de curso (TCC) na PUC-SP da jornalista Júlia Dolce Ribeiro, e serão publicados um a cada semana no MigraMundo (veja aqui a lista completa). Os nomes das crianças e jovens nos textos são fictícios para preservar a identidade de cada um.