Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
No livro Estrangeiros residentes – uma filosofia da migração (DI CESARE, Donatella, Ed. Âyiné, Belo Horizonte/Veneza, 2020), a autora move-se com certa desenvoltura entre os dois extremos do espectro político da cidadania. Por uma parte, a visão estadocêntrica procura a qualquer custo se isolar no território nacional, monopolizando este último como se fosse uma espécie de propriedade privada dos que têm o privilégio de partilhar o sangue e o solo, a língua e a bandeira, além do patrimônio cultural. Resulta disso o medo, a hostilidade e a discriminação, abertos ou dissimulados, contra todo tipo de estrangeiro que, solitariamente ou em massa, tenta ultrapassar as fronteiras desse refúgio coletivo. Na exata medida em que se engrossa a “maré dos migrantes”, cresce o receio e com ele a discriminação. Ao fim e ao cabo, à queda do muro de Berlim, segue-se a construção de novos muros, cada vez mais sofisticados.
De outra parte, o conceito de cidadania universal, vagamente idealizado, desconhece desde o início a força viva que representam os distintos Estados-nações no contexto atual. Apesar da economia globalizada, as decisões que fazem marchar o mercado mundial ainda mergulham suas raízes firmemente nesse território local, historicamente constituído. O Estado juntamente com a população, esta não raro insuflada por aquele, agarra-se a um nacionalismo exacerbado, batendo-se contra o “direito de ir e vir”. O fato é que por vezes os poetas e/ou idealizadores dessa ideia universal da cidadania esquecem que é o passaporte – e não simplesmente a certidão de nascimento – que tem o poder de abrir as portas de cada país. E como o passaporte tem distintas cores, algumas destas não são bem-vindas. Pelo contrário, representam imigrantes indesejados vindos em geral dos países situados ao sul do planeta.
No espaço entre os extremos, existe uma série de posturas intermediárias onde a hospitalidade, narrada com frequência por antigos mitos, dá lugar à xenofobia e à hostilidade. Numa palavra, o “direito à emigração” nem sempre vem acompanhado do “direito à imigração”, o que dá lugar aos campos de confinamento. Tomando de empréstimo a topologia de Hannah Arendt (In. As origens do totalitarismo), complementada por J. Kotek e P. Rigoulot (In. Il secolo dei campi – detenzione, concentramento e sterminio 1900-2000), Donatella elenca o Hades como campo de internação, o Purgatório como campo de trabalho, o Inferno como campo de concentração e a Geena como campo de extermínio. (Cfr, pag. 294-295).
Enquanto os imigrantes, pelas veredas tortuosas da travessia, travam uma luta cotidiana contra os Estados-nações, o sonho da cidadania universal ignora os entraves e impasses das fronteiras reais. Permanece a impressão de que seus arautos, por ingenuidade ou fanatismo, pretendem estender uma espécie de ponte mágica sobre as adversidades do caminho para entrar na utopia do planeta sem confins. A autora insiste na análise da situação concreta, sublinhando de forma particular o poder dos Estados-nações, ao mesmo tempo que alerta para a relevância de levar em consideração as várias etapas da luta por uma cidadania real. Sua tese é de que, a meio caminho entre a prisão ao território nacional, às vezes devastado pela violência e a miséria, e o ideal de um mundo sem limites, vale apostar numa cidadania como sinônimo de hospitalidade.
O gesto de hospitalidade despoja o “nós” de algo, para dar lugar ao “eles”. Repetido em graus diversos, pavimenta o caminho para uma cidadania aberta e multicultural. Uma cidadania em que a relação e o intercâmbio de valores enriquecem a todos reciprocamente, tornando-se mais relevantes do que a defensa incondicional do território. Ademais, a hospitalidade que cede lugar a quem vem de longe e bate à porta, pouco a pouco, tende a superar o medo, o ódio e a pretensa ameaça, eliminando os muros e o preconceito que separam os de “fora” e os de “dentro”. Assim, “o estrangeiro residente” – conclui a filósofa italiana – representa “a abertura de uma cidadania desvinculada da posse sobre o território e de uma hospitalidade que já anuncia um modo outro de ser no mundo e uma outra ordem mundial” (pag. 356).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é vice-presidente do SPM (Serviço Pastoral dos Migrantes)
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