“As decisões políticas, como sempre, afetam mais os cidadãos do que eles mesmos”, desabafa venezuelana com familiares na região de fronteira
Por Rodrigo Veronezi
Em São Paulo (SP)
A escalada da crise na Venezuela que levou o governo de Nicolás Maduro a fechar as fronteiras com países vizinhos – incluindo o Brasil – preocupa venezuelanos já estabelecidos no Brasil e gera impactos diretos sobre a população que vive nas regiões fronteiriças.
“Estamos todos na expectativa do que vai acontecer. O impacto é grande para nós, venezuelanos, e cidadãos brasileiros que vivem na fronteira, além de brasileiros que têm família na Venezuela”, resume a jornalista venezuelana Alba Gonzalez, que vive atualmente em Campinas (SP). Ela já morou em Santa Elena de Uairén – primeira cidade venezuelana após o cruzamento da fronteira com o estado de Roraima – e ainda têm familiares na região.
A dinâmica entre as duas cidades é afetada diretamente pelo fechamento da fronteira. Há tanto brasileiros que trabalham e/ou estudam no país vizinho como venezuelanos que têm a mesma rotina do lado brasileiro. Na última quinta-feira (21) era possível notar aumento do movimento de venezuelanos fazendo compras em Pacaraima em virtude do fechamento iminente da fronteira – o que aconteceu de fato ainda na quinta.
“Por aqui assistindo fico muito preocupada em relação à minha família”, diz Alba. A situação tende a ficar mais tensa dependendo do período pelo qual a fronteira ficar fechada – e com ela, os efeitos sobre o cotidiano binacional nesta e em outras regiões de fronteira com a Venezuela.
“As decisões políticas, como sempre, afetam mais os cidadãos do que eles mesmos”, desabafa Alba.
Outros venezuelanos que vivem no Brasil e foram procurados pelo MigraMundo expressaram a mesma preocupação, mas não quiseram se pronunciar publicamente. “É pressão demais”, disse um deles.
Entenda o caso
A decisão de fechar a fronteira por parte de Maduro ocorre dois dias após o governo brasileiro comunicar que pretende realizar uma operação, em conjunto com os Estados Unidos, com o suposto objetivo de entregar donativos ao país vizinho. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro se colocou à disposição para ajudar nessa operação, o que ajudou a elevar os ânimos na região
O envio de ajuda para os venezuelanos que sofrem com a crise econômica se tornou um foco de luta de poder entre Maduro e Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional – e dominada pela oposição. Ele se autoproclamou presidente interino da Venezuela após Maduro assumir um novo mandato em eleição questionada por boa parte da comunidade internacional.
Na manhã desta sexta-feira (22), militares venezuelanos abriram fogo contra um grupo de civis que tentava ajudar a manter aberta a fronteira da Venezuela com o Brasil. Ao menos duas pessoas morreram e dezenas ficaram feridas – nas redes sociais e em aplicativos de mensagem circulam diversos vídeos e fotos que seriam referentes ao conflito.
Os feridos foram atendidos em Roraima – ambulâncias passam normalmente, segundo o coronel Georges Feres Kanaan, coordenador da Força Tarefa do Exército em Roraima, que gere a operação de acolhida a venezuelanos em Roraima.
Com a fronteira fechada no posto entre Santa Elena e Pacaraima, venezuelanos que tentam entrar no Brasil buscam outros caminhos por meio de trilhas na área rural.
De acordo com o coronel Kanaan, todas as pessoas sob os cuidados da Operação Acolhida – tanto migrantes como brasileiros que atuam na região – estão sob proteção.
Reações
Em nota, a ONG Conectas Direitos Humanos defende uma saída para o impasse por meio de vias diplomáticas e apela às autoridades para que o “foco das atenções, neste momento de tensão, esteja voltado às pessoas que estão em situação de vulnerabilidade”.
“A manutenção do impasse pode dificultar ainda mais a já grave situação do povo venezuelano duramente afetado pela crise humanitária no país vizinho e ainda causar impactos na vida dos migrantes e refugiados venezuelanos que estão acolhidos no Brasil”.
“Nós, os cidadãos temos que ser vigilantes desse processo. Colombianos e venezuelanos temos que conviver. Agora, trata-se de subsistência. Aqui não existe guerra, a guerra é entre os poderes. Entre os cidadãos não há guerra. Com cada pessoa que falo tem algo a contar sobre como essa dificuldade entre os dois países nos afetam”, afirma Rosa, que também é vendedora de doces, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, a partir da cidade venezuelana de San Antonio de Táchira, na fronteira com a Colômbia.
O número atual de refugiados e migrantes da Venezuela em todo o mundo é de 3,4 milhões, segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). A Colômbia abriga o maior número (mais de 1,1 milhão), seguido por Peru (506 mil), Chile (288 mil), Equador (221 mil) e Argentina (130 mil). O Brasil é o sexto da lista, com 96 mil.
“Esses números ressaltam a pressão sobre as comunidades anfitriãs e a necessidade contínua de apoio da comunidade internacional, num momento em que a atenção mundial está voltada para os acontecimentos políticos dentro da Venezuela”, disse Eduardo Stein, representante especial de ACNUR-OIM para refugiados e migrantes venezuelanos.
Ainda segundo o ACNUR e OIM, os países latino-americanos concederam cerca de 1,3 milhão de permissões de residência e outras formas de status regular aos venezuelanos. Desde 2014, mais de 390 mil pedidos de refúgio foram apresentados por venezuelanos, sendo 232 mil só em 2018.
A ONU alerta ainda que o fechamento da fronteira com o Brasil pode aumentar os riscos de violência em relação aos refugiados e imigrantes e pede que as pessoas que precisam de proteção tenham a possibilidade de solicita-la. “Muitos que deixam a Venezuela precisam de proteção”, declarou Andrej Mahecic, porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Refugiados. “É importante que essas pessoas possam pedir proteção”, insistiu.
Em agosto de 2018, venezuelanos que estava acampados pelas ruas de Pacaraima foram atacados e tiveram seus pertences queimados por moradores locais. O estopim da revolta teria sido um assalto e agressão a um comerciante brasileiro, supostamente cometido por venezuelanos.