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sexta-feira, dezembro 20, 2024

Fechar a fronteira? Especialistas apontam outras saídas para Roraima e venezuelanos

Fechamento teria consequências negativas; políticas públicas integradas e diálogo entre as esferas de governo deveriam ser priorizados, para evitar mais burocracia e xenofobia

Por Rodrigo Delfim
Em São Paulo (SP)
Atualizado às 05h20 de 19/04/18

Na última sexta-feira (13), a governadora de Roraima (RR), Suely Campos (PP), pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) o fechamento temporário da fronteira do Estado com a Venezuela e mais recursos do governo federal para lidar com os migrantes. A decisão levantou mais dúvidas sobre como os efeitos da crise venezuelana no Brasil estão sendo administrados pelas esferas de governo e das potenciais consequências dessa medida.

No STF, o caso é avaliado pela ministra Rosa Weber, que deu 30 dias para que a União e o governo federal cheguem a um acordo.

“Essa ação foi feita no sentido de efetivar o controle da fronteira, [enviar] recursos para o nosso Estado e fechar a fronteira temporariamente, porque como podemos deixar entrar mais venezuelanos se nós não podemos organizar os que estão aqui?”, disse Suely em entrevista à TV Globo. Ela também criticou o ritmo do processo de interiorização, uma das medidas previstas pelo governo federal para lidar com o fluxo migratório na região, considerado lento.

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Iniciada no dia 5 de abril, a interiorização encaminhou apenas 260 venezuelanos para São Paulo e Cuiabá, as únicas cidades brasileiras a recebê-los até agora. Não se sabe ainda quando, quantos e para onde vão os próximos grupos. Ela é conduzida pelo governo federal, por meio da Força Tarefa Humanitária – composta basicamente pelas Forças Armadas – e tem apoio técnico do ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) e da OIM (Organização Internacional para as Migrações).

Segundo dados do ACNUR, 52 mil venezuelanos chegaram ao Brasil desde o início de 2017. Estima-se que 40 mil entraram por Roraima e estejam morando principalmente na capital, Boa Vista. A agência pondera ainda que 25 mil deles são solicitantes de refúgio, 10 mil possuem visto de residência temporária e os demais ainda buscam regularizar sua situação migratória. Os venezuelanos também são a nacionalidade que mais pediu refúgio no Brasil no último ano.

Embora expressivo, o número de venezuelanos no Brasil ainda é bem inferior ao registrado por outros países latino-americanos, como Colômbia (550 mil), Panamá (268,6 mil), Equador (288 mil), Chile (164,8 mil) e Peru (100 mil).

Fomento à xenofobia e precedente perigoso

Nesse caso, qual deveria ser o caminho?

Especialistas ouvidos pelo MigraMundo não acreditam que o STF aceite o pedido do governo de Roraima. Eles apontam que, embora a situação em Roraima seja grave, o fechamento da fronteira com a Venezuela traria danos graves tanto ao Estado como ao Brasil como um todo.

Marco da fronteira entre Brasil e Venezuela, entre Pacaraima e Santa Elena de Uairén. Fluxo entre os dois países ganhou destaque no noticiário nos últimos meses.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

“Se houver decisão favorável à ação proposta pelo Estado de Roraima, estaremos diante de um precedente que é totalmente contrário à primazia dos Direitos Humanos e da livre circulação de pessoas como princípios da nova Lei de Migração, principalmente analisando-se todo um contexto de crescente xenofobia e discriminações que assola o país e o cenário internacional”, aponta a advogada Carla Mustafa, integrante da comissão de relações internacionais da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em São Paulo.

Carla considera ainda que um fechamento só seria plausível se houvesse ameaça à soberania nacional e à segurança, e que o fluxo migratório venezuelano, apesar de intenso, não configura um risco aos interesses nacionais. No entanto, ela ressalta que uma decisão favorável do STF poderia abrir um precedente perigoso em nível nacional. “Se houver procedência da ação, outros Estados podem pleitear alguma medida de contenção, alegando ameaça de danos e prejuízos em decorrência do intenso fluxo migratório”.

Paulo Illes, coordenador do CDHIC (Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante) e ex-coordenador de políticas para imigrantes da Prefeitura de São Paulo, também teme retrocessos no caso de um fechamento da fronteira, além de outros danos em nível regional e nacional.

“As consequências seriam extremamente negativas, não só para Roraima, mas para o Brasil como um todo. Abriria espaço para a criminalização da livre circulação e estimularia o aumento do preconceito e da xenofobia. Como esses migrantes estão buscando melhores condições de vida, eles não vão desistir de migrar para o Brasil. Fechar as fronteiras significaria, então, abrir espaço para o tráfico de pessoas e para o aparecimento de coiotes. Isso colocaria a vida dessas pessoas em risco e geraria muito mais custos econômicos ao país”.

Políticas públicas

Tanto Carla como Illes concordam que somente uma real coordenação entre os governos e a combinação de políticas públicas de curto, médio e longo prazo são capazes de responder ao tema com qualidade.

“Há uma evidente falta de articulação entre os entes federativos para a implementação da política migratória nacional em longo prazo, e uma fragilidade extrema em situações emergenciais. O que deve ser o cerne da discussão são medidas efetivas por parte da administração pública com a devida atribuição de responsabilidades entre União e Estados/ Municípios, e não a volta do paradigma da securitização das migrações como ocorria na vigência do Estatuto do Estrangeiro”, analisa Carla. “Seria um grande retrocesso diante de toda uma mobilização e articulação da sociedade civil, notadamente o protagonismo dos migrantes, para a aprovação de uma lei migratória mais humanitária”, completa a advogada.

Illes aponta ainda que o processo de interiorização pode deixar um legado importante para o Brasil em políticas públicas para migrantes, em nível nacional, se for gerido corretamente e dialogar com a sociedade civil. Como exemplo, ele lembra estruturas que foram criadas na capital paulista para atender a migração haitiana, especialmente no ano de 2014. “Do mesmo modo, a chegada dos venezuelanos nos dá uma segunda oportunidade em tão pouco tempo para ampliar essa rede de serviços públicos em âmbito nacional. Antes eram os haitianos que representavam um grande fluxo, agora são os venezuelanos, depois virão outros. E o Brasil precisa estar preparado”.

Em busca de uma vida melhor, milhares de venezuelanos têm cruzado as fronteiras com os países vizinhos, entre eles o Brasil.
Crédito: Boris Heger/ACNUR/Nações Unidas

Repercussão

A decisão do governo de Roraima gerou reações contrárias tanto dentro do governo federal como em meio à sociedade civil. Logo em seguida ao anúncio, o presidente Michel Temer disse que um fechamento é “incogitável“.

Dentro do governo federal, inclusive, existe uma avaliação de que o pedido de Suely tenha a ver com o cenário político no Estado, com a governadora tentando mostrar força em um ano de eleição e dividir com o governo federal a responsabilidade pela situação emergencial provocada pela presença venezuelana.

A PGR (Procuradoria-Geral da República) se manifestou contra o pedido por violar obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo país. “O fechamento da fronteira ofende frontalmente tanto a proteção aos refugiados quanto a política brasileira de migração, resultando no aumento do ingresso irregular e na permanência clandestina desses indivíduos, o que agravaria a situação social na região”, pontua o vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia.

Em nota, a ONG Conectas Direitos Humanos repudiou a medida, que contraria princípios e direitos garantidos pela legislação nacional e por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. “A acolhida humanitária [um dos princípios da lei migratória brasileira] consiste justamente em garantir direitos, e não retirá-los. A experiência de diversos países que adotam fechamento de fronteira e recrudescimento de políticas migratórias mostra que essas medidas não são a solução”.

Em artigo publicado no último dia 10 de abril no portal El País Brasil, os pesquisadores João Carlos Jarochinski e Cyntia Sampaio pediram a implementação de “um plano para os venezuelanos que chegam ao Brasil”, que assegure proteção a pessoas que chegam quase sem nada. Os acontecimentos da última sexta-feira mostram que esse plano ainda segue distante.

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