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domingo, dezembro 22, 2024

Fronteiras, saúde e migrações LGBTQIA+: olhares desde Boa Vista, Brasil e Tijuana, México

Uma leitura comparativa entre políticas de saúde em cidades fronteiriças pode contribuir a encontrar diferentes cenários de resposta para desigualdades e exclusões que migrantes e refugiadas LGBTQIA+ vão encontrando no caminho

Por Macarena Williamson
Do OSM (Observatório Saúde e Migração)

Uma das principais características das mobilidades contemporâneas no Sul e Norte Globais é a complexificação das trajetórias e rotas de migrantes e refugiados, demonstrando não só vários reassentamentos mais mobilidades em diferentes escalas, como deslocamentos internos e transnacionais.

Pesquisando migrações, gênero e sexualidades em fronteiras, não é estranho encontrarmos com percursos de migrantes e refugiados cada vez mais interconectados entre países da região latino-americana. Assim por exemplo, fazendo pesquisa em Tijuana, estado de Baja California, fronteira norte do México com Estados Unidos, mães haitianas relataram que depois de morar anos no Chile migraram rumo aos Estados Unidos junto aos seus filhos, chileno-haitianos, para procurar asilo politico. Transitaram por vários países da região, sobreviveram à Selva do Darién na fronteira colombo – panamenha e continuaram a travessia pela América Central até chegar em Tijuana, fronteira do México, onde esperam atravessar para os Estados Unidos. De alguma maneira, o Chile aparece conectado a Tijuana através dos trânsitos de migrantes e refugiados(as) por esses territórios. Por isto é fundamental produzir conhecimento transnacional entre diferentes fronteiras, observando contrapontos e semelhanças nos lugares de trânsito e promover politicas migratórias com perspectiva de direitos humanos que permitam deslocamentos dignos e seguros frente as politicas securitárias e a criminalização da mobilidade humana.

Na tentativa por propor diálogos sobre migrações, gênero e sexualidades entre fronteiras do Sul Global nesta coluna apresento algumas considerações importantes sobre migrações LGBTQIA+ em Boa Vista e Tijuana, retomando dois eixos centrais: fronteiras e saúde. Claro, é importante dizer que cada uma dessas dimensões constitui por si mesma um campo de pesquisa, por tanto me limitarei aqui a mencionar alguns nós críticos sobre essas grandes discussões para iniciar uma leitura comparativa entre Brasil e Mexico sobre migrações e refúgio LGBTQIA+.

Fronteiras

Sem lugar a dúvidas a historicidade, localização geográfica e paisagens traçam fortes contrastes entre Boa Vista e Tijuana quanto regiões de fronteira. Também os modos de administração e governança das migrações nesses territórios são diferentes. Ainda quando as politicas migratórias nessas cidades se inserem no paradigma do estado securitário, reforçando a seguridade nacional e fortalecendo a militarização de fronteiras por meio de muros, checkpoints, controles biométricos, entre outras, Boa Vista e Tijuana têm notórias diferenças em relação a sua constituição como região fronteiriça.

Boa Vista, capital do estado de Roraima, fronteira avançada com a Venezuela e Guiana, é uma cidade que pode ser considerada “nova” desde o ponto de vista da sua constituição federal (1988), estrutura governamental e institucionalidade. Desde 2014 – 2015 Roraima se tornou um estado de ingresso massivo de migrantes venezuelanos por terra. Desta maneira esse fluxo empurrou à implementação da Operação Acolhida em Pacaraima, Boa Vista (RR) e Manaus (AM), força tarefa-humanitária do governo brasileiro junto as forças armadas, organizações internacionais e locais para a recepção das migrações venezuelanas. De alguma maneira, pode-se dizer que a presença de fluxos migratórios contemporâneos nesse território é recente. As condições geográficas do lavrado caracterizado por povoados espalhados entre extensas planícies, rios e serras fazem com que no estado de Roraima a divisão do território entre Brasil e Venezuela esteja demarcado por uma fronteira natural é não por um muro.

Em contrapartida, Tijuana pode ser considerada uma cidade fronteiriça “velha” influenciada pelas relações históricas com os Estados Unidos e deslocamentos internos de outros estados do México para Baja California. Está localizada frente ao mar Pacífico entre falésias e deserto, Tijuana é um dos principais ponto de ingresso por terra e mar aos Estados Unidos, por tanto, a influência das migrações nessa região é de longa data. Hoje em dia Tijuana está dividida de San Diego, California, por dois muros de contenção de aproximados oito metros de altura. Migrantes e refugiados de todo o mundo passam por aqui, recepcionando uma ampla diversidade de experiências de mobilidade: pessoas deportadas, retornadas, migração forçada interna, deslocamentos desde países asiáticos, Meio Oriente e outras nações em guerra como Ucrânia, Rússia e de alguns países africanos que penalizam a dissidência sexual e de gênero.

Assim, outra diferença substancial entre essas cidades fronteiriças são as relações históricas com seus países vizinhos. As camadas de conflitos e violências que perpassam a cotidianidade de Tijuana distam das expressões de violência e desigualdades em Boa Vista, questão que se explica entre outros elementos porque os atores são diferentes. Este breve comparativo entre cidades fronteiriças apresenta vários desafios em termos da acolhida a migrantes e refugiados LGBTQIA+. No cenário pós pandêmico, em ambas fronteiras as condições de precarização se agravaram e persistem os riscos de vida para população migrante LGBTQIA+ frente ao avanço global da extrema direita.

Em Boa Vista, a Operação Acolhida atua faz cinco anos e as migrações venezuelanas são parte da cotidianidade dessa cidade. Nesse enquadre é preciso garantir a incidência de diversidades sexuais e de gênero migrantes nas tomas de decisões e politicas de acolhida, fortalecer as redes intergovernamentais, produzir dados e sistematizações de boas práticas para migrantes LGBTQIA+ na Operação. Em Tijuana, os mecanismos de restrição das mobilidades continuamente se aperfeiçoam nessa fronteira. Esse ano se implementou o uso do aplicativo CBPone para solicitação de asilo político nos Estados Unidos. A digitalização é uma prática seletiva e universalizante que impede olhar para os atravessamentos de classe social, raça, gênero e sexualidades, idade e situação migratória das pessoas solicitantes de proteção internacional. Não obstante, ainda em tempos de criminalização da mobilidade nessas cidades as organizações civis têm um papel central como redes de apoio para migrantes e refugiados LGBTQIA+. Assim como observo que em ambos contextos, dissidências sexuais e de gênero migrantes continuam se organizando, promovendo redes transnacionais de solidariedade e sobre tudo, elaborando narrativas de si sobre futuros possíveis com seus recursos a través das suas artes, trabalho e potências vitais.

Saúde e migrações LGBTQIA+

Uma das primeiras observações a se considerar no âmbito da saúde de migrantes e refugiados LGBTQIA+ é o apagão de dados oficiais sobre essa população tanto no Brasil quanto no México. Vejo com preocupação a escassez de dados produzidos por esses Estados em relação à migrantes e refugiados das diversidades sexuais principalmente num cenário global regressivo para o exercício de direitos humanos dessa população. Nas cidades de Boa Vista no Brasil e em Tijuana no México é possível aceder a informações fornecidas por organizações civis de apoio a migrantes e refugiados LGBTQIA+ nos seus campos de ação localizados em determinadas regiões. Por exemplo, destacam no Brasil as Redes Comunitárias e de Serviços para Pessoas Refugiadas e Migrantes LGBTQI+ e no México a Rede Nacional de Apoio a Migrantes e Refugiados LGBT, mas sem dados estatísticos oficiais, diversidades sexuais migrantes continuarão às margens da politica pública e da proteção social do Estado.

Toda identidade sexual e de gênero merece atenções de saúde especificas e no contexto de mobilidade as condições da viagem adquirem um papel central nos processos de saúde e doença de migrantes e refugiados LGBTQIA+ nos trânsitos. Migrar é uma experiência sentida que envolve transformações emocionais, psíquicas e corporais.

No âmbito do acesso a saúde de dissidências sexuais migrantes existem contrastes notórios entre Boa Vista e Tijuana. Na primeira cidade localizada ao Norte de Brasil, migrantes e refugiados LGBTQIA+ recebem informações sobre saúde com foco em direitos sexuais e reprodutivos através de organizações de diversidades sexuais locais e organizações internacionais parceiras da Operação Acolhida como UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas). Como exemplo, em minhas interlocuções com migrantes e refugiadas trans venezuelanas a maioria relata ter retificado seu nome social no Brasil, garantindo seu direito à identidade de gênero no percurso migratório. Ainda quando esse é um avanço significativo para pessoas trans migrantes ainda existem barreiras no acesso ao tratamento hormonal durante seus trânsitos em Roraima.

Inclusive quando o SUS é um exemplo internacional de política pública e universal de saúde, os avanços dirigidos a população migrante LGBTQIA+ continuam centralizadas nos estados do sudeste do Brasil existindo uma brecha importante em relação a implementação de programas, capacitação de funcionários da saúde e infraestrutura para o acompanhamento de pessoas trans migrantes e refugiadas em Boa Vista. Em outros estados do Brasil, por exemplo, São Paulo existem protocolos de atendimento e o processo de hormonização é acompanhado por uma equipe interdisciplinar. É preciso descentralizar esses avanços em termos de direitos a saúde de população LGBTQIA+ na região Norte do Brasil. Sobre o acesso ao tratamento para infeções de transmissão sexual, em conversações com migrantes LGBTQIA+ referem ter recebido a tempo os medicamentos necessários para dar continuidade aos seus tratamentos através do SUS em Boa Vista.

Já em Tijuana, ONGs internacionais como Aids Healthcare Foundation (AHF) proveem informações sobre saúde sexual e reprodutiva orientada a população migrante e refugiada LGBTQIA+ oferecendo serviços como testagens rápidas de HIV e palestras em abrigos. A diferença de Boa Vista, em Tijuana a presença organizações das Nações Unidas não é tão decisiva quanto na resposta humanitária da Operação Acolhida. Em Tijuana as politicas de saúde para migrantes e refugiados LGBTQIA+ recaem nas administrações dos abrigos e nos encaminhamentos que possam fazer nas redes públicas.

No México, Centros especializados fornecem os remédios para infeções de transmissão sexual nos Centros Ambulatorios para la Prevención y Atención en SIDA e Infecciones de Transmisión Sexual (CAPASITS). Não obstante em conversações com migrantes LGBTQIA+ que tentaram aceder ao tratamento pelo CAPASITS em Tijuana não conseguiram, argumentando não ter estoque ou depender da Cidade do México (a 2700 quilômetros de distância) para o envio dos medicamentos durante seus trânsitos migratórios. Outra característica dessa cidade fronteiriça é a disponibilidade de serviços de saúde privados de diferentes preços e qualidades. Como região de fronteira, em Tijuana os medicamentos são mais baratos do que nos Estados Unidos e também os tratamentos médicos são variados, inclusive a cirurgia estética é um rubro comercial importante nessa cidade.

Não obstante, esses cenários adversos para o acesso a saúde pública de população migrante e refugiada LGBTQIA+ nas fronteiras de Boa Vista e Tijuana tanto na Operação Acolhida quanto nas ações articuladas dos abrigos, existe um histórico de politicas de saúde que demonstra experiência acumulada para minorar os efeitos da centralização das políticas de saúde que não conseguem chegar em regiões de fronteira. Uma politica pública de saúde que consiga oferecer trânsitos dignos deve considerar um olhar interseccional em relação a classe social, raça e pertencimento étnico, questão etária e situação migratória no acesso a saúde de população LGBTQIA+ durante os trânsitos.

Finalmente, uma leitura comparativa entre políticas de saúde em cidades fronteiriças pode contribuir a encontrar diferentes cenários de resposta para desigualdades e exclusões que migrantes e refugiadas LGBTQIA+ vão encontrando no caminho. É preciso que migrantes e refugiados LGBTQIA+ incidam diretamente no desenho da politica de saúde trazendo suas preocupações, pautas e propostas para estamentos governamentais descentralizados.

Sobre a autora

Macarena Willianson é Doutoranda em Ciências Sociais e discente do Núcleo PAGÚ, IFCH/UNICAMP, além de integrante do Observatório Saúde e Migração

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