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quarta-feira, outubro 30, 2024

Gênero, migrações e saúde: reflexões sobre a promoção de equidade no cuidado no SUS

É necessário mapear as barreiras à equidade no acesso ao SUS enfrentada pelas mulheres migrantes, a fim de possibilitar a criação de estratégias específicas de atenção à saúde que considere as particularidades do campo migratório

Por Gabriela Carvalho Teixeira
Da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes – FENAMI

Um novo contexto migratório para o Brasil se observa nos últimos 10 anos, com a imigração em especial de haitianos e venezuelanos, esse movimento é marcado também pela maior presença de mulheres migrantes, de modo que Tonhati e Pereda (2021) afirmam que há a inauguração de um processo de feminização das migrações para o Brasil. As autoras pontuam, ainda, que a partir de 2013, houve um aumento no número de haitianas que imigraram para o Brasil, e ao longo da década, esse quantitativo aumentou de forma constante, se fazendo necessário direcionar um olhar atento e particular à elas.

Os dados de migração, entretanto, dificilmente estão desagregados, não sendo possível, muitas vezes, mapear as necessidades específicas de mulheres, inviabilizando-as neste processo de reflexão. Impacta, também, na falta de políticas para migrantes e refugiados que promovem a inclusão de necessidades específicas de mulheres (OIM & UNFPA, 2006; ONU Mulheres, 2021). Em crises humanitárias, mulheres e meninas tendem a ser as populações mais afetadas. Muitas se encontram em situação de vulnerabilidade, sujeitas à violências no percurso migratório, e se deparam com barreiras no acesso à proteção, a serviços e estão expostas a maiores riscos de violência (ONU Mulheres, 2021). A discriminação contra mulheres e meninas pode ser ao mesmo tempo causa e consequência do movimento de migrar. Esse contexto normalmente é agravado por outras circunstâncias como origem étnica, deficiências, religião, orientação sexual, identidade de gênero e/ou origem social. Ainda, mulheres em situações específicas, como mulheres com deficiência, desacompanhadas, grávidas e idosas, estão ainda mais sujeitas a riscos (ACNUR, 2017). Esses fatores que marcam exclusões sociais, se intensificam quando há interseções entre esses elementos, especialmente em cenários de crises.

Nesse sentido, a migrante, por trazer na sua condição uma multiplicidade de causas sociais, apresenta vulnerabilizações, que quando nos voltamos a refletir sobre o contexto de saúde, verifica-se que podem ter maiores dificuldades no acesso à saúde (Costa, 2020). Diante disso, percebe-se que as mulheres migrantes, refugiadas ou apátridas no Brasil, principalmente vindas do Sul Global, estão em condições intensificadas de vulnerabilidade social, pois não estão diante apenas da condição de migrante e seus estigmas, como também de questões relacionadas à gênero, o que reflete nas relações, no trabalho, na saúde e nas próprias condições de sobrevivência. Diante disso, é fundamental questionar como é atendida e acolhida as questões de saúde dessas mulheres, promovendo um olhar atento às mulheres migrantes no contexto de atenção à saúde.

O acesso ao cuidado em saúde no Brasil

A intensificação dos fluxos migratórios internacionais traz para o debate a responsabilidade do Estado em garantir os direitos sociais básicos às populações migrantes, incluindo-se aqui o acesso à saúde. No caso do Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) é um marco histórico nas políticas de seguridade social do país. Trata-se de um modelo de organização e articulação de serviços que distingue-se por sua universalidade de acesso, sendo reconhecido internacionalmente como um modelo progressista de sistema público de saúde, tendo como horizonte a saúde como um direito fundamental de todas(es). Assegurar a diretriz de universalidade, entretanto, depende da garantia da equidade, que convoca à estruturação de ações que tornem o SUS adaptável às desigualdades constituintes da sociedade brasileira, observando as particularidades sociais, econômicas e culturais das populações atendidas, ofertando cuidados específicos em saúde na medida em que essas diferenças estão colocadas (Paim, 2018).

As populações migrantes residentes no Brasil são profundamente plurais, compostas por diversas nacionalidades e origens étnicas e raciais. Muitos destes migrantes têm acesso dificultado ao SUS, situação agravada durante a pandemia de Covid-19, comprometendo de forma profunda a universalidade do Sistema. A saúde é um direito humano básico, e no Brasil é dever do Sistema Único de Saúde atender a todas(es), independente de sua situação documental, origem, língua ou cultura. Isto não é novo no campo das legislações, uma vez que as Leis Orgânicas da Saúde e da Assistência Social (Lei nº 8.080/90 e Lei nº 8.742/93, respectivamente), pautam o acesso universal e a igualdade de tratamento em seus serviços. E está assegurado também pela Lei de Migração nº 13.445/2017, regulamentada pelo Decreto nº 9.199/2017. O SUS se apoia em três princípios basilares: a universalidade, a integralidade e a equidade, assim, mesmo sem documentos e sem falar português, migrantes têm garantido seu direito à saúde e é preciso que esse cuidado respeite, também, o direito de entenderem as informações relativas ao seu caso.

A realidade das mulheres migrantes no Brasil muitas vezes evidencia a ineficiência na efetivação dos princípios do SUS. Barreiras linguísticas, falta de informação sobre seus direitos, estigma e discriminação são apenas alguns dos desafios que podem dificultar o acesso dessas mulheres aos cuidados de saúde necessários. Esse contexto expõem uma precariedade estrutural e institucional às quais estão submetidas. Condições que situam migrantes e refugiados enquanto populações vulnerabilizadas, ainda mais precarizados no momento atual, uma vez que crises econômicas, políticas e sanitárias intensificam as vulnerabilidades vivenciadas (Branco-Pereira, 2021).

Assim, se torna necessário mapear as barreiras à equidade no acesso ao SUS enfrentada pelas mulheres migrantes, a fim de possibilitar a criação de estratégias específicas de atenção à saúde que considere as particularidades do campo migratório,  tendo um horizonte de cuidado intercultural, com o propósito de garantir a efetivação dos princípios do SUS. Para qualificar esse acesso e considerar os aspectos culturais, podemos nos inspirar em experiências de alguns municípios como a contratação de agentes comunitários de saúde imigrantes para atuar na atenção primária à saúde, ou ainda de mediadores culturais/intérpretes comunitários para atuarem nos dispositivos públicos, além da tradução de materiais orientativos.

Neste contexto, vemos ainda, que a Pandemia da Covid-19, tempo de urgência político-sanitária, múltiplas crises se instalaram, evidenciando que para se falar de saúde é necessário abordar questões de moradia, condições de trabalho, transporte, uso dos espaços públicos, gênero, raça e racismo, cultura e questões linguísticas, leis e, especialmente, de política. Há o apagamento das populações, em especial de mulheres e migrantes pretos e indígenas, quando não há a produção de dados sobre o impacto da Covid-19 nesses grupos, informações necessárias para formular respostas em políticas públicas eficazes (Branco-Pereira, 2021). Aponta-se aqui para a necessidade de qualificação dos sistemas de informação de saúde, para que sejam adequados à realidade migratória brasileira e consigam responder, com dados e indicadores de saúde, sobre o acesso ao direito à saúde pelas populações migrantes no Brasil.

Participação social

Diante desse cenário, observamos a importância da mobilização de organizações e coletivos, em especial as redes de profissionais da saúde, que atuam com a temática migratória no país, para a participação social na construção e monitoramento das políticas públicas migratórias. Nesse contexto, o controle social se configura enquanto mecanismo de participação social na gestão pública, no monitoramento, fiscalização e proposição dessas políticas. Uma das possibilidades de participação da sociedade civil neste processo se dá na atuação em Conselhos de Direitos ou de Políticas Públicas específicas, além dos espaços de conferências, composições asseguradas constitucionalmente, fruto das lutas sociais. O controle social é imprescindível para tensionar e debater com os atores quanto à efetivação de políticas públicas existentes, ou a necessidade de novas ações, aproximando a palavra tecida em lei, da realidade das comunidades nos territórios.

A garantia de direitos é parte fundamental no cuidado em saúde, pensar em políticas mais eficientes de acolhimento da população migrante no Brasil, passa por estabelecer um espaço democrático de escuta das demandas em relação à migração e à saúde. Tendo como horizonte a melhoria de acesso à saúde, colocando em relevo a necessidade de articulação, enquanto atores em um esforço de mobilização permanente para participação no processo de consolidação de políticas públicas, em julho de 2023, ocorreu a 17ª Conferência Nacional de Saúde, cujo tema era garantir direitos, defender o SUS, a vida e a democracia.

A conferência enquanto espaço deliberativo com grande participação de usuários do SUS e demais atores que operacionalizam o sistema de saúde, foi momento de sensibilizar os presentes para a causa migratória. Participaram pela primeira vez no histórico de conferências delegados e delegada migrantes, que discutiram os rumos da saúde pública brasileira. Entende-se aqui a necessidade de aumento da representatividade de mulheres migrantes nos espaços de debate. Esta delegação é fruto da mobilização realizada na 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde das Populações Migrantes, impulsionada pela Frente Nacional pela Saúde de Migrantes – FENAMI, em maio de 2023, que debateu estratégias específicas de garantia de direito à saúde dessa população.

Políticas públicas em saúde no encontro com as migrações

O ano de 2023 se configura como momento histórico-político, uma vez que acompanhamos a construção de duas políticas nacionais no campo migratório. No âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), instituiu-se, pela Portaria MJSP nº 290/2023, o Grupo de Trabalho para a construção da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMRA), uma regulamentação inédita no Brasil, que efetiva o art. 120 da Lei de Migrações. Trata-se de um novo ordenamento, orientado pela perspectiva da garantia de direitos, e que representa avanços significativos em relação ao que a precedeu, o Estatuto do Estrangeiro, promulgado no período da Ditadura Militar e pautado pelo paradigma da segurança nacional.

O debate sobre saúde e migração nem sempre é central nos espaços de discussão sobre a temática migratória. Garantir o acesso à saúde é um aspecto fundamental para promover uma política migratória no Brasil que respeite os direitos humanos (Branco-Pereira, 2023). O direito constitucional à saúde, efetivado pelo SUS, garante que as populações em mobilidade possam ter assegurado o acesso a cuidados em saúde. O Ministério da Saúde, frente à necessidade de garantia desse direito, considerando os desafios postos ao acesso desta população ao SUS, instituiu, por meio da Portaria GM/MS nº 763, de 26 de junho de 2023, o GT para elaboração da Política Nacional de Saúde das Populações Migrantes, Refugiadas e Apátridas. Neste momento, o grupo de trabalho passa por uma reformulação de sua metodologia, diante dos anseios da sociedade civil por configurações mais democráticas de participação na construção da política de cuidado à saúde  de migrantes, refugiados e apátridas.

Além de ter como horizonte políticas de equidade, visando o efetivo acesso ao SUS, a RAS e a RAPS, considerando as barreiras de acesso, no acolhimento e encaminhamento, enfrentadas por migrantes nos diversos serviços de saúde, aponta-se para a singularidade estar presente nas estratégias de garantia do direito à saúde. Entende-se que a atenção à saúde das populações migrantes pode ser qualificada como uma política específica, mas é importante também seja integrada de forma transversal à outras políticas de equidade já existentes, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, entre outras.

Dessa forma, as ações em saúde devem envolver todos os entes federativos, as estratégias de saúde devem considerar as realidades regionais, incluindo a participação social, o controle social e os órgãos públicos de saúde intersetoriais. Essa complexidade exige ações em diferentes frentes, como o fortalecimento de outras políticas que também assistem às populações migrantes, como exemplo: o Programa Brasil Sorridente, que democratiza a oferta de saúde bucal; o Programa Mais Médicos e a ampliação da atenção primária à saúde, considerando as equipes de saúde da família, os consultórios na rua, que ofertam saúde diretamente no território, nos bairros e periferias; bem como, o fortalecimento da saúde indígena para os migrantes indígenas e para os povos indígenas que transitam em territórios transfronteiriços.

A saúde é um direito humano básico, no Brasil é dever do SUS atender a todas(es), e para que essa assistência seja efetiva, estratégias específicas precisam ser construídas, tendo um horizonte de cuidado intercultural. É urgente, portanto, pensarmos na construção de uma atenção à saúde para migrantes, que considere suas especificidades e que inclua a capacitação das equipes de Atenção Primária, Secundária e Terciária, construindo, junto às populações migrantes, uma Política Nacional de Saúde como forma de garantir a equidade no SUS. O movimento protagonizado pela sociedade civil, aqui descrito pelo recorte da atuação da FENAMI, aponta para políticas públicas na promoção de uma acolhida mais responsável e sensível às diferenças, a partir de uma perspectiva ético-política e democrática. Debater o cuidado em saúde nesse campo deve ser algo permanente, que nos convoca ao cuidado transdisciplinar, intersetorial e que valorize epistemologias diversas. O engajamento das(os) profissionais de saúde é essencial nos processos de participação social, contribuindo na luta por uma sociedade com efetiva justiça social e com o fortalecimento de políticas públicas migratórias que sejam, em especial, sensíveis a questões de gênero.

Sobre a autora

Gabriela Carvalho Teixeira é Psicóloga residente em Gestão de Políticas Públicas para a Saúde, na Escola de Governo Fiocruz-Brasília. Coordenadora do Núcleo de Psicologia e Migrações – NUPSIM, do Conselho Regional de Psicologia do Paraná. Membro da coordenação nacional da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes – FENAMI.

Referências

ACNUR. (2017). Uma em cada cinco refugiadas é vítima de violência sexual no mundo. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2017/06/23/ uma-em-cada-cinco-refugiadas-e-vitima-de-violencia-sexual- -no-mundo/ 

Branco-Pereira, A. (2021). A saúde de imigrantes e refugiados: um debate necessário. São Paulo: MigraMundo. Disponível em: https://migramundo.com/a-saude-de-imigrantes-e-refugiados-um-debate-necessario/

Costa, N. B.; Gurgel, H. & Matos, K. F. (2020). Migração e Saúde: inter-relações, legislação e acesso: inter-relações, legislação e acesso. Tempus – Actas de Saúde Coletiva, 14(3). Disponível em: https://doi.org/10.18569/tempus.v14i3.2866

OIM (Organização Internacional para as Migrações) e UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas). (2006). Female Migrants: Bridging the gaps throughout the life cycle. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/female_migrants.pdf

ONU Mulheres. (2021). Boas Práticas e Lições Aprendidas para a Igualdade de Gênero na Resposta Humanitária ao Fluxo Migratório Venezuela/Brasil. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2021/07/RELATORIO-BOAS-PRA%CC%81TICAS-E-LIC%CC%A7O%CC%83ES-APRENDIDAS-VFINAL-2306.pdf

Paim, J. S. (2018). Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciência & Saúde Coletiva, 23(6), 1723–1728. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018Tonhati, T. & Pereda, L. (2021). A feminização das migrações no Brasil: A inserção laboral das mulheres imigrantes (2011-2020). Em Cavalcanti, L.; Oliveira, T. & Silva, B. (Org.). Relatório Anual 2021 – 2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e o refúgio no Brasil. Brasília, DF: OBMigra.

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