Por Dionathan Ysmael Rodrigues da Silva*
O tema das migrações e da proteção internacional dos migrantes e refugiados é cada vez mais presente no campo da política internacional contemporânea. Diversas pessoas se encontram em mobilidade ao redor do mundo, cruzando fronteiras por diversos motivos, como de origem econômica, eis que a busca por trabalho e uma vida plena – em sua totalidade, indivisibilidade e integralidade – é um anseio do ser humano em diversas partes do globo.
Dentro da área dos Estudos Migratórios há um grande debate sobre os fatores que impulsionam a migração, ou os condicionantes do ato de migrar. Bem como os limites entre a migração forçada (onde a pessoa migra para sobreviver) e a voluntária (em que há o critério da escolha pelo ato de migrar). Debate que mobiliza a área de estudo das migrações e as diversas abordagens sobre o fenômeno multicausal da migração. Do mesmo modo, surgindo críticas para até que ponto se escolhe migrar, haja vista que em muitas situações a pessoa humana se encontra numa realidade marcada pela vulnerabilidade e a marginalização social do país de onde provém. Como, por exemplo, falta de acesso a emprego e renda que garantam os meios necessários à vida plena do migrante e membros de sua família. Bem como falta de oportunidades sociais e de acesso a serviços de saúde.
Todavia, um tema comumente marcado pela invisibilidade na realidade dos estudos de migrações internacionais – no caso do presente texto associado as migrações forçadas – e do Direito Internacional dos Refugiados é o debate que intersecciona a questão do gênero, da sexualidade e da migração. Temática atual e que necessita de cada vez mais pesquisas, investigações e políticas públicas direcionadas para a realidade, às demandas e às especificidades de inúmeros imigrantes e refugiados como as mulheres ou pessoas que solicitam status de refugiado por pertencerem ao “grupo social” dos refugiados LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais). Minorias, foco de análise do presente esboço, que por questões de gênero e de sexualidade, impõem novos desafios às áreas de políticas e práticas migratórias, principalmente relacionadas a questões de direitos humanos, de orientação sexual e de identidade de gênero.
De acordo com os Princípios de Yogyakarta (2007), documento elaborado por especialistas da área de estudos de gênero e de sexualidade, são estabelecidas diretrizes que podem nortear a atuação dos Estados e demais agentes perante a realidade das minorias sexuais e de gênero, apesar de não ser um documento vinculante (que impõe obrigações aos Estados). Princípios de valor ímpar, principalmente por trazerem a questão da orientação sexual (conforme Yogyakarta, capacidade de cada pessoa ter uma profunda atração emocional, afetiva e sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas) e da identidade de gênero (segundo Yogyakarta, profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo – que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros – e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos).
Segundo o artigo 23 dos referidos Princípios, as pessoas que sofrem algum tipo de perseguição (institucional, estrutural ou não) têm direito de se refugiar (de buscar asilo) em outros países. Assim, atos persecutórios para as referidas minorias, bem como o fundado temor de perseguição por agentes estatais ou não-estatais, quando direcionados às minorias sexuais e de gênero lhes garantem o direito à solicitação do status de refugiado por pertencerem a um “grupo social” perseguido e discriminado. Minorias que comumente são vistas como “ameaça” ou “subversão” aos valores culturais ou religiosos de alguns países, principalmente nações confessionais (onde não há separação entre o Estado e a religião).
Atualmente há diversos casos de solicitantes de refúgio no Canadá, Estados Unidos, Austrália e países da União Europeia e, até mesmo, no Brasil por questões de gênero e de sexualidade. Em geral, os imigrantes relatam casos de perseguição em sua trajetória de vida, tendo sofrido ameaças, violência física e/ou simbólica, agressões ou vendo seus companheiros sendo mortos de diversas formas, como apedrejamentos por exemplo. Casos de “estupros corretivos” (sofridos por lésbicas em primazia, pois em alguns lugares essa forma de abuso sexual é vista como “tratamento” ou “cura” para a homossexualidade), enforcamentos, fogueiras onde são queimados humanos vivos, espancamentos, linchamentos e demais atos ou ofensas que atingem o físico e/ou o psicológico de membros da Comunidade LGBTTI.
Relatos de imigrantes e refugiados que passaram por situações como essas são chocantes. Embora muitas pessoas pertencentes ao “grupo social” das minorias sexuais e de gênero não consigam nem sequer emigrar, sendo mortas em seus países de origem ou até mesmo em seus trajetos migratórios. Outras pessoas podem ficar em seus países de nascimento, “as escondidas”, em pequenos “guetos”, marginalizadas e estigmatizadas socialmente. Passíveis de enfermidades como a AIDS e o tratamento inadequado de soropositivos que são deixados “à própria sorte”. Bem como a falta de acesso a serviços de saúde, de educação ou de segurança pública visto o descaso e a negligência dos organismos estatais em atenderem suas demandas, como quando pessoas LGBTTIs são agredidas e recorrem a órgãos de amparo de seus países e sofrem deboches, ameaças e podem até ser presas por “serem quem são”. Algumas outras findam por viver “dentro do armário” sobre vivências heteronormativas, isto é, adotando posturas que se “ajustem” aos padrões sexuais e de gênero de seu povo, cultura ou religião. Muitas pessoas podem se casar com alguém do sexo oposto e terem filhos por exemplo. Assim, acabando por não poderem expressar livremente sua orientação sexual e identidade de gênero, que são, de fato, de direito humano.
De acordo com relatórios da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Transexuais e Intersexuais (ILGA), sobre Homofobia patrocinada pelo Estado, mais de 70 países punem relações sexuais e de gênero que não se adequem aos padrões heteronormativos, binários e cisgêneros de alguma forma, isto é, os padrões tradicionais “do que cabe” ao “masculino” e ao “feminino”, ao “homem” e à “mulher”, e que interligam, de modo geral, o órgão genital da pessoa à sua sexualidade e condicionam ou impõem padrões de conduta com base no sexo de nascimento da pessoa. As punições para as pessoas que “se desviem”, ou que sejam consideradas “subversivas” ou “ameaçadoras” aos papeis socialmente construídos e atribuídos ao que se concebe em determinada sociedade por “homem” e por “mulher”, podem variar desde chicotadas, à prisão perpétua, ou, até mesmo, à pena de morte.
Em extremos maiores, a perseguição, muitas vezes institucionalizada e permitida pela própria legislação do país (através de leis homo/lesbo/transfóbicas sob a égide do Direito Penal/Criminal daquele país, ou, quando for o caso, livros religiosos considerados “sagrados”), permitem que atos persecutórios se tornem corriqueiros e sejam praticados por diferentes segmentos da população. Casos de alguns países africanos como Uganda, Somália, Sudão e de países como o Irã, onde impera o regime religioso da Sharia, ou até mesmo da Lei Anti-gay na Rússia são exemplos que ilustram o exposto e que causaram alvoroço na comunidade internacional devido as consequências humanas que passa(ou) a Comunidade LGBTTI e as minorias após essas leis vigorarem.
Além disso, há o próprio descaso para com direitos civis, econômicos e sociais, como o direito à saúde e à educação às referidas minorias. Direitos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, como o princípio da igualdade independentemente do sexo da pessoa, e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Pactos que são marcos na área do direito internacional dos direitos humanos.
Além do exposto, há a própria estigmatização social e a perseguição de agentes não-estatais como a sociedade civil e grupos nela presentes (caso de solicitantes de refúgio colombianos no Brasil, os quais sofriam perseguição proveniente de guerrilhas em seu país de origem), que quando negligenciada pelo Estado, dado o descaso em atender às demandas das minorias sexuais e de gênero como julgamento e punição de crimes de ódio e homofobia por exemplo, pode ser considerada como um condicionante da migração forçada devido ao fundado temor de perseguição a determinado “grupo social” (coeso, e que possui características imutáveis que o definem, como a sexualidade), conforme previsto no artigo 1º da Convenção de 51, e as maciças violações de direitos humano conforme previsto da Declaração de Cartagena de 1984.
Embora o exposto, na própria normativa internacional relativa à proteção internacional dos refugiados, caso da Convenção de 1951 (o Estatuto dos Refugiados) e o Protocolo de 1967 em âmbito global, bem como a Convenção de Cartagena de 1984 no cenário latino-americano, não se expresse claramente a questão do direito ao refúgio por questões de gênero e de sexualidade. Apesar de diretivas da União Europeia (do Conselho de Direitos Humanos Europeu) e pronunciamentos e recomendações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e da Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), seus organismos e representantes – após intensos debates e reivindicações de movimentos sociais feministas e dos direitos LGBT – expressarem um entendimento acerca das questões das minorias sexuais e de gênero como um “grupo social” coeso.
Também está ocorrendo maior compreensão da questão da condição da mulher refugiada. Bem como outras interpretações que ampliam o status de refugiado por questões ambientais (caso dos refugiados ambientais), humanitárias (caso do refúgio humanitário para haitianos no Brasil, por exemplo), por questões de parentesco (caso de descendentes de pessoas perseguidas por governos ditatoriais na América Latina, como exemplo). Porém, ainda sim, o entendimento acerca dos migrantes LGBTTIs, ou queer refugees, e em especial de questões consagradas em 2007 nos Princípios de Yogyakarta está aquém do necessário. Visto que muitos países não expressam opiniões concretas acerca da problemática, e alguns nem sequer reconhecem a condição de refugiado às minorias sexuais e de gênero.
Embora a realidade exposta, está aumentando o número de refugiados LGBTTIs ao redor do globo. Principalmente em países democráticos. Todavia, há diversos desafios e problemas envolvendo o caso desses imigrantes, principalmente relativos ao processo de pedido e avaliação da concessão de refúgio e à adaptação desses refugiados à nova realidade. Muitos queer refugees têm medo ou vergonha de relatarem suas vivências e, mais ainda, sentem-se “acuados” perante perguntas invasivas e demais procedimentos interrogativos que visam “comprovar” que a pessoa é gay, lésbica, trans, etc. Bem como, convivem nos mesmos espaços coletivos com demais imigrantes de seus países de origem, que os fazem relembrar de todos os sofrimentos que passaram. Isso quando não se encontram em campos de refugiados completamente desamparados de algum apoio e proteção relacionada à realidade das referidas minorias. Passando por ofensas, chacotas e demais experiências que tendem a fazer com que a pessoa LGBTTI se sinta indefesa.
Como conclusões do presente trabalho – que é apenas um esboço que problematiza a realidade de muitas e muitos, comumente desamparados – recomenda-se que os Estados tendam a adotar um entendimento direcionado aos Princípios de Yogyakarta – que são um excelente material para adoção de políticas públicas LGBTTIs – bem como concedam refúgio de acordo com os novos entendimentos da ACNUR. Com relação as pessoas e entidades – como Departamentos Migratórios e demais organismos envolvidos no processo de acolhida – se sugere como medidas: promoção de cursos e capacitações para funcionários que atuam na área, sendo estas relacionadas com questões de gênero e sexualidade de modo a prevenir que eles tenham posturas que denotem certo preconceito ou marcadas por estereótipos, de modo a evitar, por exemplo, perguntas e tratamentos invasivos à privacidade dos solicitantes, além de os conscientizar sobre o tema; construção de espaços adequados para a acolhida em centros de refugiados; atendimento psicológico e psicossocial para os refugiados LGBTTI nos centros e campos, pois muitos passam por experiências tão traumáticas que não conseguem nem falar acerca de si, muitos menos de sua sexualidade perante entrevistadores, que são pessoas estranhas (que “mal conhecem”); atenção de saúde e serviço médicos em centros de acolhida, há trans migrantes, por exemplo, que podem ter perpassado por cirurgias e procedimentos para chegarem ao “corpo desejado” e que possuem diversas sequelas e necessitam de atendimento adequado; como dito antes, espaços reservados para as minorias – quando necessário – pois muitos se sentem “acuados” quando convivem com imigrantes compatriotas visto que relembram de experiências que sofreram, podem sofrer discriminação e, em geral, têm medo de falarem acerca de si e de sua sexualidade perante “os olhos do coletivo”, ou melhor, não querem se expor; procurar acelerar os procedimentos burocráticos e administrativos para a concessão do status de refugiado, pois a demora pode fazer as pessoas “perderem as esperanças”, desistirem, ou até mesmo se suicidarem (como acontece com alguns refugiados LGBTTIs que se encontram em campos), além de um entendimento especial acerca da questão das documentações e da porventura falta delas, em especial, quando a pessoa for trans pois pode apresentar uma aparência completamente diferente das fotografias de seus documentos (caso tenha passado por procedimentos estéticos e de mudança de visual); evitar transferir os refugiados de um campo à outro seguidamente, pois isso pode corroborar em problemas de adaptação e no caso dos LGBTTIs podem ir para campos de refugiados onde sejam mais discriminados; e, principalmente, os Estados de destino não deportarem, através de diretivas de retorno ou de devolução, essas pessoas aos seus países de origem, pois isso pode significar, em muitas situações, a morte.
Por fim, buscar amparo de entidades públicas e privadas que possam oferecer recursos, bem como ONGs especializadas que possam atuar nos processos de acolhida. Muitas refugiados LGBTTIs precisarão de oportunidades de educação, como acesso a escolas e universidades, programas de alfabetização, programas de ensino de língua estrangeira (muito necessários pois muitos imigrantes e refugiados não falam o idioma do país de destino) e, principalmente, oportunidades de emprego e geração de renda.
Portanto, como discorrido, são inúmeros os desafios, desde o reconhecimento do nome social para imigrantes trans à real inclusão social das pessoas LGBTTIs na sociedade de destino. São passos graduais, necessários e que dão visibilidade para uma realidade muitas vezes “à margem”, mas que, acima de qualquer coisa, oportunizam “direitos iguais e com os mesmos nomes”. Pois essas pessoas são também, de acordo com toda a revisão normativa realizada, passíveis do status, da condição, da nomenclatura e dos direitos das pessoas refugiadas e, como tais, devem ser reconhecidas.
Dionathan Ysmael Rodrigues da Silva é acadêmico de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e membro CNPq do Núcleo de Pesquisas, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional (MIGRAIDH). Aprovado para estudar Ciência Política em 2015/1, em regime de mobilidade internacional, na Universidad Nacional del Litoral (Argentina) sob o marco do convênio “Programa ESCALA AUGM”. Maiores informações, dúvidas ou sugestões acerca do texto, contá-lo pelo e-mail: [email protected]