Como parte da série “Deslocados e Descartáveis”, a pesquisadora social Bruna Kadletz relata sobre o último deslocamento forçado no Haiti devido ao Furacão Matthew. Enquanto milhares de haitianos continuam a coletar os pedaços das suas vidas, alguns estão se deslocando rumo aos Estados Unidos em busca de estabilidade.
Por Bruna Kadletz
De Florianópolis (SC)
Publicado originalmente em inglês no Refugees Deeply (leia aqui)
Após o devastador terremoto de 2010 no Haiti, que tirou a vida de mais de 220 mil pessoas, milhares de sobreviventes do desastre caminharam até o Brasil para reconstruírem suas vidas.
Desesperados e sem apoio, haitianos mais uma vez arriscaram suas vidas em rotas perigosas – primeiro escapando para a República Dominicana, para depois passarem pelo Panamá, Equador e Peru, onde coiotes os atravessavam do lado peruano da Floresta Amazônica para o território brasileiro.
O governo brasileiro, ao invés de construir muralhas e prender os imigrantes em centros de detenção (prática comum da “Fortaleza Europeia”), ofereceu residência permanente a quase 44 mil haitianos em 2015. Esta decisão, apesar de possuir questionamentos relevantes, os possibilitou acesso ao mercado de trabalho formal, sistema de saúde e educação.
Contudo, com a crise econômica no Brasil, os haitianos foram os primeiros a sofrer com desemprego prolongado.
Agora que o Haiti foi atingido por outro desastre natural – o Furacão Matthew – tanto os recém-deslocados como aqueles que estão deixando o Brasil parte rumo a América do Norte. Enquanto os haitianos aguardam em abrigos sobrepovoados no México, seus futuros estão nas mãos das autoridades americanas.
Ainda que sua admissão nos EUA seja incerta, retornar para casa certamente não é uma opção viável para os solicitantes de asilo haitianos, especialmente depois da última tormenta destruidora.
‘Devastação Total’
Ventos fortes e chuva torrencial atingiram a península sudeste da ilha caribenha no dia 4 de outubro, destruindo vilas costeiras, isolando regiões inteiras, destelhando casas e varrendo plantações.
Quando o furacão de categoria 4 chegou ao país, ele deixou as cidades de Jeremie e Les Caves debaixo da água. O extensivo dano a estruturas e a dificuldade em acessar água limpa, comida e medicina, fez com que a situação se transformasse na pior crise humanitária no Haiti desde o terremoto de 2010.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 2 milhões de haitianos foram afetados pelo Matthew, enquanto que quase um milhão e meio de pessoas estão precisando de assistência humanitária urgentemente. A Direção da Proteção Civil do Haiti já confirmou 546 mortes e 438 feridos durante a tempestade, mas esses números ainda podem subir uma vez que áreas isoladas restaurarem comunicação com o resto do país.
Com a destruição de milhares de casas, comunidades inteiras estão desabrigadas e deslocadas, já que muitos perderam seus lares e forma de subsistência, e agora buscam por refúgio em abrigos temporários ou mesmo nas ruas. Como as fortes chuvas varreram plantações, quase um milhão de pessoas estão sob o risco de insegurança alimentar.
Ao visitar o país após o desastre, o secretário geral da ONU, Ban Ki-moon, disse que o estrago causado pelo Furacão Matthew era de “partir o coração”, descrevendo a situação de “devastação total”. “Eu ouvi muitas vítimas. Eu senti sua dor. Eu entendo a sua frustração, e até raiva,” Ki-moon declarou.
Desapropriação no Haiti
O Furacão Matthew somente agravou a já existente desapropriação social e material vivenciada pela maioria dos haitianos, que ainda estavam se recuperando de prévios desastres naturais.
Como o Haiti é o país mais pobre do Hemisfério Ocidental e fica localizado em um corredor de furacões, muitos estão inclinados a acreditar que as recorrentes crises humanitárias no país são frutos somente da má sorte geográfica e falta de recursos financeiros.
Contudo, é importante observar que a vulnerabilidade a tempestades e furacões do Haiti, e as consequentes crises de deslocamento dentro e fora do país, tem sido significantemente exacerbada pela combinação de discriminação socioeconômica, exploração de ecossistemas frágeis e escolhas políticas do governo.
Políticas de desenvolvimento pobre e desflorestamento tem removido a proteção natural da terra, deixando áreas rurais mais suscetíveis ao deslizamento de terra e zonas urbanas a enchentes e alagamentos. Enquanto isso, a mudança climática tem aumentado a frequência e intensidade dos padrões climáticos na região.
A pobre infraestrutura do Haiti, deficiente saneamento básico e construções frágeis amplificaram mais ainda a crise.
Comida e água potável estão escassas, portanto, insegurança alimentar e doenças infectocontagiosas adicionam mais pressão ao custo humano do desastre. Nas áreas atingidas pelo furacão, diarreia e casos de cólera continuam a aumentar. Para muitas dessas comunidades, o risco de outra epidemia descontrolada de cólera reaviva as memórias dolorosas do terremoto do 2010.
Falha do Sistema Humanitário
A falta de preparo também contribuiu para a escala da destruição. Apesar de possuir um longo histórico de desastres causados por fenômenos climáticos seguidos por catástrofes humanitárias – desde Hazel em 1954 até Fay, Gustav e Ike em 2008 – uma quantia insignificante foi investida em prevenção de desastres ou medidas de mitigação no Haiti nos últimos anos.
De fato, a lucrativa indústria humanitária tem sido, repetidamente, acusada de falha no país.
Jocelyn McCalla, diretora executiva da Coalisão Nacional dos Direitos dos Haitianos, aponta para a falta de visão e vontade política em investir em capacidade de resposta a desastres naturais. “O Fundo de Reconstrução do Haiti – um fundo monetário estabelecido em 2010 e gerenciado pelo Banco Central em nome de diversos países – direcionou até o dia 30 de junho deste ano, uma quantia irrisória de 16,7 milhões de dólares, de um total de 351 milhões, para alívio de desastres,” McCalla escreve. “Uma das razões pelas quais somente uma pequena fração do dinheiro tenha sido usada até o momento é que a maioria do dinheiro seria destinada para a reconstrução do terremoto.”
Política da Morte
A devastação atual do Haiti é o resultado não somente de uma pobreza herdada e da vulnerabilidade climática, mas também do necropoder, ou a política da morte.
Achille Mbember, filósofo africano e escolar, conecta o necropoder – que seriam estratégias e tecnologias que expõem deliberadamente determinadas populações ao poder da morte – com dominação colonial, exploração do capitalismo e desumanização racial.
Durante os anos de escravidão dos africanos e colonização francesa, e depois durante a ocupação americana no começo do século XX, os haitianos foram sistematicamente desapropriados e sujeitos a violência e morte.
Atualmente, haitianos continuam a ser expostos a tais políticas desumanas pelo seu próprio estado. Em uma nação com extrema discrepância econômica como o Haiti, quando autoridades nacionais e internacionais ignoram o investimento em medidas de prevenção e mitigação de desastres naturais e estruturas mais seguras em comunidades com baixa renda, tais autoridades ignoram o valor da vida de milhões de haitianos. Esta forma de necropoder é brutal. Ao considerar a vida de milhões de haitianos descartáveis, autoridades nacionais e internacionais também os forçam a atravessar as fronteiras em busca de uma vida com dignidade.
Seja no Haiti, Brasil ou na fronteira entre os EUA e México, ou pelo rápido esquecimento da comunidade internacional sobre a crise humanitária vivida no país, a sensação é que haitianos forçados a se deslocar devido a desastres naturais são tratados como se suas vidas valessem menos ou fossem descartáveis.