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quinta-feira, março 28, 2024

Idealizado por latino-americanas, coletivo ELAS auxilia mulheres migrantes na Alemanha

Aprovado pela prefeitura da cidade de Kassel, no centro do país, o espaço virtual ELAS promete realizar uma série de ações em apoio a mulheres migrantes no país europeu

Por Enio Moraes Júnior (*)

A Alemanha tem hoje 83,7 milhões de habitantes, segundo dados oficiais. Destes, cerca de 14% são imigrantes. Com o objetivo de conectar e auxiliar aqueles que vivem fora da sua nação, proliferam no país iniciativas que variam de festas e eventos culturais a comunidades virtuais e aplicativos. O coletivo ELAS, desenvolvido a partir de uma iniciativa de mulheres sul-americanas para auxiliar outras mulheres – que correspondem a quase 50% dos imigrantes vivendo na Alemanha – é um exemplo desse tipo de proposta.

Aprovado pela prefeitura da cidade de Kassel, na região de Hessen, no centro do país, o espaço virtual promete mapear oportunidades de trabalho, abrir portas para socialização e garantir segurança para mulheres que, somado a todos os desafios da migração, como a xenofobia e as dificuldades do idioma, muitas vezes ainda são vítimas de estereótipos misóginos. A seguir, uma conversa com as idealizadoras do ELAS, duas migrantes que vivem em Kassel: a brasileira Leila Barros Moura Saathoff e a argentina Ximena Martínez-Kleiner.


MigraMundo – Que informações estão sendo mapeadas pelo ELAS e com que objetivos? Em que fase se encontra o projeto nesse momento?

Leila Barros Moura Saathoff – Nós estamos mapeando seis pontos que achamos importantes para a emancipação e independência da mulher imigrante e também para outros novatos na cidade: saúde, educação, trabalho, direito da mulher, cultura e socialização e área de risco e acolhimento. Em saúde, por exemplo, pretendemos mapear médicos da família, ginecologistas e psicólogos que falam outras línguas. Em educação, pretendemos informar sobre cursos de alemão, cursos profissionais, jardim infância e escolas. Com relação às áreas de risco e acolhimento, queremos destacar lugares onde nós, mulheres imigrantes, nos sentimentos seguras e áreas onde sofremos algum tipo de assédio, discriminação, lgbtfobia, racismo ou xenofobia. Para isso, contaremos com a participação da sociedade em geral. Além desses pontos, pretendemos destacar lugares que são “barrierefrei”, acessíveis para pessoas com deficiência física.

Nossa iniciativa foi selecionada para a campanha UNIKAT CROWDFUNDING 2022, sob o lema “Smart Idee für Kassel” (Ideias inteligentes para Kassel) que tem como apoiadores a Universidade de Kassel, o Wirtschaftsförderung Region Kassel (setor de desenvolvimento econômico da cidade), Science Park Kassel GmbH e a Cidade de Kassel. O objetivo da campanha é apoiar projetos que pensem como as novas tecnologias podem ser integradas de forma significativa no cotidiano das pessoas e como podem promover a interação social.  A campanha tem duração de um mês. Nesse momento, completamos duas semanas no ar e atingimos 57% da primeira meta, que cobre a realização da cartografia. Após a primeira, a segunda meta é ativada e pretendemos utilizar o valor arrecadado para realização da plataforma (website). Em um futuro próximo, não incluso neste Crowdfunding, pretendemos lançar também o aplicativo.

Até que ponto a ideia do ELAS tem a ver com as experiências de migração das integrantes do grupo? Quais as principais dificuldades que vocês, duas mulheres sul-americanas, enfrentaram ao chegar à Alemanha?

Ximena Martínez-Kleiner – Nós consideramos que uma das maiores dificuldades é poder ter a vida e a independência que tínhamos nos nossos países. Dirigir, trabalhar na nossa área, criar um círculo de amizades como também desenvolver outras atividades que não estejam relacionadas com os cuidados do lar, torna-se um desafio enorme. Nós precisamos, de certa forma, voltar a conquistar toda uma vida em muito pouco tempo, com poucos recursos e sem saber a língua. A falta de tempo e de energia fazem com que muitas mulheres não consigam sair da situação de dependência (não somente financeira) e se sintam profundamente frustradas. O ELAS pretende providenciar informações, como a Leila já mencionou, para que as mulheres sintam-se apoiadas, possam compartilhar suas experiências e cheguem, talvez sem tantos obstáculos, a obter o que desejam, sem ter que esperar “a sua vez” ou, no pior dos casos, adiar os seus interesses de forma permanente.

A Alemanha recebe diversos estrangeiros para trabalhar, que chegam com suas famílias. Como vocês avaliam a adaptação dessas famílias ao país e a questões como o trabalho, a escola das crianças e o clima?

Ximena – A adaptação é uma questão muito subjetiva, e é principalmente um processo. Eu não conseguiria responder a essa pergunta de forma simplificada ou como se existisse um guia ou receita. Nós consideramos que para poder se sentir à vontade num lugar, “adaptar-se” e “integrar-se” é necessário falar a língua, aprender os costumes e ter a chance de socializar-se com as outras pessoas sem olhar para essa interação dividindo entre o “exótico” (estrangeiros) e o “instituído” (alemães), mas como um enriquecimento para ambas as partes. Poder trabalhar na nossa área é uma conquista que poucos conseguem. Aqui, precisamos fazer qualquer tipo de trabalho para garantir a nossa subsistência… Na Alemanha, as escolas possuem cursos de idiomas para os estudantes estrangeiros e eles conseguem interagir com outras crianças e estar em contato direto com a língua, coisa que as mães, muitas vezes, não conseguem porque não contam com tempo para fazer os cursos.

O clima é um ponto mais difícil ainda de descrever. Sentir frio, muitas vezes também nos paralisa. Não estamos acostumados a fazer passeios com chuva, neve e temperaturas baixas como os alemães. Para a gente, também é difícil participar de atividades desse tipo, que são tão típicas e normais. Com o decorrer dos anos, nós conseguimos e aprendemos a lidar com o frio, mas o que fica realmente difícil é lidar com a escuridão e as poucas horas de sol. No inverno, às 3h30 da tarde já está completamente escuro! Eu pessoalmente tenho uma lâmpada que imita o sol para passar o inverno…

Como o coletivo pretende incluir mulheres migrantes transgênero e transexuais?

Leila – Além de todo o mapeamento no qual consideramos todas as mulheres, independentemente de serem cis ou trans, pretendemos mapear grupos e lugares que apoiam especialmente esse grupo de mulheres. Também pretendemos sinalizar os lugares de risco, onde as mulheres trans sofrem discriminação. E estamos com chamamento aberto para mulheres trans que queiram contribuir no desenvolvimento deste trabalho com a gente, respeitando esse lugar de fala.

Xenofobia e racismo ainda são muito presentes em países europeus, onde muitas pessoas ainda não percebem o migrante como alguém com potencial de troca, de enriquecer cultural e economicamente o país-destino. Iniciativas como o ELAS ajudam a fomentar a imagem do migrante como um sujeito empoderado e empoderador?

Leila – A ideia é justamente essa. Quando chegamos em um novo país, não nos sentimos parte dele e alcançar esse nível de “plenitude” é um processo longo que eu, particularmente, ainda não conheço. Contudo, nós existimos na cidade, nós participamos ativamente desse novo lugar, trabalhamos, pagamos impostos, criamos nossos filhos aqui, contribuímos de forma ativa. Nós cumprimos os mesmos deveres, porém não usufruímos os mesmos direitos. Recentemente, em um evento da Documenta, um encontro de latinos americanos, um dos nossos disse “eu já aprendi a língua alemã, eu trabalho, eu pago impostos, o que mais preciso fazer para me integrar?”. A reflexão sobre essa pergunta é muito ampla, sabemos disso, pois passa por um processo subjetivo e particular do indivíduo, porém ela está intrinsecamente relacionada à maneira como a sociedade nos recepciona e nos vê. Muitas vezes essa sociedade não está disposta a dialogar, como você mencionou. Eu já ouvi muitas vezes, por exemplo, “você está aqui agora, precisa se adaptar” e já escutei relatos de pessoas próximas que ouviram “mas se você não está feliz aqui, por que não volta para o seu país?”. Eu não me oponho a essa adaptação, estou disposta a aprender, a escutar e sou “obrigada” a fazer isso todos os dias, mas quem está aqui está disposto também a ouvir e a aprender? Afinal de contas, o governo está o tempo todo falando de integração, mas o que de fato está sendo feito para que as pessoas nos recebam e nos vejam como indivíduos pensantes e políticos, com direito a participação e contribuição também na vida social?

Enfim, são mais questões do que respostas e, motivadas por essas e tantas outras perguntas, nós criamos o coletivo, que procura navegar contra essa lógica hegemônica e individualista. Estamos o tempo todo pensando em atuações coletivas, queremos que as pessoas imigrantes sintam que a cidade pertence a elas também. Nossa forma de contribuir para esse processo é justamente facilitando acesso a essas informações, deixando em um único lugar informações sempre atualizadas e em quatro idiomas. Entendemos que é importante saber em quais canais pedir ajuda em caso de violência ou onde estão os grupos de apoio. Acreditamos, sim, que nosso projeto contribuirá para um sujeito mais autônomo e independente. Não achamos que vai resolver o problema de integração – e também não queremos assumir esse papel – mas com certeza contribuirá para que essa pessoa se sinta mais forte, sabendo que não está sozinha nesse processo e que pode dialogar e ser ouvida, uma vez que a ideia da nossa plataforma é dar espaço para esse tipo de interação.

Do ponto de vista visual, como também da navegação e do uso das redes sociais, o projeto ELAS tem grande qualidade e o conteúdo está disponível em quatro idiomas: espanhol, português, inglês e alemão. Como foi pensar e construir tudo isso?

Lelia – Para a gente, a estética visual é muito importante. Trabalhamos sempre com cores alegres, cores quentes que são típicas do estereótipo latinoamericano que nós amamos. De cinza, já basta o céu da Alemanha (risos). Nós trabalhamos nos quatro idiomas: alemão, porque estamos no país; inglês, porque é acessível para muitas pessoas, e espanhol e português, porque são nossas línguas maternas. Afinal, pensamos e criamos em português e espanhol! Nossa língua também é quem somos e manter essa essência é muito importante para nós, é uma forma de nos aproximar e dialogar com os nossos.

Ximena – Nós começamos por esses quatro idiomas, mas o nosso sonho é poder traduzir a informação para a maior quantidade de línguas possível, para que o começo da vida na Alemanha seja um pouquinho menos complicado.

(*) Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio Online

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