Por Eleonora Silanus
De Turim (Itália)
Lampedusa é uma pequena ilha italiana, daquelas cheias de praias maravilhosas: perfeita para um cartão postal. Com uma superfície de 20 km², fica entre a Itália e a Tunísia e é destino de férias de muitos turistas. Por Lampedusa ser mais próxima da África, a partir dos anos 90 começou a ser conhecida também como o destino principal dos migrantes africanos em fuga de guerras, perseguições e da miséria.
A história de Lampedusa – ainda sem um final – representa perfeitamente a relação entre os três protagonistas das migrações na Europa: os migrantes, o país (nesse caso a Itália), e a população.
Os números
Nos últimos 20 anos chegaram na ilha mais de 300.000 pessoas, segundo dados do Ministério do Interior italiano e do ACNUR, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados. Até 1998 o principal porto de origem dos migrantes era o da Tunísia; no mesmo ano foi assinado um acordo entre Itália e Tunísia e o país africano começou a limitar fortemente a emigração. Como resultado, as pessoas começaram a fugir da África pelo porto da Líbia.
O ano no qual Lampedusa acolheu o maior número de migrantes foi o 2011 – cerca de 51.000 – depois de dois anos de redução drástica das chegadas (entre 2009 e 2010 a migração diminuiu em 90%). A razão da diminuição foi um acordo – com conteúdo secreto – entre a Itália e a Líbia, que causava a deportação dos migrantes antes de chegarem na costa italiana. Estas ações provocaram uma condenação da Itália pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O número voltou a aumentar com o começo da chamada Primavera Árabe, em 2011.
Milhares de pessoas morreram no Mar Mediterrâneo e vários naufrágios associaram o nome da ilha à palavra “tragédia”. Os dois mais graves foram o da noite de natal de 1996 (289 migrantes perderam a vida no porão de um navio) e o de 3 de outubro de 2013, no qual morreram 366 pessoas. Logo após este último naufrágio começou a operação italiana de resgate chamada Mare Nostrum (que permaneceu ativa até novembro de 2014), no qual o resgate era realizado no próprio mar pela Guarda Costiera, levando os migrantes até o Centro de Acolhimento na ilha, para em seguida mandá-los a outras cidades italianas.
Na ilha
O número de migrantes que chegaram na Europa através de Lampedusa é enorme: a ilha tem pouco mais de 6.000 habitantes e consequentemente não possui hospitais e serviços para acolher uma média de 15.000 migrantes por ano. Em 2011, eram mil migrantes a mais que habitantes.
Os moradores são na maioria pescadores e agricultores, e um dos maiores recursos econômicos é o turismo. A partir dos anos 90 o relacionamento entre o povo de Lampedusa e o governo italiano se tornou conflituoso: os habitantes se sentiram “abandonados”. As imagens dos barcos cheios de imigrantes entraram com força nas casas das pessoas. O turismo diminuiu e, em várias entrevistas, os moradores expressaram a raiva contra um país que fingia não enxergar a situação: para uma ilha que vive de turismo a imagem é tudo. Os habitantes pedem verba, serviços e estruturas que possam responder às exigências de quem foge da guerra e não reportagens que falam de “invasão” e de “clandestinos”. O governo italiano usou a situação de Lampedusa para fomentar a opinião pública contra os migrantes, deixando os seus cidadãos para lidar com necessidades às quais só um país inteiro poderia responder.
A Itália não assumiu o papel de protagonista na história de Lampedusa, escolheu aquele de espectador. De fato, são os moradores e os migrantes que constroem uma história de solidariedade há mais de 25 anos. Nas palavras de quem vive na ilha, é quase impossível encontrar ódio e raiva por quem acabou de chegar. Existe preocupação, mas é compreensível para quem esta acostumado a morar num lugar paradisíaco e de repente se encontra no meio de uma crise mundial. Nas descrições deles se fala de acolhimento nas casas, ensino da língua italiana, presentes de natal para as crianças; se fala em compartilhar e não em rejeitar. Para quem vive esta situação há anos não faz mais sentido considerá-la uma “emergência”: os navios de migrantes que chegam no porto eram e são o cotidiano, assim como o trabalho feito para acolhê-los.
O reconhecimento
Nas últimas semanas Lampedusa voltou a ser protagonista das primeiras páginas dos jornais europeus por conta do filme Fuocoammare (em inglês, Fire at Sea, e ainda sem nome em português), do diretor italiano Gianfranco Rosi, que conta a história dos habitantes da ilha. O longa descreve as pessoas e, entre elas, o único médico da ilha, Pietro Bartolo, que em quase 25 anos atendeu pessoalmente mais de 250.000 migrantes. “O papel de Lampedusa em todos estes anos tem a ver com a Europa inteira. Existe quem levanta muros ou arame farpado, mas não serão nem os muros nem o arame farpado a parar estas pessoas. O único jeito para ajudá-las é atuar no país de origem, e até o dia em que isso não for feito, o dever de cada um de nós é acolhê-las, assisti-las como sempre fez o povo de Lampedusa. Espero que o filme seja um estímulo para pessoas e instituições, que podem fazer muito e até agora não fizeram nada”, comentou Bartolo.
A prefeita de Lampedusa, Giusi Nicolini, que luta para mostrar ao mundo a verdadeira imagem acolhedora da ilha, descreveu o filme como “um conto realista, mas poético, e não retórico” da ilha que salva vidas e da tragédia do Mediterrâneo. “Lampedusa contada pela voz dos verdadeiros protagonistas [..] é um lindo presente para um Mediterrâneo de paz e justiça.”
Em fevereiro, Fuocoammare foi o vencedor do Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim.
Eleonora Silanus, italiana, é formada em direito com especialização em direito da imigração. Desde 2012 trabalha na cooperação internacional e promoção dos direitos dos migrantes, com passagens pela Itália, Tanzânia e Brasil. Colabora com o MigraMundo desde 2015.