Tradução de artigo de opinião escrito por Connie Guzzo–McParland
Texto traduzido do inglês para o português por Giselle Rodrigues Ribeiro
As classificações são úteis na academia. Cursos são criados em torno de gêneros e temas literários, então quem vai reclamar de ser rotulado quando o próprio livro passa a fazer parte de uma lista de leituras de um componente curricular?
Contudo, esses rótulos, apesar de serem úteis em determinados contextos, tornam-se problemáticos quando são utilizados para marginalizar o trabalho de alguém ou para reduzir a chance de um autor ser reconhecido como um participante pleno na cena literária canadense.
Pela minha experiência, a maior parte dos escritores não começa a escrever uma história com uma categoria em mente: ela simplesmente surge. E como normalmente acontece com romancistas que estão estreando, meu primeiro romance valeu-se profundamente de memórias da infância, sendo que as minhas remetiam à vida nos anos 1950 em uma aldeia no sul da Itália que passava por mudanças significativas.
Quando eu tinha nove anos, minha alegre e tranquila vida aldeã foi interrompida abruptamente pelo frenesi da imigração que varreu o sul da Itália no pós-guerra, em que se viu uma família após a outra lutar para deixar as aldeias por quaisquer destinos que as aceitassem. Meu primeiro impulso ao escrever esse romance foi o de conservar no papel, de alguma forma, aquelas imagens da vida aldeã que se perderam com o processo da emigração, para recriar, mesmo que apenas na imaginação de um leitor (e na minha), um tempo e um espaço específicos e as forças que levaram alguns a juntar o que tinham e a partir.
O [meu] novo país – o Canadá – era só uma centelha no horizonte, nele uma vasta incógnita. E como tenho origem italiana, meu trabalho será indubitavelmente classificado como literatura ítalo-canadense. Mas quais são os limites que fazem com que um texto seja classificado como ítalo-canadense?
Há muitos escritores de origem italiana de segunda e terceira gerações que não escrevem sobre imigração ou que não se debruçam sobre questões de identidade cultural de forma alguma. Quando e em que ponto alguém deixa de ser considerado um escritor imigrante?
O rótulo se torna especialmente “outremizador” quando, ao invés de se adotar uma expressão hifenizada, como ítalo-canadense, opta-se por termos como “minoria” ou “étnico”. Vamos encarar os fatos: quantos escritores “autenticamente” canadenses que escrevem sobre senso de pertencimento, busca por identidade e confrontos intergeracionais podem alegar não ser descendentes de imigrantes?
A literatura de imigrantes está intimamente ligada à história do Canadá e tem influenciado a literatura canadense desde seu começo, e também tem moldado a evolução da identidade do Canadá como país. Foi o livro Passando aperto na mata , de Susannah Moodie, um “guia do emigrante” para britânicos que almejavam se mudar para o Canadá, que entranhou na psique canadense as imagens icônicas do país como uma terra hostil a ser domada, um tema que adiante foi abraçado e perpetuado por Margaret Atwood, do próprio Canadá.
Da década de 1950 até o presente, coincidindo com o reconhecimento pelo Canadá mesmo de seus textos escritos e com a criação de um cânone nacional e da literatura canadense, as obras de autores originariamente imigrantes têm ecoado esses temas com suas vozes particulares e variações culturais. O livro dos anos 1990 Solomon Gursky esteve aqui, de Mordecai Richler, apresenta uma imagem “das terras virgens e do espaço vazio” do Canadá não menos desolada do que aquela criada pelos primeiros colonizadores; apresenta também um país de ambivalências em busca de uma identidade ou “não ainda um país, mas um lugar logo ali”. As obras dos mais recém-chegados à cena literária canadense e sua luta com questões de pertencimento expandiram ainda mais o questionamento sobre o que significa ser canadense.
Pelo que me lembro das minhas aulas de literatura, os livros de Moodie e de Richler, embora ricos em temas relacionados a imigrantes e em metáforas, não foram classificados como textos de imigrantes, mas como literatura canadense. É encorajador que, nos últimos anos, muitos escritores canadenses com origens culturais diversas tenham se tornado populares e que tenham sido reconhecidos por alguns dos prêmios mais prestigiosos do país – Michael Ondaatje, Austin Clarke, Nino Ricci, Kim Thuy, Madeleine Thien, Vincent Lam, Rawi Hage, só para mencionar alguns. Dizer que eles contribuíram imensamente para a literatura canadense é um eufemismo.
Mas ainda há resmungos. Na comunidade de escrita ítalo-canadense, discussões sobre exclusão e marginalização no que tange à indústria literária hegemônica ainda são frequentes. Com a exceção de alguns dramaturgos – Micone, Rossi, Nardi, Galluccio – e de um punhado de escritores homens, escritores ítalo-canadenses (especialmente escritoras) têm sido extremamente sub-representados e subestimados. À luz das declarações recentes de David Gilmour sobre escritoras em geral, esse ponto de vista pode não ser particularmente exagerado.
Escrever, assim como com toda arte, é central na construção da cultura. A boa escrita consegue fazer isso sem explorar estereótipos e, em última instância, ilumina verdades universais que nos ligam uns aos outros. A cultura a que eu pertenço calha de estar enraizada na cultura imigrante italiana e eu não desejo nem brandi-la como uma bandeira na final da Copa do Mundo de futebol, nem minimizá-la por medo de ser rotulada e, possivelmente, excluída. Esta é quem sou. A literatura de imigrantes – classificada assim ou simplesmente como boa literatura – tornou os leitores canadenses mais receptivos a outras culturas e ajudou a formar a sociedade vibrante, multifacetada e cosmopolita que é o Canadá no século 21. Ficarei mais do que honrada por ser considerada parte desta tradição.
Referências
GUZZO-McPARLAND, Connie. Immigrant literature and the Canadian Canon. National Post, 28 nov. 2013. Seção “Posfácio”. Disponível em: https://nationalpost.com/entertainment/books/immigrant-literature-and-the-canadian-canon. Acesso em: 21 de abril de 2024.
All Lit Up. About the Author Connie Guzzo-McParland, [201-]. Disponível em: https://alllitup.ca/contributors/G/Guzzo-McParland-Connie. Acesso em: 21 de abril de 2024.
Sobre o texto
Este texto foi publicado originalmente em inglês no site do National Post (Ontário, Canadá). A publicação de sua tradução para a língua portuguesa foi autorizada pela autora do texto.
Sobre o autor
Connie Guzzo-McParland nasceu na Calábria (Itália) e foi criada em Montreal (Canadá). É autora dos livros “An Opera in 3 Acts Starring Gino Quilico” (Linda Leith Publishing, 2022), “The Women of Saturn” (Inanna Publications and Education, 2017) e “The Girls of Piazza d’Amore” (Linda Leith Publishing, 2013). É consultora financeira-chefe da Guernica Editions, onde, desde 2010, também desempenha a função de co-editora. Formou-se em Literatura Italiana pela Concordia University, tendo concluído o mestrado em Escrita Criativa pela mesma universidade. Ganhou o David McKeen Award for Creative Writing (Canadá) e o Premio Letterario Cosseria (Itália).
Tradutora do texto, Giselle Rodrigues Ribeiro é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e licenciada em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Estadual de Maringá (Brasil). É autora do livro “Subalternidades em perspectiva teórica: pela descolonização dos estudos literários” (EDUFBA, 2017), é líder do grupo de pesquisa “Migrantes na literatura e nas histórias em quadrinhos (DGP) e coordenadora do “Leituras dos girassóis”, um clube de leitura de textos literários. Atualmente, dedica-se a um estágio pós-doutoral na Johannes Gutenberg-Universität Mainz (Alemanha) no âmbito dos estudos literários e da tradução.