Por Bianca Medeiros
No último dia 15 de março de 2025, mais de 50.000 pessoas se reuniram na Praça do Povo, em Roma, para “reafirmar os valores fundacionais da União Europeia” . E eu lhes pergunto: o que é isso? Em meio a um contexto político marcado pelo endurecimento das políticas migratórias, o encontro na capital italiana suscita um questionamento válido e essencial para a dinâmica das relações internacionais: o que os europeus realmente estão pensando e qual direção a União Europeia está tomando ao agir dessa maneira?
A União Europeia se fundamenta em princípios como os direitos humanos, a solidariedade e a dignidade humana, consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000) e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950). No entanto, as recentes propostas da Comissão Europeia, que visam deportações mais ágeis e a externalização da gestão migratória para países terceiros, como a Albânia, contradizem veementemente esses ideais.
Na perspectiva de Habermas (2001) e Benhabib (2004) a tensão entre o universalismo dos direitos humanos e as limitações impostas pelos Estados na concessão de cidadania e pertencimento são a combinação perfeita para a perpetuação de violações graves de direito humanos. Habermas argumenta que a Europa deveria avançar para um patriotismo constitucional baseado na inclusão, e não na exclusão. No entanto, o que se observa na política migratória é um reforço da soberania nacional em detrimento de uma real abertura aos princípios universalistas que fundamentam a UE.
A manifestação em Roma trouxe à tona essa contradição: os cidadãos se mobilizaram para afirmar seu orgulho europeu, mas a própria estrutura política da UE implementa medidas que restringem direitos fundamentais de migrantes e solicitantes de asilo. Isso levanta um questionamento: a defesa dos valores europeus se estende apenas aos cidadãos europeus, excluindo aqueles que buscam refúgio e melhores condições de vida no continente? Óbvio que sim!
A questão é que a UE se construiu sobre um modelo de cidadania supranacional, baseada na cooperação interestatal e na defesa de valores universais. No entanto, manifestações nacionalistas – mesmo quando não explicitamente excludentes – podem representar um desafio a essa concepção, porque reafirmam identidades particulares em detrimento da ideia de pertencimento supranacional europeu.
Para Ernest Gellner (1983), o nacionalismo é uma construção moderna associada ao Estado-nação, surgindo como resposta às transformações sociais da modernidade. Benedict Anderson (1983), por sua vez, define a nação como uma “comunidade imaginada”, isto é, uma construção social baseada na ideia de um destino comum. Mas, na UE, a questão se torna mais complexa porque há uma tentativa de equilibrar múltiplas identidades nacionais dentro de um projeto supranacional.
Assim, manifestações nacionalistas, mesmo que enfatizando valores democráticos, podem reforçar uma visão exclusivista da identidade europeia. Mais uma vez, Que identidade?!
A pluralidade dentro da UE significa que não há um único modelo de nacionalismo. Michael Billig (1995) argumenta que o “nacionalismo banal” – o cotidiano reforço da identidade nacional por meio de símbolos e discursos – muitas vezes passa despercebido, mas molda o comportamento político e social. O problema surge quando esse nacionalismo se torna uma ferramenta de distinção entre “nós” (os europeus) e “eles” (migrantes, refugiados, não europeus).
Da mesma forma, essa cidadania cosmopolita e o “patriotismo constitucional” deveriam ser a base da identidade europeia. Habermas propõe que o pertencimento não deve ser baseado em etnicidade ou cultura homogênea, mas sim em valores compartilhados de democracia e direitos humanos. No entanto, manifestações nacionalistas podem contradizer essa perspectiva ao enfatizar a exclusividade da identidade europeia, reforçando barreiras simbólicas contra grupos externos. (HABERMAS, 2001)
Outra questão, portanto, é: o nacionalismo pode ser compatível com o pluralismo da UE? Não, se for utilizado para reforçar fronteiras simbólicas entre europeus e não europeus, legitimando políticas migratórias excludentes ou práticas discriminatórias.
E esse Não tem que ser gigante, porque reflete o conceito de “soberania hostil”, explorado por Wendy Brown (2010), que analisa como Estados usam fronteiras e políticas de exclusão para reafirmar seu poder frente a processos de globalização, que na EU vem junto com o emblema “mi casa é su casa”, mas só se você for europeu e, já trazendo um outro elemento discriminatório para essa conversa, “Só se você for um branco europeu!”.
E, nesse caso, nesse contexto, o poder das manifestações nacionalistas na UE depende de como são instrumentalizadas. Se reforçarem valores democráticos e direitos humanos, podem contribuir para um sentimento positivo de pertencimento. No entanto, se forem utilizadas para reforçar barreiras culturais, políticas e identitárias, podem se tornar um obstáculo à diversidade e ao pluralismo que caracterizam o projeto europeu.
Dessa forma, a União Europeia enfrenta um dilema: manter sua identidade pluralista ou ceder à pressão nacionalista e adotar políticas mais restritivas? O futuro do projeto europeu depende de como essa tensão será resolvida – e de qual discurso prevalecerá nas ruas e nos corredores do poder.
Michel Foucault (2008), ao tratar da governamentalidade, explica como os Estados modernos exercem poder não apenas por meio da repressão, mas também pela gestão da vida e dos corpos. O controle da migração na UE se insere nesse contexto: o fechamento de fronteiras e a externalização da política migratória são formas de biopolítica que determinam quem pode ou não pertencer ao espaço europeu.
Ao restringir a entrada de migrantes e justificar essa ação com argumentos de segurança e estabilidade econômica, os Estados europeus reforçam um modelo de governança seletivo. Didier Bigo (2002), ao tratar da “banalização do medo”, aponta que os discursos securitários transformam os migrantes em ameaças potenciais, legitimando políticas repressivas e medidas que antes seriam inaceitáveis dentro do próprio ordenamento europeu. Assim, enquanto cidadãos europeus protestam por uma identidade baseada nos valores fundacionais da UE, os governos adotam medidas que excluem sistematicamente os que vêm de fora.
U seja, a mobilização social vista em Roma indica que parte da população europeia resiste às políticas de exclusão. O envolvimento da sociedade civil é um fator crucial para a defesa dos direitos humanos, conforme apontado por Boaventura de Sousa Santos (2007), que enfatiza a necessidade de uma “globalização contra-hegemônica”, baseada na construção de uma cidadania transnacional e inclusiva.
Do ponto de vista jurídico, a Convenção de Genebra de 1951 e os tratados internacionais de direitos humanos impõem obrigações aos Estados europeus, impedindo expulsões sumárias e garantindo o direito ao asilo. No entanto, a recente proposta da Comissão Europeia para acelerar deportações e transferir migrantes a países terceiros levanta preocupações sobre a erosão desses compromissos internacionais.
A contradição entre a defesa dos valores europeus e a adoção de políticas restritivas reflete um dilema profundo dentro da UE. Se, por um lado, cidadãos se mobilizam para reafirmar os princípios democráticos, por outro, os governos endurecem medidas que limitam a entrada e permanência de migrantes, muitas vezes violando direitos fundamentais. Mas é aquela coisa, velhas condutas do velho continente…
Sobre a autora
Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos.
Referências
ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism. Verso, 1983.
BENHABIB, Seyla. The Rights of Others: Aliens, Residents, and Citizens. Cambridge University Press, 2004.
BIGO, Didier. Security and Immigration: Toward a Critique of the Governmentality of Unease. Alternatives: Global, Local, Political, 27(1), 2002.
BILLIG, Michael. Banal Nationalism. SAGE Publications, 1995.
BROWN, Wendy. Walled States, Waning Sovereignty. MIT Press, 2010.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População: Curso no Collège de France (1977-1978). Martins Fontes, 2008.
GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Blackwell, 1983.
HABERMAS, Jürgen. The Postnational Constellation: Political Essays. MIT Press, 2001.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: Para uma Nova Cultura Política. Cortez, 2007.