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terça-feira, outubro 15, 2024

Maternidade transnacional: a estória de mulheres haitianas e smartphones no interior paulista

Por WhatsApp, Facebook ou Skype, mulheres haitianas que migraram para o Brasil mantêm contato com os filhos no Haiti por meio do telefone celular, atenuando a saudade e reduzindo distâncias - dentro do possível

Por Rafaela Gava Etchebere*

Sentadas na varanda, Phahidra e eu ouvíamos konpa. A música My Life, do grupo 5 etwal, embalou quase todos os dias em que estive com as haitianas. Não havia muito movimento na rua como costumávamos observar, pois era uma segunda-feira à tarde. Estávamos na casa que Phahidra e Rose dividiam com mais duas haitianas e dois haitianos, casa que apelidei como Kap Kay la, ou a casa do Cabo Haitiano, isso porque todos seus moradores já se conheciam da cidade de Limonade, na Região do Cabo Haitiano, norte do Haiti. A casa não era muito grande. Tinha dois quartos, uma cozinha/sala, um banheiro e uma garagem. A garagem tinha um grande sofá e cadeiras distribuídas, além de duas máquinas de lavar que não funcionavam e várias bacias nas quais as roupas eram lavadas.

Chamei Rose para se sentar conosco, mas foi Phahidra quem respondeu: “Rose está fazendo fritay pra você! Falei que você gostava muito de banana frita e ela quis fazer pra você. Ela também vai fazer salami. Você conhece salami? Na República Dominicana a gente chama assim”. Não demorou para que Rose trouxesse um prato grande com muitas bananas da terra verdes e fritas acompanhadas de mortadela frita, ou salami.

Rose voltou para a cozinha para preparar um suco e, enquanto Pha e eu dividíamos o prato, o celular dela tocou. Era o filho mais novo de Rose. Os dois conversaram por poucos minutos e depois de encerrada a ligação, Rose voltou até a garagem para pedir que Phahidra emprestasse a ela o tablet, pois seu filho logo faria uma chamada por Skype– ferramenta de comunicação on-line por texto, áudio e vídeo-chamada. Rose tinha seus dois filhos no Haiti. No país, Rose nasceu e cresceu em Limonade, uma cidade importante do Norte do país. Após concluir o que no Brasil seria o ensino fundamental 1,  aprendeu com sua mãe a fazer negócios em Dajabón. Já mais velha, Rose se casou e com seu marido e teve os dois filhos. Nessa época ela não precisou trabalhar fora, pois seu marido mantinha um emprego na capital, Porto Príncipe, e provia o que a família precisava em Limonade.

Essa realidade mudou no dia 12 de janeiro de 2010. O marido de Rose estava trabalhando quando o relógio começava a aproximar seus ponteiros das 17 horas e os abalos do grande terremoto que assolou o país foram sentidos na capital haitiana. Viúva, Rose voltou a trabalhar com comércio para sustentar seus filhos. No início de 2015, ela ficou sabendo pela avó de Phahidra que seus netos estavam conseguindo bons trabalhos no Brasil e decidiu deixar os filhos para trás e se mudar, em maio de 2015, para a casa onde nos encontrávamos. Nos primeiros meses, ela conseguiu um emprego em uma fábrica e investiu, com seu primeiro salário, em um tablet para o filho. Um mês se passou e ela foi demitida. “Eu ia comprar um smartphone pra mim”.

Família transnacional conectada

Rose, assim como tantas outras haitianas de Santa Barbara d’Oeste, no interior de São Paulo, encontrava nos smarphones um meio para se comunicarem com seus filhos que ficaram no Haiti. Ao contatarem as crianças e os adolescentes que estão no Haiti, essas mães não só obtêm notícias e como dão informações sobre o que está se passando, assim elas criam uma maneira de cuidar dos seus filhos. A distância, que encerraria participação dessas mulheres na criação das crianças, se dilui, pelo menos no espaço de tempo em que essa mulher se conecta com seu país, e mais uma cena do cotidiano transnacional acontece com a manutenção de várias vidas em dois lugares diferentes.

Naquela tarde de segunda-feira, vi na chamada por Skype que Rose fazia para seu filho, que conectava o tablet emprestado da amiga no Brasil com o tablet da criança no Haiti, que esta não parecia ser uma relação rompida pela distância espacial. O menino, que já trajava uma camisa grande e confortável, com uma bermuda também “desleixada”, tomou uma bronca da mãe porque não estava “com uma roupa boa” para falar com as visitas – no caso eu, muito distante dele. O menino, com vergonha, saiu para trocar de blusa e eu pude ver no seu quarto um uniforme pendurado ao fundo. Phahidra e eu conversávamos com ele, enquanto Rose terminava de fazer o suco para nós. Ao retornar, o menino nos descreveu seu dia na escola, algumas de suas brincadeiras e falou que o irmão estava bem e que estava na casa da tia deles. Depois que Rose terminou o suco, pegou o tablet para si e os dois começaram a discutir sobre as remessas e Phahidra e eu voltamos à garagem.

A manutenção dos vínculos entre mães e filhos separados pela migração transnacional, da família transnacional conectada nos dias atuais, se dá por meio da explosão de oportunidades comunicativas proporcionadas pelas novas mídias (BUMACHAR, 2011). Nos fluxos atuais cada vez mais intensos, barreiras temporais e espaciais são desafiadas, por sua vez, a cada instante de um “click” em uma notificação de chegada de uma mensagem em tempo real em um aplicativo, que está no smartphone,em nossas mãos.

Além do Skype, as haitianas de Santa Barbara d’Oeste também utilizam com regularidade o Whatsapp e o Facebook. Cada uma das mídias tem possibilidades de ação a partir da interseção de marcadores sociotécnicos, tais como “interatividade, temporalidade, capacidade de armazenamento, durabilidade do conteúdo, replicabilidade, alcance e visiblidade, mobilidade, pistas, natureza pública/privada, custo e capacidade informacional” (BUMACHAR, 2011). O Whatsapp é um aplicativo para smartphones é utilizado para troca de mensagens de texto instantaneamente, além de vídeos, fotos e áudios através de uma conexão à internet. Ou seja, com a internet instalada na casa e transmitida via Wi-Fi, todos os haitianos conseguem se comunicar instantaneamente com outros haitianos que estão também conectados à internet no Haiti e em outros lugares da diáspora. Conselhos, piadas, comentários, paqueras atingem um tom de cotidiano e proximidade mais difícil de ser atingido em conversas por Skype, que também podem ser feitas via smartphone.

Com esse equipamento, os haitianos podem acessar de forma rápida e prática o Facebook, outra ferramenta de comunicação muito importante para eles. Assim como por Whatsapp, a rede social permite que aqueles que se utilizam dela enviem mensagens instantâneas para parentes e amigos. Mesmo que esse seja o uso mais recorrente da rede social, o uso mais interessante foi o envio, recebimento e o armazenamento de fotos.

Um dia de festa, um dia de culto, uma ida ao shopping, toda semana nas aulas de português, uma touca, um par de óculos ou uma roupa nova sempre eram justificativas para haitianos e haitianas posarem e fazerem fotos para postar em suas páginas pessoais no Facebook. Perguntadas do porquê daquilo e elas me responderam que não havia jeito melhor da sua família saber se ela estava bem se não através das fotos postadas. As fotos sempre eram tiradas em situações em que se sentiam bem, estavam arrumados e estavam em um lugar bonito, “chique”. Mas não só os haitianos que estão na diáspora têm esse habito. Os haitianos que ficaram no Haiti também registram seus bons momentos para que seus amigos e parentes saibam que estão bem. Mães, tias, irmãos e avós registram seus filhos, sobrinhos, irmãos e netos arrumados para seu primeiro dia de aula ou para irem à igreja para que os pais, as mães, os tios, avós das crianças, que enviam remessas para ajudar na educação e nos cuidados, saibam que ela está bem.

Com o smartphone, fotografar e compartilhar fotografias torna-se muito mais rápido e prático, aproximando os cotidianos, o que adiciona mais um motivo pela preferência desse equipamento. Por isso, quando Rose diz que teria comprado um smartphone com seu próximo salário, ela está dizendo que teria comprado o meio para entrar no cotidiano de seus filhos, amigos e parentes que estão no Haiti e fora dele via Whatsapp, além de que, sempre que possível, faria vídeo conferências com as crianças via Skype pelo aparelho.

O mais difícil é a saudade

A questão é que ainda que essas mulheres imigrantes estabeleçam redes aqui no Brasil, o fato de serem mães transnacionais que têm uma rede de possibilidades de ajuda limitada é determinante em suas estratégias, escolhas e agenciamentos no país em que residem. Essas mulheres enfrentam situações de dificuldade que opera em sua cor da pele e na não compreensão do português, colocam em cheque a sua capacidade de prover e cuidar de seus filhos. Rose não conseguiu comprar o aparelho eletrônico que desejava, mas conta com a ajuda de sua pequena rede para falar com seus dois filhos.

Nesse cotidiano em que é tão árduo e precário “prover”, e o “cuidar” física e emocionalmente implica em uma constante negociação do que é melhor para o futuro de suas crianças, o “mais difícil é a saudade”. Apesar da saudade, o medo da influência da cultura do país para o qual imigraram na formação de seus filhos faz com que essas mulheres tenham a certeza de que deixar seus filhos para trás ao migrarem é a melhor escolha para as próprias crianças. A maioria das mulheres acredita que “é melhor que os mais pequenos cresçam no Haiti. A escola é melhor, lá tem respeito, tem igreja, tem Deus. Aqui fica muito difícil dar limite, cuidar de tudo”, como me foi dito por uma haitiana certa vez.

Entretanto, é notável que todas essas dificuldades não enfraqueçam os sonhos dessas haitianas de estarem novamente ao lado dos filhos. Nas vezes em que fui à Kap Kay la, o discurso “eles não tem ninguéme eu não tenho ninguém ganhava força sobre qualquer que fosse a possibilidade negativa de trazer as crianças para o Brasil. Seja para ajudar na renda ou para tê-los por perto, a maior motivação de Rose era ter a oportunidade de trazer seus filhos para junto de si. Esse era um sonho que se mantinha na vida dela e de várias haitianas que viviam em Santa Barbara d’Oeste.

Nesse movimento de pensar a motivação da migração transnacional com a finalidade de “prover” bens materiais para os filhos, trabalhar em meio a precariedade, que passa pela nacionalidade, classe, raça e gênero, se mostrou muito interessante para pensar outros episódios da vida das haitianas que vivem em Santa Barbara d’Oeste. Foi no cotidiano que encontrei agenciamentos possíveis da saudade “que é o mais difícil”. Com ajuda de suas estreitas redes e a facilidade a um “click” das novas tecnologias de comunicação, a administração dos afetos entre Rose com seus filhos tornam possível a realização dessa migração transnacional.

Sobre a autora

Rafaela Gava Etchebere é Doutoranda do Programa de Pós graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. Mestra em Antropologia Social pelo PPGAS/UNICAMP. Bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Pesquisadora do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da UNICAMP com experiência na área de Antropologia Social, atuando principalmente com os seguintes temas: Antropologia das migrações, Alimentação, Movimentos Sociais e Empreendedorismo.

1 COMENTÁRIO

  1. muito ibreressante esse artigo/texto Tenho um amigo haitiano muito querido que está no Brasil há 5 anos. Deixou 2 filho e a esposa. só se comunica com eles por whatsap. E bem isso q vc descreveu. E triste ver essa separação e fistancia fisica entre eles. E um povo que tem uma capacidade de aceitação, resiliência e esperança. Um povo maravilhoso e alegre , mas que sofrem mto com a separação. Eles gostam mto de estar com suas famílias.

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