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terça-feira, outubro 15, 2024

Migração como espelho de memória e reflexão sobre o presente: uma entrevista com a autora do livro Migrando

Autora, pintora, gravurista e ilustradora, Mariana Chiesa alcançou adultos e crianças após o lançamento do livro Migrando, sem usar palavras

Por Alana Moreira

Parecia interminável o trajeto a ser percorrido entre a sua cidade natal de La Plata, capital da província de Buenos Aires, até as praias durante os escaldantes verões argentinos. A pequena Mariana Chiesa Mateos observava, a partir da estreita janela do carro que seu pai conduzia, a extensão da planície pontilhada de lagoas. Esta lembrança funde-se a tantas outras que fazem parte de uma infância permeada por histórias contadas por sua avó e acalentadas pelas sombras generosas das árvores que hoje a autora reconhece como sendo a metáfora de uma grande árvore genealógica familiar.

Testemunha das narrativas familiares, a autora aprendeu sobre suas raízes e a narrar a longa trajetória migratória de sua família. Seu avô, ainda muito jovem, fugiu de uma Espanha endurecida pela pobreza em direção à Argentina após a convocatória para a Guerra do Rife, conflito travado entre 1920 e 1927 entre forças espanholas e tribos rifenhas marroquinas, tendo a cidade de Melilla um dos centros de organização do exército hispânico.

Aos 30 anos, já graduada em Belas Artes, volta ao território espanhol onde vivencia os constrangimentos inerentes a grande parte da população migrante e baseia-se a seguir na cidade italiana de Bolonha, onde vive atualmente. Autora, pintora, gravurista e ilustradora, Chiesa alcançou adultos e crianças após o lançamento do livro Migrando, em 2010, obra produzida em duas partes, que “deveria terminar no meio e ser uma espécie de interminável, assim como um livro de espelhos, um espelho de memória”.

Em entrevista ao MigraMundo, a autora partilha as memórias de sua família, os desafios do mercado editorial e reflete sobre a sua própria história enquanto migrante.


MigraMundo: Migrando é um convite à empatia, à solidariedade e às histórias silenciosas dos mais de 280 milhões de migrantes no mundo. Como surgiu a proposta para a produção do livro e o conceito de dois lados para a leitura?

Mariana Chiesa Mateos: O livro parte de um curta de animação que havia feito para um festival de animação independente em Barcelona, ​quando morava lá. Originalmente eram pequenos separadores entre filme e filme e chamava-se “Em estado de emigrar”. Uma amiga sugeriu a possibilidade de transformá-lo em livro e aproveitando minha presença em uma feira em Bolonha em 2007 eu o apresentei a Orecchio Acerbo, na verdade dei a eles um CD com algumas imagens (fotogramas do filme).

Grande foi a minha surpresa quando depois de alguns meses me escreveram muito interessados ​​em realizar o projeto. A partir daí foi o trabalho de transformar o filme em ilustrações fixas. Na verdade eu tive que redesenhá-lo completamente. Resolvi respeitar a estética e a simplicidade das imagens do filme e acho que foi um grande sucesso, pois nos permite virar a página rapidamente.

O livro faz referência particularmente à viagem migratória, há aspectos depois da viagem que foram sacrificados, ou que decidimos não incluir para melhorar a leitura do que queríamos contar e focar na viagem, na passagem de uma terra para outra, na travessia ou no mar.

O conceito das duas faces surge quase de forma espontânea numa altura em que virei o modelo e depois percebi que deveria terminar no meio e ser uma espécie de interminável, como um livro de espelhos, um espelho de memória.

A criança Mariana segurou a autora pelas mãos para narrar algumas de suas memórias? Poderia partilhar conosco algumas destas lembranças?

O livro começa com imagens que lembram as primeiras viagens de carro com meu pai ao volante. A extensão da planície pontilhada de lagoas que víamos da janela em cada viagem que fazíamos a cada verão em direção ao mar.

A memória das conversas com a minha avó, em imagens que estou debaixo de uma árvore, uma árvore genealógica… E aproveitei esse recurso para que por sua vez aquela personagem que corresponderia a uma avó pudesse contar a sua história de migração da Europa para América.

Entre outras migrações familiares, meu avô materno emigrou sozinho, da Espanha sendo muito pobre e quase uma criança para evitar ser enviado para uma guerra absurda em Melilha. Bem, todas as guerras são absurdas. Sua mãe decidiu salvá-lo dessa forma, enviando-o sozinho para a Argentina.

A obra rompe as fronteiras da literatura infantil e é apreciada também pelos adultos. Quais foram as repercussões mais marcantes à época do lançamento?

É um livro que não se destina apenas a crianças. Mas a maioria das editoras que publicam ilustrações o fazem para o público infantil ou jovem. E felizmente Orecchio Acerbo é um daqueles que não faz distinções por idade. Foram lindos apontamentos, resenhas e entrevistas, oficinas e divulgação. Às vezes me pergunto até que ponto serviu como instrumento de transformação.

Mariana Chiesa, autora de “Migrando”. (Foto: Arquivo pessoal)

Em Portugal o livro foi publicado com o apoio da Anistia Internacional. Nos demais países onde foi lançado, como foi a receção por parte das ONGs e da sociedade civil?

Infelizmente não tenho muitas informações a respeito. Eu sei que a Anistia usou imagens do Migrando para alguns posts, mas não tenho contato com a organização. Sei que o livro foi publicado na França e no México e que também foi usado como uma ferramenta em escolas e bibliotecas. Mas nem sempre fui chamada para fazer workshops ou apresentá-lo. De qualquer forma e graças ao “Migrando” fui convidada para alguns festivais, em vários lugares da Itália, desde o “Minimondi” em Palermo, Sicília ou “O festival da mente” em Sarzana, para citar alguns.

Também dei workshops na biblioteca da Sala Borsa em Bolonha e um workshop numa universidade de arte. O problema é que não houve continuidade, quer dizer que as oficinas e os encontros foram muito breves, mas acho que faz parte do problema do formato de “cultura festiva” predominante onde moro. Por outro lado, nunca fui convidada no município onde moro, nem nas escolas do território.

O livro é dedicado “àqueles que pensam que as pessoas também pertencem à espécie migratória”. Somos hoje uma espécie ameaçada pelo encerramento de fronteiras e pelo endurecimento das políticas migratórias?

Infelizmente vivemos em um sistema cada vez mais exclusivo. Dependendo de onde você nasceu e qual passaporte você possui, os privilégios serão adicionados aos privilégios de classe.

Estamos imersos em um sistema neoliberal e ultracapitalista onde há vidas que não valem nada e outras que valem menos. Desde que passei a viver nestas latitudes, as fronteiras endureceram e tornaram-se mais difíceis de atravessar, as políticas de imigração deixam muito a desejar e quem apoia, ajuda, salva pessoas da morte e detenção é criminalizado por ser considerado ilegal e quem colabora é vistos como cúmplices desta ilegalidade.

O panorama agravou-se notadamente porque as situações de violência, pobreza e guerras só aumentaram e porque não há vontade política real de mudança, de ampliação dos direitos dos migrantes.

Após a sua própria travessia pelo Atlântico, um pouso de 11 anos em Barcelona e mudar-se para Bolonha, o livro é, para além de uma homenagem à memória de sua família, uma ilustração ainda inacabada de sua própria história?

Sim, é de certa forma uma homenagem aos que me precederam mas sobretudo é a base para poder contar as migrações atuais, a das pessoas que atualmente tentam chegar à Europa atravessando fronteiras cada vez mais complexas e arriscando a vida em tentativa.

A minha situação de migrante é muito privilegiada, mas em todo o caso tive de recorrer a inúmeros procedimentos e estratégias para conseguir obter uma autorização de residência legal e o direito a cuidados de saúde. Felizmente, consegui que eles me contratassem dentro das normas e com um salário e depois de dez anos em Barcelona pude optar pela cidadania espanhola.

Minha permanência na Itália é regular e possível graças a essa cidadania espanhola, mas apesar de ter uma filha italiana, passei por situações absurdas de falta de assistência médica, por ignorância de quem deveria me ajudar ou por o profundo racismo prevalecente que subjaz a boa parte das sociedades europeias.

Doze anos passaram-se desde o lançamento e neste espaço de tempo, acompanhamos graves violações de direitos que levaram a fluxos de migrantes e refugiados. Tem planos para uma nova obra sobre a temática?

Já fiz alguns projetos, um em especial é uma continuação do Migrando, mas não foi aceito na época, então não foi publicado. Neste projeto, abordo aspectos que têm a ver com o que acontece depois da chegada, após o percurso da viagem.

As dificuldades ligadas às burocracias, ao racismo estrutural, à visão colonial, ao eurocentrismo, tudo agravado pelo neoliberalismo selvagem em que estamos imersos com a ascensão da extrema direita e os novos micro e não micro fascismos. Mas, apesar do bom impacto do Migrando, não é simples nem fácil continuar publicando.

Entre as respostas de algumas editoras, uma foi que o mercado tinha uma superabundância de livros sobre o assunto. Com o que me desiludi um pouco com o campo editorial ligado à infância e juventude e as formas de acessá-lo, nem sempre porosos e sempre delicados, onde ilustradores e autores também são engrenagens de um sistema editorial ligado aos interesses do mercado. Mas não descarto poder fazer outros livros no futuro. Desejo, pois gostaria muito de publicar novamente.

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